Thursday, March 17, 2011

INVADAM O MUNDO, Murray N. Rothbard

Este texto foi escrito em Setembro de 1994, o autor iria falecer no ano seguinte. Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um académico da Escola Austríaca da economia, fundador do libertarianismo e herdeiro da chamada Old Right. Autor de milhares de artigos e 25 livros. Este ensaio faz parte de uma publicação para que contribuía regularmente nos últimos anos da sua vida, denominada de Rothbard-Rockwell Report (Triple R) que exibe Rothbard nas suas várias facetas: o jornalista, crítico cultural, observador político e organizador de um movimento. Esta publicação acabou por inspirar no seu estilo o site lewrockwell.com.

Traduzido por Carlos Novais, revisto por Elisabete Joaquim e Miguel Madeira.

INVADAM O MUNDO, Murray N. Rothbard

em The Irrepressible Rothbard, Essays of Murray N. Rothbard, Edited by Llewellyn H. Rockwell, Jr., Setembro de 1994 (http://www.lewrockwell.com/rothbard/ir/Ch34.html)

Quando o Comunismo e a União Soviética colapsaram há uns anos, parecia evidente que tinha de se pôr em curso uma reavaliação profunda da política externa americana. Durante todo o período da Guerra Fria, a política externa dos EUA reduziu-se simplesmente a uma cruzada bipartidária intervencionista contra a União Soviética, e as únicas diferenças eram precisamente sobre quão longe esse intervencionismo global devia ir.

Mas quando a União Soviética se desmoronou, uma nova reflexão parecia absolutamente necessária, pois o que poderia agora constituir a base da política americana? Mas, entre os intelectuais e elites, moldadores da opinião nos Estados Unidos e até mesmo no mundo, nenhuma reavaliação acabou por ocorrer. Com a excepção de Pat Buchanan e nós paleos[1], a política externa dos EUA prosseguiu como de costume, como se nunca se tivesse dado o colapso da Guerra Fria. E de que forma? Buchanan e os "neo-isolacionistas" pediram que a intervenção americana passasse a ser pautada estritamente pelo interesse nacional americano. Mas a Aliança progressista [n.t. no original: liberal] /neocon, agora mais do que nunca (agora que o comunismo soviético, sobre o qual os neocons eram mais duros, desapareceu), fingiu primeiro concordar e, em seguida, simplesmente e astuciosamente redefiniu o conceito de "interesse nacional" de forma a cobrir todo e qualquer mal, todo e qualquer drama debaixo do Sol. Está alguém com fome algures não importa quão longe das nossas fronteiras? Isso é do nosso interesse nacional. Está alguém ou algum grupo a matar algum outro grupo num qualquer ponto do planeta? É do nosso interesse nacional. Há algum Estado que não seja uma "democracia" tal como definida pelas nossas elites progressistas e neocons? Isso coloca um desafio ao nosso interesse nacional. Está alguém a incorrer em Pensamentos de Ódio [n.t. no original: Hate Thought] algures no globo? Isso tem que ser resolvido pelo nosso interesse nacional.

E assim qualquer problema ocorrido em qualquer parte passa a fazer parte do nosso interesse nacional, e passa a ser obrigação do bom velho Tio Sam, como a Única Superpotência Sobrevivente e pelo mundo indigitado para ser o Sr. Resolve-Tudo, dar uma solução a cada um desses problemas. Porque "nós não podemos ficar de braços cruzados" quando alguém algures passa dificuldades, quando alguém bate na cabeça de alguém, quando alguém é antidemocrático ou comete um Crime de Ódio [n.t. no original: Hate Crime].

Deve agora ser claro que neste momento não há virtualmente qualquer distinção na política externa entre os progressistas [n.t. no original: liberals] e os neocons, entre os Tony Lewis e os Bill Safire, entre a Commentary e o Washington Post. Onde quer que exista um problema, todos os analistas liberals-neocons e bombardeiros de sofá [n.t. no original: laptop bombardiers] torcem invariavelmente por uma intervenção dos EUA, pela guerra pura e simples, ou através da via favorita de passos graduais que são as "sanções". As Sanções, uma escalada de intervencionismo passo-a-passo, são uma política favorita dos pro-intervencionistas. Pedir o bombardeamento imediato ou invasão do país X assim que começa um qualquer problema pareceria excessivo e até mesmo um pouco doido para a maioria dos americanos que não tem o mesmo sentimento de profundo compromisso com a noção dos EUA como Solucionador Global de Problemas que têm os especialistas e as elites. As sanções podem saciar temporariamente a sede de beligerância. E assim temos as sanções: colocar à fome os vilões, cortar as redes de transporte, o comércio, confiscar os seus bens em termos de activos financeiros e, finalmente, quando isso não funcionar, bombardear, enviar tropas, etc. Estas são normalmente enviadas primeiro como força missionária puramente "humanitária", para salvaguardar a ajuda "humanista" das "forças de manutenção da paz" da ONU. Mas logo de início, alguns nativos locais desventurados, virando-se irracionalmente contra toda essa ajuda e altruísmo, começam a atirar sobre os seus muito amados ajudantes que ficam então sob fogo, e assim os EUA são obrigados a enfrentar a perspectiva de ter de enviar tropas, as quais recebem ordens para atirar a matar.

