No seu texto desta semana do Expresso/Actual, João Carlos Espada defende a tese que a ideia de "liberdade" não será um produto do Iluminismo mas sim uma ideia há muito "distintiva da civilização ocidental". Eu até nem sou dessas pessoas que acham que o mundo só apareceu no século XVIII, pelo que nem discordo muito.
No entanto, já tenho sérias dúvidas face à tese de JCE e de David Hackett Fisher (autor a que ele faz referência) de que "a maior parte das linguas não ocidentais não tinham uma palavra para liberdade" (o que, provavelmente, tem implicita a ideia de que não tinham o conceito de "liberdade"). E há logo uma coisa que me faz duvidar: é referido que a lingua inglesa têm, não uma, mas duas palavras para "liberdade": "liberty" (de origem latina) e "freedom" (de origem germânica). Ora, se o latim e os dialectos germânicos, evoluindo separadamente (e falados por povos que, na altura, tinham pouca ligação entre si) criaram ambos uma palavra para o conceito de "liberdade", seria uma coincidência muito grande que só essas povos tenham criado essa palavra. Por outras palavras, se as linguas que deram origem às modernas linguas ocidentais já tinham a palavra "liberdade" antes sequer de existir uma "civilização ocidental" (que ligação havia entre o Império Romano e as tribos "bárbaras" da Germânia e da Escandinávia?), parece-me muito improvável que só esses povos (e mais um ou outro) tenham criada a palavra (e o conceito). É que se tivesse sido só um povo a inventar a palavra, e a partir daí passado para as outras linguas, sempre se poderia aceitar que era uma especificidade desse povo, mas assim parece-me muito improvável (só existirem duas "culturas" que, separadamente, "criaram" o conceito de "liberdade", e essas duas "culturas" estarem ambas no espaço físico a que, hoje, chamamos "Europa" - não é coincidência a mais?)
Outro exemplo: a palavra russa para "liberdade" ("svoboda") não tem grande semelhança com as palavras latinas ou germãnicas equivalentes, o que quer dizer que a palavra surgiu autonomamente entre os Eslavos. Não é uma coincidência cada vez mais improvável que Latinos, Germanos e Eslavos tenham, separadamente, criado o conceito de "liberdade" e os outros povos não o tenham?
Claro que é dificil verificar se eles estão certos ou errados, porque:
a) Mesmo que eu tivesse meios de ver se as outras linguas têm uma palavra para "liberdade" (e, actuamente, as principais devem ter), é possível que a palavra só tenha surgido por "contágio" ocidental (no entanto, em principio, se a palavra for muito diferente de "freedom" ou "liberdade", é sinal que surgiu por si mesma)
b) É dificil determinar se uma palavra, usada noutro contexto social e politico, significa exactamente o mesmo que uma palavra ocidental. Por exemplo, será que a palavra tuaregue "Imashaghen" significa "livre" ou, antes, significará "senhor" (o argumento de D. H. Fischer e JCE é que na maior parte das culturas não ocidentais, o oposto de "escravo" não era "livre": era o equivalente a "master" ou "senhor ou dono de escravos")?
c) Quase todos os dicionários on-line (como este) , no que respeita a linguas não ocidentais, dão o resultado na ortografia local, o que torna impossível a um leigo ver qual a palavra árabe ou chinesa para "liberdade" - aparece-nos um monte de caracteres incompreensiveis.
No entanto, em árabe, liberdade diz-se "hurriyah" (embora possa ser importada do turco); já a palavra "democratico" ("dimuqrati") soa claramente a "importada".
Em curdo "liberdade" diz-se "azad", em iraniano "azadi". Pelo menos num dialecto afegão também existe a palavra "azadi" (como nesta canção da Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão).
Em turco pode ser "uzrluk" ou "hurriyat" (como "hurriyah" também se usa em árabe, não faço ideia quem importou de quem).
Em filipino (penso que o nome correcto é "tagalo"), liberdade diz-se "kalayaan".
Em cingalês, liberdade diz-se "nidahas".
Em bahasa indonésio, "merdaka".
Mas o que é que interessa esta conversa toda?, poder-se-á perguntar. É que serve para ilustrar um ponto que é partilhado por "ocidentalócentricos", por um lado, e "relativistas culturais", por outro: ambos têm tendência a considerar que certos valores são específicos da "civilização ocidental". P.ex., ambos tendem a achar que a ciencia, a liberdade, etc. são especificamente "ocidentais", e completamente estranhos às outras culturas/civilizações. No fundo, partilham o mesmo "juizo de facto", apenas mudando no "juizo de valor": uns concluem que a "civilização ocidental" é intrinsicamente "superior", enquanto outros concluem que não há valores universais (discordando de ambos, a mim parece-me que a posição relativista é mais coerente).
A minha posição é a oposta: que a Humanidade é, fundamentalmente, a mesma em toda a parte.
