Ultimamente tem começado a correr em certos sectores a ideia que teria havido também escravos irlandeses (e não apenas negros) nas América.
Uma série de artigos de Liam Hogan desmentindo essa conversa - para abertura, recomendo ‘Irish slaves’: The Convenient Myth (OpenDemocracy):
It was with a heavy heart and no small amount of anger that I decided it was necessary to write a public refutation of the insidious myth that the Irish were once chattel slaves in the British colonies. The subject of this myth is not an issue in academic circles, for there is unanimous agreement, based on overwhelming evidence, that the Irish were never subjected to perpetual, hereditary slavery in the colonies, based on notions of ‘race’. Unfortunately this is not the case in the public domain and the ‘Irish slaves’ myth has been shared so frequently online that it has gone viral.Aliás, basta olhar para o texto original da Constituição dos EUA, nomeadamente para o famoso artigo 1, secção 2, cláusula 3, para ver que há uma grande diferença entre as duas coisas:
The tale of the Irish slaves is rooted in a false conflation of indentured servitude and chattel slavery. These are not the same. (...)
“White indentured servitude was so very different from black slavery as to be from another galaxy of human experience,” as Donald Harman Akenson put it in If the Irish Ran the World: Montserrat, 1630-1730. How so? Chattel slavery was perpetual, a slave was only free once they they were no longer alive; it was hereditary, the children of slaves were the property of their owner (...); a chattel slave was treated like livestock, you could kill your slaves while applying “moderate correction” and the homicide law would not apply; the execution of ‘insolent’ slaves was encouraged in these slavocracies to deter insurrections and disobedience, and their owners were paid generous compensation for their ‘loss’; an indentured servant could appeal to a court of law if they were mistreated, a slave had no recourse for justice. And so on...
Representatives and direct Taxes shall be apportioned among the several States which may be included within this Union, according to their respective Numbers, which shall be determined by adding to the whole Number of free Persons, including those bound to Service for a Term of Years, and excluding Indians not taxed, three fifths of all other PersonsOu seja, as pessoas "bound to Service for a Term of Years" são contadas como "pessoas livres" para efeitos de atribuição de lugares no parlamento aos estados, em vez de serem incluídas entre as tais "all other Persons" (isto é, escravos) que contavam só 3/5, o que mostra que o seu estatuto era visto como estando muito mais próximo do de uma pessoa livre do que do de um escravo.
[Um aparte sobre os "all other Persons" - também é revelador que os "Pais Fundadores" dos EUA tenham andado às voltas para arranjar uma maneira de referir os escravos na constituição sem usar a palavra "escravos"; interessantemente, pôe em causa tanto a narrativa conservadora do "temos que ver as coisas no seu tempo; na altura a escravatura era considerada aceitável" como a narrativa progressista "os fundadores dos EUA eram uma carrada de racistas esclavagistas": na verdade, já na altura a escravatura era um tema extremamente polémico (inclusive muitos proprietários de escravos, como Jefferson e James Madison, eram contra a escravatura, mas depois arranjavam justificações rocambolescas para continuarem a ter escravos) , de tal maneira que tinha que ser referida por eufemismos, tal era a má-consciência]
Outra coisa que a questão dos irlandeses me faz lembrar é a frase de Thomas Sowell que muitos anti-anti-racistas gostam de citar:
Blacks were not enslaved because they were black, but because they were available at the time. Whites enslaved other whites in Europe for centuries before the first black slave was brought to the Western Hemisphere
Isso é idiota - na altura da escravatura transatlântica, o que mais havia eram brancos "disponíveis" na Europa: na altura grassavam as guerras de religião entre católicos e protestante, pelo que poderiam perfeitamente ter escravizado os prisioneiros de guerra e os "hereges" ou os "papistas" (atendendo que era frequente massacrar os indivíduos da facção religiosa oposta quando havia oportunidade, nem seria um grande salto escravizá-los em vez de matá-los); e mesmo presos de delito comum poderiam ter sido escravizados. Houve realmente algo parecido com isso - as condenações perpétuas às galés, usadas em França como substituto para a pena de morte, mas mesmo isso não era escravatura (os filhos dos condenados às galés não se tornavam automaticamente condenados às galés; e além disso não eram comprados e vendidos, estavam adscritos a uma tarefa especifica - remar o barco - em vez estarem genericamente à disposição de um dono, etc.).
Ou seja, nessa altura, mesmo quando podiam, os europeus não escravizavam (a título vitalício e hereditário) outros europeus, o que indica que já na altura existiria um tabu contra isso (tabu esse que, pelos vistos, se aplicava aos europeus mas não aos negros). Claro que se efetivamente tivesse havido escravatura de irlandeses (que, sendo um povo conquistado de uma religião diferente dos conquistadores, seriam realmente os ideais para serem escravizados em massa), isso confirmaria a teoria que não era uma questão de racismo mas de "disponibilidade", mas, apesar do mito, não houve.
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