Wednesday, March 09, 2011

O melhor romance de esquerda?

O economista liberal (libertarian, em americanês) Tyler Cowen escreve sobre romances de esquerda e de direita:

Isaac L. writes to me:

I am hoping you and your readers can help settle an issue. I am a left-leaning voter.  A conservative friend and I recently discussed Atlas Shrugged, which he said was the ultimate right-wing novel. He challenged me to point him towards a left-wing novel that does for that side of politics what Rand does for the right. I think the book needs to do two things: justify the welfare state and argue the limitations of the invisible hand. While I can think of lots of non-fiction texts, I am drawing blank on fictional offerings.

Do you or your readers have any suggestions? Any assistance would be greatly appreciated.

What jumps to mind is Steinbeck's Grapes of Wrath, but if you read the request carefully it does not qualify.  Here is a list of thirty famous left-wing novels, heavy on the mid- to late nineteenth century.  There is Bronte, Dickens, Hugo, Sinclair, Zola, Gorky, Jack London, and Edward Bellamy.  None of these books is as analytically or philosophically comprehensive as the novels of Ayn Rand.
Nos comentários, vários leitores observaram que Atlas Shrugged não é o melhor exemplo de um romance de direita - tem lá a defesa do capitalismo liberal, muito muito pouco (ou nada) de "Deus, Pátria e Família" e que Dostoevsky, Chesterton, T. S. Eliot, Tolkien  ou Solzhenitsyn seriam melhores exemplos que Ayn Rand.

Mas, voltando à questão, qual poderá ser o "melhor romance de esquerda", ou o "grande romance de esquerda", ou o "fundamental romance de esquerda", ou o "definitivo romance de esquerda" (não é muito fácil em português expressar o conceito de "ultimate")?

Em primeiro lugar, eu tenho uma teoria (exposta num rascunho que está algures enterrado nos arquivos do blogger - entretanto publicado em agosto de 2011) que o pensamento da esquerda pode ser catalogado em 3 gerações - a primeira vai de 1789 a 1848 (mas prolongando-se talvez até 1914) e tem como bandeiras a república, o sufrágio universal, o anti-clericalismo, etc. (em Portugal, é capaz de ter sido hegemónica até 1926, tirando claro, a questão do sufrágio universal); a segunda surge por volta de 1848, torna-se dominante a partir de 1917 até começar a enfraquecer a partir de 1968 e sobretudo de 1989 - a sua bandeira é a defesa da classe operária contra os capitalistas; a terceira geração começa a afirmar-se em 1968 - é a esquerda das "causas fracturantes".

Como é que essas esquerdas se manifestam na literatura?

A primeira esquerda é sobretudo representada pela "ala esquerda" do romantismo (Stendhal, Victor Hugo, etc.) - o seu grande romance será sem dúvida "Os Miseráveis".

A segunda esquerda expressa-se literariamente no naturalismo e no "realismo socialista"/"neo-realismo" - grandes romances dessa área: "Germinal", "As Vinhas da Ira", "A Mãe", "Esteiros", "Levantado do Chão" (para cada país é fácil arranjar um exemplo)... Tyler Cowen rejeita "As Vinhas da Ira", com argumentos que vou discutir mais à frente.

Confesso que tenho dificuldade em arranjar uma expressão literária para a terceira esquerda - é verdade que há uma vasta literatura em volta de temas como a critica ao racismo, à família patriarcal, à moral sexual dominante ou em volta do tema geral do "individuo incompreendido em ruptura com as convenções sociais"; mas essa literatura é largamente anterior ao aparecimento do que eu chamo "terceira esquerda" (e alguma, na época, até era considerada pela "esquerda oficial" como "pequeno-burguesa" ou até "reaccionária") - Oscar Wilde ou Kafka poderiam ser bons exemplos, se tivessem nascido umas décadas mais tarde.

Se passássemos da literatura para o cinema (o que talvez fizesse sentido falando de um movimento das últimas décadas do século XX) , talvez "A Primeira Noite" (realizado na altura certa - 1966 - e com a banda sonora certa) fosse um bom filme representante do espírito da "terceira esquerda" (está lá o essencial - a critica à "moral burguesa", o filho de boas famílias que entra em choque com o seu meio, o desinteresse pelo ter "uma carreira", etc.; e ainda por cima a Miss Robinson estuda em Berkley) - note-se que eu não faço a menor ideia de quais as opiniões politicas dos autores (ou sequer se têm algumas).