No entanto, já tenho sérias dúvidas face à tese de JCE e de David Hackett Fisher (autor a que ele faz referência) de que "a maior parte das linguas não ocidentais não tinham uma palavra para liberdade" (o que, provavelmente, tem implicita a ideia de que não tinham o conceito de "liberdade"). E há logo uma coisa que me faz duvidar: é referido que a lingua inglesa têm, não uma, mas duas palavras para "liberdade": "liberty" (de origem latina) e "freedom" (de origem germânica). Ora, se o latim e os dialectos germânicos, evoluindo separadamente (e falados por povos que, na altura, tinham pouca ligação entre si) criaram ambos uma palavra para o conceito de "liberdade", seria uma coincidência muito grande que só essas povos tenham criado essa palavra. Por outras palavras, se as linguas que deram origem às modernas linguas ocidentais já tinham a palavra "liberdade" antes sequer de existir uma "civilização ocidental" (que ligação havia entre o Império Romano e as tribos "bárbaras" da Germânia e da Escandinávia?), parece-me muito improvável que só esses povos (e mais um ou outro) tenham criada a palavra (e o conceito). É que se tivesse sido só um povo a inventar a palavra, e a partir daí passado para as outras linguas, sempre se poderia aceitar que era uma especificidade desse povo, mas assim parece-me muito improvável (só existirem duas "culturas" que, separadamente, "criaram" o conceito de "liberdade", e essas duas "culturas" estarem ambas no espaço físico a que, hoje, chamamos "Europa" - não é coincidência a mais?)
Outro exemplo: a palavra russa para "liberdade" ("svoboda") não tem grande semelhança com as palavras latinas ou germãnicas equivalentes, o que quer dizer que a palavra surgiu autonomamente entre os Eslavos. Não é uma coincidência cada vez mais improvável que Latinos, Germanos e Eslavos tenham, separadamente, criado o conceito de "liberdade" e os outros povos não o tenham?
Claro que é dificil verificar se eles estão certos ou errados, porque:
a) Mesmo que eu tivesse meios de ver se as outras linguas têm uma palavra para "liberdade" (e, actuamente, as principais devem ter), é possível que a palavra só tenha surgido por "contágio" ocidental (no entanto, em principio, se a palavra for muito diferente de "freedom" ou "liberdade", é sinal que surgiu por si mesma)
b) É dificil determinar se uma palavra, usada noutro contexto social e politico, significa exactamente o mesmo que uma palavra ocidental. Por exemplo, será que a palavra tuaregue "Imashaghen" significa "livre" ou, antes, significará "senhor" (o argumento de D. H. Fischer e JCE é que na maior parte das culturas não ocidentais, o oposto de "escravo" não era "livre": era o equivalente a "master" ou "senhor ou dono de escravos")?
c) Quase todos os dicionários on-line (como este) , no que respeita a linguas não ocidentais, dão o resultado na ortografia local, o que torna impossível a um leigo ver qual a palavra árabe ou chinesa para "liberdade" - aparece-nos um monte de caracteres incompreensiveis.
No entanto, em árabe, liberdade diz-se "hurriyah" (embora possa ser importada do turco); já a palavra "democratico" ("dimuqrati") soa claramente a "importada".
Em curdo "liberdade" diz-se "azad", em iraniano "azadi". Pelo menos num dialecto afegão também existe a palavra "azadi" (como nesta canção da Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão).
Em turco pode ser "uzrluk" ou "hurriyat" (como "hurriyah" também se usa em árabe, não faço ideia quem importou de quem).
Em filipino (penso que o nome correcto é "tagalo"), liberdade diz-se "kalayaan".
Em cingalês, liberdade diz-se "nidahas".
Em bahasa indonésio, "merdaka".
Mas o que é que interessa esta conversa toda?, poder-se-á perguntar. É que serve para ilustrar um ponto que é partilhado por "ocidentalócentricos", por um lado, e "relativistas culturais", por outro: ambos têm tendência a considerar que certos valores são específicos da "civilização ocidental". P.ex., ambos tendem a achar que a ciencia, a liberdade, etc. são especificamente "ocidentais", e completamente estranhos às outras culturas/civilizações. No fundo, partilham o mesmo "juizo de facto", apenas mudando no "juizo de valor": uns concluem que a "civilização ocidental" é intrinsicamente "superior", enquanto outros concluem que não há valores universais (discordando de ambos, a mim parece-me que a posição relativista é mais coerente).
A minha posição é a oposta: que a Humanidade é, fundamentalmente, a mesma em toda a parte.
1 comment:
quando se fala de liberdade é preciso termos em conta a definição desta palavra.
a palavra liberdade existe em qualquer cultura, excepto talvez em algumas tribos longinquas e remotas, pois nunca tiveram uma forma de governo formal ou opressão como organização social.
existem muitas tribos onde até as mulheres tem uma palavra decisiva, algo que na nossa cultura durante seculos isso não era possivel.
por outro lado, é preciso reconhecer a relação imperio-cultura. todos os grandes imperios tiveram uma ou mais capitais intelectuais, desde os sumerios etc.
não estou a dizer que uma cultura seja superior a outra mas antes a constatar o facto de que a riqueza cultural se dá com a interação entre diferentes povos, o estabelecimento de uma classe, etc. algo que sucede em imperios sejam eles formados com a violencia ou não.
nesta questão da liberdade e noutras que se relacionam com valores, valores estes do mesmo espirito (humano) concordo com o miguel madeira. quando diz:"a Humanidade é, fundamentalmente, a mesma em toda a parte."
e acrescento, é o mesmo espirito (humano) nas suas diferentes formas, cores, sons, sabores, etc.
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