Nas últimas semanas, para além de tropas humanitárias, tem havido uma escalada de opinião sobre "sanções" a serem aplicadas pelos EUA: contra a Coreia do Norte é claro, mas também contra o Japão (por não comprarem mais exportações americanas), contra o Haiti, contra os Sérvios da Bósnia (sempre referida como a “auto-denominada República Sérvia” – Isto em contraste com todos os outros governos que serão "denominados" por outros?). Jesse Jackson quer que os Estados Unidos invadam prontamente a Nigéria, e agora temos o Senador Kerry (D., Massachusetts) a pedir sanções contra nosso antigo inimigo,o Canadá, por não acolher os pescadores de Nova Inglaterra nas suas águas.

Mas OK, chegou o momento de sermos duros e consistentes. As sanções são apenas uma forma covarde de compromisso propostas por meias tintas. Temos de encarar de frente o facto de que não há um único país do mundo que possa ser comparado com os sublimes padrões morais e sociais que são a marca registada dos E.U.A.: até mesmo o Canadá merece uma repreensão. Não há um único país do mundo que, como os Estados Unidos, tresanda tanto a democracia e "direitos humanos" e esteja livre de criminalidade e assassinatos e de discurso de ódio e actos antidemocráticos. Muito poucos outros países são tão politicamente correctos como os Estados Unidos, ou têm a sagacidade para impor um programa massivo de estatismo em nome da "liberdade", "comércio livre", "multiculturalismo" e para "expandir a democracia".

E então, uma vez que nenhum outro país é capaz de estar à altura dos standards dos E.U. num mundo de Única Superpotência, todos eles devem ser severamente postos na ordem pelos EUA, e nesse sentido faço eu uma Proposta Modesta para a única política externa consistente e coerente: os Estados Unidos devem, muito em breve, Invadir o Mundo! Sanções são coisa menor. Nós devemos sim invadir todos os países do mundo, talvez suavizando-os previamente com um maravilhoso espectáculo high-tech de bombardeamentos com mísseis, cortesia da CNN.

Mas como seremos nós vistos aos Olhos da Opinião Pública Mundial se invadirmos o mundo? Não se preocupem; podemos sempre obter a cobertura das nossas marionetas mantidos na ONU, NATO ou qualquer outra coisa. Boutros Boutros-Ghali, que já renegou o seu acordo para cumprir apenas um mandato como secretário-geral da ONU, é perfeito para o trabalho; nunca existiu um oficial da ONU com mais apetência pela cadeira Mas e quanto ao Conselho de Segurança? Tudo OK, porque podemos sempre comprar a abstenção da China ou de quem quer que seja por alguns bilhões. Não há problema.

E assim o mundo inteiro vai viver sob as bandeiras dos E.U. e ONU, felizes, protegidos, livres de criminalidade e pobreza e ódio. O que poderia ser mais inspirador?

Alguns isolacionistas, limitados e mesquinhos, egoístas, indiferentes e provavelmente anti-semitas, irão no entanto queixar-se. Eles gostam de evocar várias "lições," por exemplo, a Somália. Vão provavelmente dizer: sim, com toda certeza que conseguimos ir lá e "ganhar" com facilidade, mas como vamos sair? Para implementar a democracia, acabar com o genocídio, pobreza, ódio, etc., nós os Estados Unidos, temos de construir a infra-estrutura do país, criar e treinar um exército e uma polícia (preferencialmente nos EUA).Temos de doutrinar o infortunado país sobre liberdade e eleições livres, criar os seus dois partidos políticos Respeitáveis e começar um amplo programa de auxílio de biliões de dólares para fazer com que todos sejam saudáveis, sábios e com bem estar, fornecer um programa educacional (repleto de enormes sacos de alimentos atirados de avião e de modo a que a CNN possa ajudar – mesmo que alguns dos "ajudados" sejam mortos pelos sacos), proibir fumar e a junk food e alimentá-los a todos com tofu e mangas cultivadas por métodos orgânicos.

