De facto a opção entre fixar taxas de câmbio e deixá-las flutuar é uma questão bastante única na forma como ela passa por cima das linhas ideológicas tradicionais. Entre os defensores das taxas de câmbio fixas estão tanto conservadores - que anseiam pela volta de algo que se pareça com o padrão-ouro - quanto [parte da esquerda], que não [concorda] que se deixem as taxas de câmbio à mercê dos mercados especulativos. Entre os defensores das taxas de câmbio flexíveis, estão monetaristas, que querem que os seus países sigam regras monetárias rígidas, e keynesianos, que querem taxas livres para que se chegue ao pleno emprego tanto (Paul Krugman, Vendendo Prosperidade)Há tempos, o João Vasco sugeriu-me que escrevesse mais qualquer coisa sobre a crise na Venezuela.
Bem, cá vai: na minha opinião o que está a acontecer na Venezuela é o que acontece quando combinamos um governo de esquerda com câmbios fixos sobre-valorizados (um governo de direita com câmbios sobrevalorizados dá a Argentina na viragem do século).
Para manter um câmbio fixo com a moeda de outro país, o banco central tem que ter uma reserva de moeda estrangeira que lhe permita trocar a sua moeda por moedas estrangeiras sem desvalorizar (há um conjunto de expressões - "divisas", "fuga de capitais", etc. - que os leitores mais velhos se lembrarão, sobretudo do período pré-CEE, e que no fundo fazem parte do mundo dos câmbios fixos: "divisas" são as reservas de moeda estrangeira detidas pelo banco central; "fuga de capitais", na prática, consiste em operações financeiras que, ao trocar moeda nacional por estrangeira, diminuem as reservas de moeda estrangeira detidas pelo banco central; as exportações são invariavelmente apresentadas como um meio de "obter divisas", etc.)
O que acontece quando, sobre um governo de esquerda e câmbios fixos, há uma situação em que a moeda nacional está artificialmente valorizada, tornando as exportações demasiado caras e as importações demasiado baratas, e levando assim a que se importe muito mais do que se exporte?
Sendo um governo de esquerda, supostamente não vai fazer políticas de austeridade para arrefecer a economia e assim reduzir as importações; assim, nos primeiros tempos as reservas de divisas do banco central vão-se esvaziando, para pagar as importações.
Chega uma altura em que as reservas se tornam tão pequenas que se torna necessário limitar as importações; isso pode ser feito abertamente, pondo limites quantitativos e qualitativos às importações (foi o que aconteceu na Grécia no verão passado, em que foi criado um comité especial de emergência para autorizar qualquer importação: note-se que nessas semanas, a Grécia tornou-se na prática um pais com uma moeda própria - já que os euros em circulação na Grécia deixaram de ser livremente convertíveis com os euros em circulação no resto da Europa - mas com câmbio fixo - já que o "euro grego" continuou a valer nominalmente o mesmo que o "euro europeu"), mas muitas vezes é feito de forma subretícia, simplesmente atrasando os despachos favoráveis aos pedido para trocar bolivares ou escudos por dólares e apresentando um problema financeiro como sendo apenas um problema administrativo de "demasiada burocracia" (em Portugal, penso que o sistema de limitar as importações era exigir que quem importasse tivesse que preencher um formulário especial - o "Boletim de Registo de Importações" - e depois imprimir uma quantidade limitada desses impressos).
A limitação (aberta ou encapotada) das importações tende a produzir uma escassez no mercado de produtos importados, e em principio ao aumento dos preços (lei da oferta e da procura em ação); por outro lado, tende também a levar a situações em que "conhecer alguém no Ministério" pode ser decisivo para uma empresa conseguir importar produtos (suspeito que isso funcionará ainda mais nos sistemas de limitação subretícia das importações, em que dá mesmo jeito ter um amigo que faz o pedido passar para cima na pilha de documentos para autorizar).
Frequentemente o aumento dos preços leva a decretos congelando-os, mas isso só agrava ainda mais a escassez.
No final, o governo acaba por desvalorizar a moeda, mas aí já é tarde e a curto prazo o único efeito da desvalorização é subir ainda mais os preços.
Ou seja, uma situação de escassez de bens importados e/ou inflação brutal, que parece-me ser exatamente o que está a acontecer na Venezuela (aqui, penso que o que originou a sobre-valorização foi a queda do preço do petróleo, que diminuiu o valor das exportações, e assim levou a que a atual cotação bolivar-dólar deixasse de ser sustentável).
No caso de um governo de direita a segurar um câmbio fixo sobrevalorizado, o resultado costuma ser os bancos centrais a subirem as taxas de juro para atraírem capitais estrangeiros, e assim lançando a economia numa recessão quase permanente.
De novo, não é raro que no fim o governo acabe por desvalorizar a moeda, mas também aí é já tarde e a curto prazo o único efeito da desvalorização e juntar ao desemprego uma subida de preços (creio que a crise argentina foi mais ou menos assim).
Ou seja, o resultado de câmbios sobrevalorizados + políticas de esquerda é uma crise do lado da oferta, com escassez de produtos; já para câmbios sobrevalorizados + políticas de direita o resultado é uma crise do lado da procura, com desemprego e falências em cadeia.
1 comment:
Valeu a pena o pedido :)
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