Henrique Raposo regressa à sua tese da influência marxista-leninista sobre o fundamentalismo islâmico.
O Aspirina B já refutou grande parte da sua argumentação, mas vou acrescentar mais alguma coisa.
"Nos pontos de contacto entre a antiga URSS e as regiões islâmicas, os métodos revolucionários do comunismo fascinaram intelectuais e líderes muçulmanos. Espantados? Porquê? Se os intelectuais de todo o mundo tinham como meta o esquerdismo radical, por que razão haveria de ser diferente com os intelectuais muçulmanos? (ou, neste ponto, o Orientalismo já interessa? Ou aqui os muçulmanos já são uns burrinhos que não entendem a complexidade do marxismo? Mas por que razão os muçulmanos seriam indiferentes ao marxismo quando todas as elites - sul-americanas, africanas, asiáticas, europeias, etc. - sucumbiram aos encantos da coisa?)"
Ninguém negou tal coisa. Ninguém negou que o marxismo influenciou a FLN argelina, a "União das Forças Populares" em Marrocos, o Movimento dos Nacionalistas Árabes, a "ala esquerda" do Baath sírio, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina, os Mujahedeem do Povo do Irão, a "Revolução de Saur" no Afeganistão, as guerrilhas Mukti Bahimi no Bangladesh, intelectuais avulsos como Samir Amim, Tariq Ali ou até Salman Rushdie, etc. O que se está a discutir é se o fundamentalismo islâmico foi influenciado pelo marxismo, não se a intelectualidade do mundo muçulmano foi influenciada pelo marxismo (uma analogia: os intelectuais portugueses dos anos 60 eram esmagadoramente marxistas - isso implicará que o Movimento Jovem Portugal era de inspiração marxista?!). Há de se reparar que o fundamentalismo islâmico só se tornou um movimento de massas nos anos 80, exactamente quando o marxismo passou de moda (no fundo os fundamentalistas são contemporaneos dos então jovens portugueses que andavam com os autocolantes do Freitas do Amaral - alguma ligação tinha de haver!).
O caso do Irão é significativo, já que havia (e há) efectivamente um movimento "muçulmano de esquerda" (à maneira dos nossos "católicos progressistas"), os Mujahedden do Povo, que, após uma colaboração inicial, foi violentamente reprimido pelo regime de Khomeini (melhor prova do carácter conservador do "khomeinismo"?)
Henrique Raposo refere também que os fundamentalistas foram influenciados pelos métodos de organização leninistas, pela ideia de "vanguarda", etc. Bem, a ser verdade, seriam uma espécie de "leninismo sem marxismo" (o método de organização sem a ideologia). Mas, por essa ordem de ideias até a John Birch Society seria "marxista-leninista", já que há quem diga que a sua organização foi copiada da dos comunistas.
E, indo mais longe, pode-se argumentar que a teoria da organização de Lenin foi, ela própria, inspirada na organização das fábricas "capitalistas". Trotsky, num texto da sua fase anti-leninista, "As nossas tarefas politicas" (que ele - se calhar, infelizmente - viria mais tarde a renegar) defendia essa tese. Logo, seguindo esse raciocinio, o fundamentalismo islâmico seria neto do capitalismo (os métodos de organização capitalista teriam influenciado os métodos de organização leninistas, que teriam influenciado os métodos de organização islamitas...).
Seja como for, pelo que se diz da al-Qaeda, a sua organização parece tudo menos leninista - consta que uma das grandes dificuldades para a combater é, exactamente, que não é uma organização... organizada (passe o pleonasmo), à maneira leninista, mas mais uma rede de contactos informais entre grupos dispersos.
Quanto ao argumento de que não se conhecem actos de terrorismo islâmico anteriores aos anos 70, embora não seja integralmente verdadeiro (os Irmãos Muçulmanos do Egipto há muito que estavam ligados a atentados contra politicos egipcios), não tem nada de especial: como eu disse, o fundamentalismo só se tornou uma força relevante nos anos 80.
Finalmente, basta ler textos escritos por esquerdistas em países islâmicos, narrando acontecimentos, p.ex. dos anos 60 ou 70, para ver que, tradicionalmente, esquerdistas e "islamitas" eram inimigos mortais. Um exemplo é o livro de Salman Rushdie, "Os Filhos da Meia-Noite", em que, na "parte paquistanesa", faz frequentemente referência ao papel conservador do Islão (até há uma cena em que o protagonista diz "o olfacto permitiu-me compreender a oposição fundamental entre o Islão e o Socialismo"). Outro exemplo é este texto de um grupo maoista afegão (a "Organização de Libertação do Afeganistão"), em que fala dos confrontos, nos liceus e universidades, entre "marxistas" e "islamitas", nos anos 70.
O Aspirina B já refutou grande parte da sua argumentação, mas vou acrescentar mais alguma coisa.