E o que dizer do Partido Regressar? O que fazer com a nossa experiência universal de que quando o exercito americano sai, todo o auxílio, infra-estrutura, etc., vai pelo cano abaixo? A solução é simples, embora ela tenha sido muito ignorada porque alguns teimosos e egoístas míopes fascistas iriam fazer um enorme alarido. A solução: Nunca Sair! Para Sempre. Desta forma não precisamos de nos preocupar sobre como preparar os nativos para a transição. Devemos permanecer e alegremente Governar o Mundo. Permanentemente para o bem de todos. Um Paraíso na Terra. Podemos chamá-la, a "política do significado" [n.t. no original “politics of meaning”].

Mas como vamos obter a mão-de-obra necessária para fazer o trabalho de ocupação? Não se preocupem com isso. Em primeiro lugar, poderemos ter um exército de 20 milhões de homens e mulheres, devidamente gayzado e feminizado e Politicamente Corrigido, marchando com pacotes de alimentos, medicamentos e hipodérmicos numa mão e armas e preservativos na outra. Nós temos muitas opções de recursos humanos, poderemos reactivar o serviço militar obrigatório, restaurar o Corpo de Paz, e/ou podemos criar um enorme programa de serviço nacional do tipo Buckley-Clinton, onde as crianças terão a oportunidade de "dar de volta à sociedade" com dois anos interessantes de saudável amadurecimento, para a criação de infra-estruturas no Zaire ou Haiti ou Coreia do Norte. Com este programa, as crianças poderiam mesmo "dar de volta" ao Planeta. O quê? O senhor aí está a objectar que alguns dos nossos filhos podem contrair doenças ou levar um tiro ao longo do caminho? Bem, ainda assim estará tudo OK, porque, como se diz hoje em dia, cada fracasso é uma "experiência de aprendizagem".

E naturalmente, os E.U.A. apenas vão fornecer a espinha dorsal das forças permanentes dos Ocupantes do Mundo. O resto dos slots será preenchido por tropas de cada um dos outros países do mundo, liderado pela ONU, NATO, etc., fornecendo experiências igualmente saudáveis e alegres para outros ocupantes: Ucranianos, Zairianos, Vietnamitas, etc. Ver tropas vietnamitas, por exemplo, a ocupar a Holanda, proporcionaria lições de democracia global instrutivas em multiculturalismo e amor mútuo entre todos os povos. Claro que os mais tacanhos e de vistas curtas terão que ser tratados com severidade, mas estou confiante que programas maciços de educação, cursos de orientação, professores, livros e panfletos, etc., irão mudar o clima comum de ódio étnico para um de amor e compreensão. Para além dos professores, atitudes detestáveis e antidemocráticas serão erradicadas por uma legião de psiquiatras, psico-terapeutas, etc.

Como vai tudo isto ser financiado? Cada nação irá, naturalmente, contribuir com o seu "quinhão" adequado e justo de despesas, mas dado que os E.U.A. são a Única Superpotência do mundo, temos de encarar o facto de que os Estados Unidos terão de pagar a parte maior – talvez uns 80 ou 90 por cento – do programa.

E claro que há sempre umas quantas mentes simples, velhos do Restelo, egoístas dogmáticos, que se vão afastar desta proposta e afirmar que é demasiado "caro". Há sempre aqueles que conhecem o preço de tudo e o valor de nada. Mas novamente: não há que nos preocuparmos. Haverá um esforço educativo transversal maciço, de todas as partes do espectro político, da esquerda Clintoniana ou Jacksonian para as dezenas de auto-proclamados institutos de "mercado livre", que, devidamente financiados pelo governo e pelas elites corporativas, vão inundar-nos de argumentos de como o programa "se pagará por si próprio”, que está na melhor tradição do Mercado Livre e Democracia; que essas despesas não são realmente dispendiosas porque constituem "investimento em capital humano" e, portanto, pouparão dinheiro no longo prazo aos contribuintes, etc. E ao eliminarmos todas as ténias intestinais no mundo reduziremos custos médicos e acabaremos a pagar menos dinheiro no futuro. Eventualmente.

