Thursday, April 24, 2014

O Direito Natural à luz de Deus, de Kant e de Henrique Raposo

Na sexta-feira passada, Henrique Raposo narrou no Expresso a evolução das suas convicções sobre a fonte do "direito natural".

Conta Raposo que durante muito tempo a sua base filosófica para defender o direito natural era Kant. No entanto, a dada altura concluiu que faltava algo a Kant - nomeadamente a que a sua ideia de direitos naturais derivadas da razão deixava de fora aquelas pessoas que, por qualquer motivo, não têm (ou ainda não têm, ou já não têm...) pleno uso da razão: crianças pequenas, deficiententes mentais, alguns idosos, etc.

Assim Henrique Raposo acabou por chegar à conclusão que a filosofia de Kant não serve como base para o direito natural, e que só Deus pode ser essa base.

Poderia-se discutir se Deus também serve para base do direito natural - afinal, com tantas versões diferentes do que é a palavra de Deus, ou mesmo sobre quem é o verdadeiro Deus, defender uma dada versão do direito natural baseada em Deus está em última instância dependente do que se escolhe acreditar sobre o que é a palavra divina.

Mas o meu ponto é outro - basicamente, HR trocou Kant por Deus porque acha que com Kant não era possível chegar às conclusões a que ele (HR) queria chegar. Mas então isso quer dizer que HR primeiro definiu a sua visão do que deve ser o direito natural (neste caso, um direito natural em que recêm-nascidos, idosos dementes, etc. tâm direitos) e depois foi à procura de um sistema de pensamento que permitisse justificar esse direito natural. Mas, se é assim, isso quer dizer que HR não vai verdadeiramente buscar o direito natural nem a Deus e nem a Kant (ele escolheu, primeiro Kant, e depois Deus, como justificativos de um direito natural em que ele já acreditava previamente). Não - a verdadeira fonte justificativa do direito natural para Henrique Raposo é... Henrique Raposo ele próprio: se ele anda - ou andou - a escolher e rejeitar justificações para o direito natural até encontrar uma que as conclusões batessem certo com a sua visão do justo e do injusto, isso quer dizer que ele foi buscar o direito natural à sua consciência, não a Kant ou Deus.

Generalizando, podemos concluir que o conceito de um "direito natural" provavelmente tem a sua origem num sentimento intuitivo do que é justo ou injusto, certo ou errado, quase de certeza derivado da nossa programação genética como animais sociais (aliás, estudos parecem indicar que os chimpanzés também terão algo parecido com um sentido de justiça).

4 comments:

João Vasco said...

Esse tipo de atitude (escolher uma "fonte de autoridade" como justificação de um conjunto de valores morais que afinal foram adoptados a priori) é mesmo muito comum, sendo o Henrique Raposo apenas um exemplo fácil (devido à falta de sofisticação como ele fala sobre os assuntos). Geralmente ninguém passa de Kant para Deus, mas quer-me parecer que parte do sucesso do cristianismo está precisamente nas contradições e incongruência do seu livro sagrado (a Bíblia) que permitem justificar tudo e o seu contrário (belicismo, pacifismo, perdão, atitude implacável, defesa dos mais fortes e poderosos, defesa dos mais fracos e oprimidos, etc.) e assim permite a todos justificar aquilo que acreditam "a priori" com a "Palavra do Senhor".

joão viegas said...

Caro Miguel,

Não ha questão menos apaixonante do que a do direito natural, nem ponto de partida mais desastrado do que procurar esclarecê-la à luz do que se passa na cabeça do H. Raposo. Ja na de um chimpanzé não digo que não...

Quando os antigos se referiam ao ius naturale, entendiam referir-se a normas seguidas, não apenas pelos homens, mas pelos outros animais (Ius naturale est, quod natura omnia animalia docuit).

Repara que, no conceito romano, o direito natural pode perfeitamente ceder em detrimento do direito das gentes (de todos os povos), ou do direito civil.

O direito não é, para os romanos, um "comando". Antes um padrão, que pode servir... ou não, consoante os casos.

Exemplo : a escravatura é um instituto que eles consideravam de direito das gentes, vendo que todos os povos o praticavam (e eles praticavam-no sem grandes escrupulos, como foi alias o caso nas nossas civilizações até ao século XIX). Tinham no entanto plena consciência de que a escravatura não é um instituto de "ius naturale".

Este conceito (romano) de "ius naturale" é muito diferente daquele que esta implicito no texto do Raposo, que é uma ideia que nos vem do jus-naturalismo do século XVII e que não tem grande consistência para o jurista.

Se atentassemos um pouco mais no sentido das palavras, a expressão "direito natural" deveria servir-nos como ponto de partida para reflectirmos sobre o que é, para nos, a "natureza"...

Um abraço

joão viegas said...

Corrijo : não é "em detrimento", mas "em favor".

Boas

pedro romano said...

Bater no Henrique Raposo é sempre um exercício apaixonante [e razoavelmente fácil :) ]