Saturday, June 17, 2006

Re: Re: O anarco-comunismo é absurdo? - III

Dos Santos escreve:

"Outra questão que surge é - quem dá o direito aos que adoptem um sistema, como o de instalar comunas, de o impor, definir a forma de produção das comunidades alheias e dos seus elementos mesmo contra a sua vontade?"


Essa objecção pode ser aplicada a qualquer sistema de propriedade - em qualquer sistema de direitos de propriedade (seja ele capitalista, feudal, distributista, georgista, tuckerista, estato-socialista, anarco-socialista, etc.) toda a gente que vive numa dada comunidade geográfica é obrigada a respeitá-lo, quer queira quer não (na realidade, se cada individuo fosse livre de escolher que sistema de direito de propriedade iria respeitar, isso significaria a abolição pura e simples da propriedade).

"O comentário do Miguel assume implicitamente uma visão da propriedade como algo não natural, sendo apenas um resultado final da lei imposta pelo Estado. Acontece que esta visão dos factos não representa a realidade e aí reside toda a confusão sobre a ideia de que o anarco-conumismo é válido ao idealizar um sistema em que o conceito de propriedade é distinto de qualquer ideologia que defenda a liberdade. Claro que poderemos imaginar que 100% das pessoas desejariam ter um regime anarco-comunista - caso em que este seria válido - mas isso é totalmente ingénuo, como eu sugeria na entrada anterior. Assume-se que ninguém estaria a favor de um reconhecimento (mesmo que mínimo) da propriedade privada, o que é totalmente contra a natureza humana e todo o panorama oferecido pela história da humanidade que, na verdade, não pode ser dissociada da anterior"

Quanto ao argumento de que, para funcionar, o “anarco-comunismo” implicaria que 100% das pessoas estivessem de acordo em não estabelecer propriedade, quase que diria que é exactamente ao contrário – se não existisse qualquer espécie de coacção, o estabelecimento de direitos de propriedade é que implicaria que 100% das pessoas concordassem com ele (e nos termos propostos). Se algum individuo não concordasse com a existência de propriedade (ou concordasse em abstracto, mas discordasse com o direitos de propriedade instituídos em concretos), poderia desrespeitá-la à vontade, e se alguém lhe dissesse “Não mexas ai que isso é meu!” ele poderia argumentar “Como é que é seu? Eu não assinei nenhum acordo reconhecendo-o como proprietário deste bem (ou aceitando como válido o processo que usou para estabelecer o seu título de propriedade sobre este bem). Se as outras pessoas o reconhecem como dono deste bem, isso é lá com elas, que eu não o reconheço e acabou!”.

Claro que isto é um exagero da minha parte – não é nem 100% para uma coisa, nem 100% para outra. Numa sociedade sem Estado, o sistema de direitos de propriedade em vigor numa determinada área acabaria, na prática, por ser o sistema aceite como válido pela generalidade das pessoas nessa área.

Regressemos ao exemplo da praia: imaginemos que eu me proclamo – usando uma qualquer justificação - proprietário de um pedaço da praia e digo que só pode lá entrar quem me pagar; alguém recusa-se a pagar-me e entra na praia à mesma (caso eu tenha feito uma vedação, corta-a). Eu recorro a uma “agência de protecção” para “expulsar os invasores”; as pessoas que querem ir à praia recorrem a uma “agência de protecção” (ou uma “associação de protecção”) para os “proteger dos gangues armados que semeiam o terror na praia” (i.e., da minha AP). O que aconteceria?

Claro que é difícil prever o desfecho de uma situação destas, mas é legitimo supôr que uma AP que se predispussesse a defender "direitos de propriedade" que muita gente achasse "ilegitimos" iria envolver-se muito frequentemente em situações de conflito, logo teria custos mais elevados, e em pouco tempo, ou iria à falência (se funcionasse como uma empresa comercial), ou ficaria sem associados (se funcionasse como uma associação de protecção mútua). Assim, o comportamento racional para as APs seria protegerem e respeitarem o sistema de direitos de propriedade que, numa dada área geográfica, fosse aceite pela maior parte das pessoas (tentar fazer cumprir um sistema de aceitação minoritário seria muito caro), tornando rarissimos conflitos do género acima descrito.

Ou seja, numa região aonde o sentimento predominante fosse a de que as praias devem ser públicas, dificilmente apareceria uma AP que aceitasse proteger o "privatizador" da praia. Pelo contrário, numa região aonde o sentimento predominante fosse a de que as praias podem ser privadas (e se o tal "privatizador" tivesse estabelecido a sua propriedade pelas formas socialmente aceites), dificilmente apareceria uma AP que aceitasse proteger os "anti-privatizadores" (não me perguntem exactamente a partir de que grau de aceitação um sentimento passa a ser "predominante").

O "anarco-capitalista" Wolf DeVoon até tem uma expressão interessante: "Your title deed exists only in the sense that your neighbors consent to that privilege".

