Sunday, May 05, 2013

Direita e Esquerda (post N+1 sobre o assunto)

 A série de posts n'O Insurgente sobre a definição de direita levou-me a escrever também algo sobre o assunto.

Diga-se que eu não tenho muita certeza de que o que vou escrever neste post faça grande sentido (é mais um exercício especulativo do que outra coisa qualquer) e é provável que contradiga muito do que já escrevi (e possivelmente do que irei escrever) sobre este tema.

Assim, o que distingue a esquerda da direita?

A esquerda talvez se possa definir pela defesa de formas de "acção colectiva para eliminar ou pelo menos reduzir as desigualdades de riqueza e/ou poder".

Alguns leitores irão pensar "«acção colectiva», isso é um eufemismo para «Estado», não é?"; não necessariamente - a intervenção do Estado, realmente, pode ser considerada uma espécie de "ação colectiva", mas há outras coisas que também contam como "acção colectiva" - ocupações, desobediência civil, sindicatos, greves, manifestações, boicotes, cooperativas, "comunidades alternativas experimentais", etc.  Aliás, suspeito que a sensibilidade de muita gente de esquerda até se entusiasma muito mais com a ideia de estar numa manifestação de rua e eventualmente a levar porrada da polícia do que com a de estar um dia no governo.

Em certos casos, essas formas de acção colectiva até podem ter por objectivo reduzir a intervenção do Estado (se essa intervenção for promotora de desigualdades) - p.ex., uma campanha de protestos contra uma regime que tenha leis consagrando a discriminação racial; se o objectivo for apenas a revogação dessas leis, o objectivo até será reduzir (nesse assunto especifico) a intervenção do Estado, mas é há mesma uma forma de "acção colectiva".

Diga-se que mesmo na esquerda que se diz "individualista" esse "colectivismo" existe - p.ex., os chamados anarquistas individualistas até podem defender uma sociedade em que cada um seja um trabalhador independente proprietário dos seus "meios de produção", mas o caminho que normalmente propõem para lá chegar é a criação de cooperativas de crédito e afins; também a "contra-cultura" dos anos 60, se defendia muito aquilo do ""não seja mais uma roda na máquina", "se tu mesmo e não ligues às convenções sociais", etc., também tendia a defender que a luta colectiva (ou a criação voluntária de comunidades alternativas à sociedade "normal") era o caminho para chegar a essa sociedade de libertação individual.

Em suma, quer os meios sejam estatistas ou não, violentos ou pacíficos, potencialmente coercivos ou não, querendo mudar por dentro a sociedade existente ou apenas querendo criar outra ao seu lado (estas dicotomias que refiro aqui não são idênticas umas às outras, mas também não são totalmente independentes umas das outras),  a mitologia da esquerda tende sempre a girar à volta de juntar muita gente para lutar em conjunto por uma causa comum. No fundo, a divisa da esquerda poderia ser "Egalité, Fraternité" - a luta colectiva para criar uma sociedade igualitária (claro que é uma "fraternité" que exclui os "privilegiados" e os "seus lacaios", mas pronto...).

E a direita? Bem, a direita talvez se possa definir por... não ser de esquerda. Ou seja, "direita" é um conceito largamente definido por exclusão - se alguém, seja porque razão for, não se identificar com essa ideia de luta colectiva para criar uma sociedade igualitária, é de "direita". Uma analogia que me ocorre é que a dicotima esquerda/direita é um bocado como a dicotimia vertebrado/invertebrado - tal como a esquerda, os animais vertebrados definem-se por uma característica especifica: terem um esqueleto interno; já os invertebrados definem-se pela negativa: não terem um esqueleto interno (podendo uns ter conchas, outros um esqueleto externo, outros nem sistema nervoso terem).