"Nos pontos de contacto entre a antiga URSS e as regiões islâmicas, os métodos revolucionários do comunismo fascinaram intelectuais e líderes muçulmanos. Espantados? Porquê? Se os intelectuais de todo o mundo tinham como meta o esquerdismo radical, por que razão haveria de ser diferente com os intelectuais muçulmanos? (ou, neste ponto, o Orientalismo já interessa? Ou aqui os muçulmanos já são uns burrinhos que não entendem a complexidade do marxismo? Mas por que razão os muçulmanos seriam indiferentes ao marxismo quando todas as elites - sul-americanas, africanas, asiáticas, europeias, etc. - sucumbiram aos encantos da coisa?)"
Ninguém negou tal coisa. Ninguém negou que o marxismo influenciou a FLN argelina, a "União das Forças Populares" em Marrocos, o Movimento dos Nacionalistas Árabes, a "ala esquerda" do Baath sírio, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina, os Mujahedeem do Povo do Irão, a "Revolução de Saur" no Afeganistão, as guerrilhas Mukti Bahimi no Bangladesh, intelectuais avulsos como Samir Amim, Tariq Ali ou até Salman Rushdie, etc. O que se está a discutir é se o fundamentalismo islâmico foi influenciado pelo marxismo, não se a intelectualidade do mundo muçulmano foi influenciada pelo marxismo (uma analogia: os intelectuais portugueses dos anos 60 eram esmagadoramente marxistas - isso implicará que o Movimento Jovem Portugal era de inspiração marxista?!). Há de se reparar que o fundamentalismo islâmico só se tornou um movimento de massas nos anos 80, exactamente quando o marxismo passou de moda (no fundo os fundamentalistas são contemporaneos dos então jovens portugueses que andavam com os autocolantes do Freitas do Amaral - alguma ligação tinha de haver!).
O caso do Irão é significativo, já que havia (e há) efectivamente um movimento "muçulmano de esquerda" (à maneira dos nossos "católicos progressistas"), os Mujahedden do Povo, que, após uma colaboração inicial, foi violentamente reprimido pelo regime de Khomeini (melhor prova do carácter conservador do "khomeinismo"?)
Henrique Raposo refere também que os fundamentalistas foram influenciados pelos métodos de organização leninistas, pela ideia de "vanguarda", etc. Bem, a ser verdade, seriam uma espécie de "leninismo sem marxismo" (o método de organização sem a ideologia). Mas, por essa ordem de ideias até a John Birch Society seria "marxista-leninista", já que há quem diga que a sua organização foi copiada da dos comunistas.
E, indo mais longe, pode-se argumentar que a teoria da organização de Lenin foi, ela própria, inspirada na organização das fábricas "capitalistas". Trotsky, num texto da sua fase anti-leninista, "As nossas tarefas politicas" (que ele - se calhar, infelizmente - viria mais tarde a renegar) defendia essa tese. Logo, seguindo esse raciocinio, o fundamentalismo islâmico seria neto do capitalismo (os métodos de organização capitalista teriam influenciado os métodos de organização leninistas, que teriam influenciado os métodos de organização islamitas...).
Seja como for, pelo que se diz da al-Qaeda, a sua organização parece tudo menos leninista - consta que uma das grandes dificuldades para a combater é, exactamente, que não é uma organização... organizada (passe o pleonasmo), à maneira leninista, mas mais uma rede de contactos informais entre grupos dispersos.
Quanto ao argumento de que não se conhecem actos de terrorismo islâmico anteriores aos anos 70, embora não seja integralmente verdadeiro (os Irmãos Muçulmanos do Egipto há muito que estavam ligados a atentados contra politicos egipcios), não tem nada de especial: como eu disse, o fundamentalismo só se tornou uma força relevante nos anos 80.
Finalmente, basta ler textos escritos por esquerdistas em países islâmicos, narrando acontecimentos, p.ex. dos anos 60 ou 70, para ver que, tradicionalmente, esquerdistas e "islamitas" eram inimigos mortais. Um exemplo é o livro de Salman Rushdie, "Os Filhos da Meia-Noite", em que, na "parte paquistanesa", faz frequentemente referência ao papel conservador do Islão (até há uma cena em que o protagonista diz "o olfacto permitiu-me compreender a oposição fundamental entre o Islão e o Socialismo"). Outro exemplo é este texto de um grupo maoista afegão (a "Organização de Libertação do Afeganistão"), em que fala dos confrontos, nos liceus e universidades, entre "marxistas" e "islamitas", nos anos 70.
3 comments:
Excelente artigo.
Realmente não há influências, há semelhanças. Mas semelhanças encontram-se entre tudo, até entre o capitalismo da fase «fordista» e a industrialização da União Soviética.
Já agora, não sei se conheces a RAWA (Revolucionary Association of the Women of Afghanistan):
http://www.rawa.org/
Também são maoístas, não sei se ligadas ao mesmo partido que referes. São anti-fundamentalistas.
O fracasso dos movimentos marxistas abriu espaço para os islamitas.
Já conhecia a RAWA, embora ignorasse que fosse maoista.
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