[Aliás, uma das razões porque eu não me considero anarquista é porque acho que, se funcionar, a anarquia produzirá resultados muito parecidos com uma democracia (embora mais "directa" e "descentralizada"), logo não há grande utilidade em fazer finca-pé no anarquismo]

5 comments:

Anonymous said...

a praia é um grande exemplo.

felizmente em portugal ainda não estamos tão à rasca para privatizar praias ou rios, como acontece em alguns paises, e que é simplesmente degradante.

o parentesis podemos discutir depois...

Pedro Viana said...

Continuam os posts excelentes. O Dos Santos está quase KO...

Um ponto relevante que o Dos Santos levanta, é a evolução histórica das sociedades humanas. Ele argumenta erroneamente que como tal evolução levou às actuais sociedades, onde existe propriedade privada, então ela é algo de acordo com a natureza humana, e portanto a sua inexistência viola uma liberdade "natural".

O erro evidente neste raciocínio é ignorar que a propriedade privada assenta, tal como o Miguel Madeira tem amplamente demonstrado, na **supressão** da liberdade, por intermédio de coação (hoje em dia geralmente exercida pelo **Estado**), de outros que não o "proprietário" de usufruirem do bem de que ele considera sua "propriedade". Como o Miguel Madeira tem dito, numa sociedade anarquista ninguém impede alguém de usufruir do que considera a sua "propriedade privada", mas também ninguém impede qualquer outro de usufruir dessa mesma "propriedade"... ;)

No entanto, a questão levantada pelo Dos Santos é pertinente. Porque são hoje a maior parte das sociedades Capitalistas e não Anarquistas? Eu acho que a resposta é: porque ao longo do tempo provaram ser mais poderosas. As sociedades Capitalistas, que tiveram o seu início com a criação de estruturas de Poder piramidais e o armazenamento de excedentes agrícolas (Capital), revelaram-se de tal modo agressivas e expansionistas, que rapidamente (em alguns milénios) destruiram a esmagadora maioria das sociedades anarquistas, absorvendo quer as suas populações (que sobraram da mortandade resultante da agressão das sociedades Capitalistas - como no caso das tribos índias americanas) quer os seus territórios e recursos. A voracidade auto-alimentada das sociedades Capitalistas - querem sempre mais - foi demais para uma costelação de sociedades anarquistas que raramente foram capazes de compreender que só teriam chance de sobreviver resistindo em conjunto. Portanto, hoje existe Capitalismo não porque a humanidade assim o escolheu livremente mas sim porque tal lhe foi **imposto** por minorias que assumiram o Poder em certas sociedades utilizando-as depois para adquirir violentamente os recursos de outras. Pode ser considerado um processo "natural", na medida em que teve lugar, mas não foi de modo nenhum resultado da escolha livre. A liberdade diminuiu com a ascenção das sociedades Capitalistas, e não o contrário como o Dos Santos cegamente assume. Será que foi inevitável? Talvez. E se hoje as sociedades capitalistas dessem todas lugar a sociedades anarquistas, poderia acontecer tudo de novo? Como minimizar esse risco? Eu acho que a resposta está na solidariedade: toda a pessoa ou grupo de pessoas que tente coagir outros a obedecer-lhes, negando o seu acesso de modo equatitativo aos recursos disponíveis, deve ser confrontado com a resistência de indivíduos e comunidades. O cancro Capitalista (a analogia é praticamente perfeita) tem de ser impedido de criar metástases.

Miguel Madeira said...

Só um detalhe: creio que quem acabou com grande parte das sociedades mais ou menos "anarquistas" que houve na história foi o "feudalismo" (i.e., reis, imperadores e afins) - em larga medida, o "capitalismo" encontrou o trabalho já feito (embora também tenha contribuido).

Agora, a razão porque, frequentemente, os "Estados" derrotam as "anarquias" já seria um tema para reflexão.

Anonymous said...

o dos santos com essa analise entrou numa onda de determinismo historico.

que por acaso, já ouvi em qualquer lado...

Pedro Viana said...

Miguel, o Capitalismo baseia-se essencialmente no postulado de que é legítimo acumular Poder (Capital é apenas uma outra designação), podendo este ser depois utilizado para adquirir mais Poder (i.e. Capital). Se pensar bem, vai ver que o Capitalismo existe na sua essência desde o aparecimento da agricultura, que permitiu a acumulação de excedentes alimentares. Estes funcionaram exactamente como hoje funciona o Capital sob a forma monetária. Aliás, não é concidência que tenha sido nessas sociedades que pela primeira vez apareceu o conceito de moeda... O feudalismo foi uma forma de Capitalismo, em que o Capital estava essencialemente sob a forma imobiliária :) , isto é na forma de terra e outros recursos naturais, mas também e sempre sob a forma de excedentes (não do ponto de vista dos camponeses famintos...) agrícolas colectados pelos senhores feudais que os utilizavam como moeda. Era uma sociedade Capitalista bastante imóvel, coisa que mudou com a ascensão da Burguesia. O Capitalismo é perfeitamente compatível com reis, imperadores e (ditadores) afins, como hoje ainda se pode constatar.