Há muitas possíveis razões para alguém recusar a ideia de "acção colectiva para eliminar ou pelo menos reduzir as desigualdades de riqueza e/ou poder"; alguns exemplos:

- alguém até pode não ter especificamente nada contra (ou a favor) de mais igualdade, mas ser contra "colectivismos", sobretudo se estatais ou coercivos

- alguém até pode não ser particularmente individualista e até simpatizar com posições "comunitárias" mas achar que a dinâmica das sociedades humanas é demasiado complexa e imprevisível, pelo que qualquer tentativa voluntarista de fazer a sociedade ser mais isto ou menos aquilo (neste caso, mais igualitária) irá provocar resultados que não têm nada a ver com os pretendidos

- alguém até pode não ter nada contra colectivismos ou mesmo contra querer criar uma "nova ordem", mas ser intrinsecamente a favor das elites, dos "grandes homens", quiçá de raças superiores, e contra o igualitarismo

Se alguém achar alguma semelhança entre estes exemplos de formas possíveis de ser "de direita" e o liberalismo, o conservadorismo e o fascismo, respectivamente, confesso que não foi coincidência; e claro, pode haver muitas combinações possíveis a partir daqui (p.ex., pode-se ser simultaneamente anti-colectivista e anti-projectos voluntaristas, e aí temos razões reforçadas para alguém não ser de esquerda).

Aliás, suspeito que está aqui parte da razão porque nós, na extrema-esquerda, somo considerados mais socialmente respeitáveis do que a extrema-direita: há uma continuidade filosófica entre a extrema-esquerda e o centro-esquerda (entre anarco-sindicalistas, trotskyistas, estalinistas e social-democratas há uma longa árvore genealógica comum, afinal) que não há entre o centro-direita e a extrema-direita (já que estes só são todos "de direita" unicamente porque nenhum é de esquerda, não propriamente por grandes tradições ideológicas partilhadas), o que faz com que a extrema-esquerda esteja mais perto do mainstream ideológico que a extrema-direita.

Algo que provavelmente está também ligado ao facto de "a direita" ser definida por exclusão é a tendência que me parece existir para os movimentos políticos serem classificados no eixo esquerda-direita com base no assunto em que estiverem mais à direita: p.ex., um liberal económico e progressista nos "costumes" é "de direita"; e um conservador nos costumes defensor da economia mista é também "de direita"; e um defensor da democracia popular de base, da autogestão e de comunidades etnicamente puras (isto anda perto) seria provavelmente considerado de "extrema-direita".

Outros posts sobre o assunto - Esquerda e Direita - tentativa de definiçãoRe: Pequeno esclarecimento e, last but not least, Gatos e Cães, Esquerda e Direita (e também Esquerda, direita e liberalismo, que havia ficado esquecido na versão original do post).

2 comments:

João Vasco said...

Adorei este post. Ainda não encontrei uma definição dos termos "esquerda" e "direita" melhor que esta. Parabéns!

O comentário final sobre alguém ser classificado tendo em conta a área em que estiver mais à direita também é interessante.

Só discordo da perspectiva apresentada sobre o "liberalismo" que me parece pouco abrangente. Hoje gente à esquerda e direita quer cada vez mais rotular o liberalismo como uma ideologia de direita, contra a acção colectiva, como aparece neste texto. Mas isso não tem de ser assim, nem creio que fosse assim durante as revoluções liberais onde surgiu o mote «Liberdade, Igualdade, Fraternidade» que até é identificado neste texto como "esquerdista" (as duas últimas palavras, mais precisamente).
Creio que muitos Liberais se entusiasmaram com a acção colectiva para "igualizar" o poder, na circunstância em que era claro que o estado era fonte dessas desigualdades.
Aquilo que me parece é que o Liberalismo é um conceito abrangente que abarca perspectivas de direita e de esquerda.

É verdade que poucas pessoas de esquerda hoje se auto-intitulam "liberais", e sendo as palavras algo dinâmico, pode ser que no futuro "liberalismo" passe realmente a ter um significado apenas compatível com perspectivas de direita, conforme tem sido cada vez mais usada a palavra. Mas creio que esse dia ainda não chegou, e espero que não chegue. As «revoluções liberais», essas enormes vitórias da Esquerda, ainda estão muito presentes na minha mente.

João Vasco said...

A este propósito (do liberalismo), li um comentário do Ricardo Alves que bate muito certo com o meu próprio sentimento a respeito da palavra:

«A história não evolui, o que evolui é a visão que temos dela. Quer queiras quer não, a «esquerda» portuguesa chamou-se a si própria «liberal» durante um século. E não é por aparecerem agora uns cómicos a chamarem «liberalismo» à seita hayekiana que eu vou passar a usar «liberalismo» como um termo insultuoso.»