Qualquer resíduo de queixa, qualquer uma que sobreviva a este esforço educativo – e vamos enfrentá-lo, existem sempre algumas maçãs podres em todos os cestos - será enviado para "centros de reciclagem educacionais," onde as suas objecções vão ser colocadas a marinar e, após alguns anos saudáveis nestes campos a podar e lendo obras seleccionadas de pensadores de esquerda, liberal, neocon e de libertários pragmáticos, eu tenho a certeza que irão emergir felizes e ajustados à Admirável Nova Democracia Global do amanhã.

Acabei assim de apresentar acima as implicações que seriam consistentes com a nossa persistente política de intervencionismo, descrevendo o sistema para o qual este país está a tender.

A questão é: o que podemos nós fazer para evitar esta tendência? Como podemos Fazê-la Desaparecer? Como podemos nós prevenir "1984"? Infelizmente, o Partido Republicano, embora significativamente melhor que os democratas na política interna, tem sido, se alguma coisa, pior e mais intervencionista nos assuntos externos. Notar a reacção republicana com Slick Willie[2]: acusaram-no de trapalhice, evasão, contínuas mudanças de linha (tudo verdade), mas excepto no Haiti, na verdade não se opõem a uma intervenção per se. Claro que, seria bom ter uma política externa clara e consistente, mas clara em que direcção? Um Inimigo claro não é exactamente uma bênção.

Enquanto isso, as coisas estão longe de estarem perdidas. Há uma vaga de base anti-guerra como de paleo-popular neste país, o que é reconfortante. Há todo o tipo de manifestações: conselhos de cidadãos conservadores, movimentos de milícia, xerifes que se recusam a fazer cumprir a lei Brady, pivots de programas de rádio de direita, falta de entusiasmo para enviar tropas americanas para serem mortos na Somália ou Haiti, um movimento de Buchananites, e cada vez mais bom senso sobre esta questão pelo colunista Robert Novak. Entretanto, o mínimo que a Triple R pode fazer é acelerar o Clima de Ódio na América e esperar pelo melhor.


[1]n.t.: o termo paleo tinha por esta altura surgido para mencionar os paleo-libertarians e os paleo-conservatives, como contraposição aos left-libertarians (atribuído por exemplo ao Cato Institute e Partido Libertarian, ambos fundados por Murray N. Rothbard e dos quais acabou por se afastar) e neo-conservadores. As diferenças ideológicas passam pelo conservadorismo social (com alguma predominância de autores católicos e também do Sul dos EUA) e estrito localismo dos primeiros, e uma certa visão de direitos assegurada e gerida centralmente pelo governo federal dos segundos, os primeiro também estritos não-intervencionistas em política externa (Patrick J. Buchanan iria publicar o seu “A Republic, not an Empire) o que os faziam e fazem inimigos naturais do neo-conservadorismo (que acusam de conter bases progressistas revolucionárias no seu programa de levar a democracia ao mundo, espécie de messianismo anti-natura presente na direita de hoje), que nesta altura, dominavam já o espectro mainstream da política americana em ambos os partidos.

[2]n.t. apelido satírico para referir Bill Clinton (estamos em 1994).

9 comments:

Pedro M. said...

Falta acento em "pôr" logo na primeira frase. Ainda não li o resto.

CN said...

Ok, obrigado, corrigido.

Ricardo Sebastião said...

Excelente artigo! Com uma actualidade impressionante ao fim de mais de 15 anos! Ah, e bom esforço de tradução ;)

José Meireles Graça said...

Ah bom, se se pode dar palpites quanto à tradução, também quero: i) "Quando o Comunismo e a União Soviética colapsaram há uns anos atrás ...": O "atrás" está a mais; ii)" ... uma vez que nenhum outro país é capaz de estar há altura dos standards dos E.U. num ...": "à" e não "há". Quanto ao artigo - notável, valeu a visita.

CN said...

Ok obrigado, corrigido.

CN said...

Hoje chamaram-me a atenção que "Eventually" pode/deve ser traduzido por "Por fim" e não "Eventualmente".

Alguma opinião?

Anonymous said...

A minha tradução de "eventually" é "mais tarde ou mais cedo", "por fim" ou "finalmente" conforme o contexto.

O nosso "eventualmente" pode ou não acontecer; o "eventually" deles acaba normalmente por acontecer.

Anonymous said...

Ainda ontem perguntei isso do "eventually" à minha namorada inglesa. E de facto, ela confirma, não quer dizer "eventualmente", mas "Por fim, no final, finalmente, ao fim ao cabo". ;-)

e já agora, o "actually" não quer dizer "actualmente", mas antes "na realidade".

CN said...

Parece-me então que "Por fim." será o adequado neste caso.