Mas creio que há um problema de base na forma como Cowen e Isaac L. põem a questão - "the book needs to do two things: justify the welfare state and argue the limitations of the invisible hand".

Em primeiro lugar, o herói colectivo dos romances de esquerda (e aqui falo sobretudo da esquerda de segunda geração) não costuma ser o "Estado Social" - o tema costuma girar muito à volta de trabalhadores a tentarem organizar um sindicato, ou de camponeses a tentarem ocupar os latifúndios; quando o Estado aparece nesses romances, não é sob a forma de inspectores do trabalho ou de assistentes sociais a protegerem os trabalhadores da exploração e da miséria, é sob a forma de policias (ou eventualmente de militares) a reprimirem os "trabalhadores em luta". A mensagem desses romances costuma mais ser "junta-te aos teus camaradas em luta - divididos somos fracos mas unidos somos fortes", não "vota nos Democratas/Socialistas/Social-Democratas para teres um aumento no abono de família".

Em segundo lugar, é pouco provável que um romance de esquerda se dedique muito a mostrar os limites da "mão invisível"; é mais provável que se dedique a mostrar que a neutralidade do "Estado burguês" é uma fraude; assim, nos romances de Esquerda o alvo não é "o Estado que não faz nada", mas sim "o Estado que não faz nada pelos pobres, mas que anda sempre com os ricos ao colo quando eles precisam" (os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes anda em parte à volta disso - quando há as cheias, o Estado não manda um rebocador para salvar uns barcos que se iam afundar, mas dá apoios aos grandes proprietários rurais que perderam as colheitas).

E agora regressamos a Cowen não achar As Vinhas da Ira como "o grande romance de esquerda". Lendo a discussão, parece ser porque a destruição das colheitas enquanto os desempregados passavam fome era feita, não por iniciativa dos proprietários, mas por politica do governo, para os preços não baixarem. Mas, mesmo não sendo o resultado do "mercado livre", isso continuava a ser o resultado de uma politica favorável aos interesses das empresas agro-industriais (no fundo o Estado estava a obrigá-las a funcionar como um cartel, o que seria mau negócio para cada empresa individual, mas bom para o conjunto das empresas). Ou seja, embora não se enquadre nas regras definidas por Cowen e Isaac L. ("argue the limitations of the invisible hand"), enquadra-se nas convenções habituais do "romance social" (o Estado ao lado dos ricos contra os pobres).

No fundo, o problema aqui é o mesmo que os leva a considerar Atlas Shrugged como "o grande romance de direita" - a partir do momento em que Cowen e o seu correspondente simplesmente equipararam "direita" ao liberalismo clássico,o salto seguinte foi definir "esquerda" como sendo simplesmente o oposto do liberalismo clássico (os liberais clássicos são contra o Estado Social e a favor do mercado livre? então um romance de esquerda deve ter como temas principais a defesa do Estado Social e a critica ao mercado livre!).

3 comments:

João Vasco said...

«No fundo, o problema aqui é o mesmo que os leva a considerar Atlas Shrugged como "o grande romance de direita" - a partir do momento em que Cowen e o seu correspondente simplesmente equipararam "direita" ao liberalismo clássico,o salto seguinte foi definir "esquerda" como sendo simplesmente o oposto do liberalismo clássico (os liberais clássicos são contra o Estado Social e a favor do mercado livre? então um romance de esquerda deve ter como temas principais a defesa do Estado Social e a critica ao mercado livre!).»

Exactamente.

Essa visão é bastante comum. Os "«"«"liberais"»"»" da blogosfera geralmente afirmam que quem é de esquerda defende mais estado; mas muitas das batalhas entre a esquerda e a direita são batalhas em que a esquerda quer menos estado, ou menos poder para o estado.
A questão da pena de morte nos EUA, a dimensão do exército, as penas, e correspondente quantidade de prisões, os poderes do estado no que diz respeito à privacidade (com excepção das questões fiscais em que as coisas se invertem), o direito à blasfémia e as questões da laicidade em geral, etc...

Para a esquerda o herói nunca é o estado. O próprio Marx advogava a destruição do estado, e Bakunin era de esquerda - a divergência entre eles não era sobre se o estado é em última análise boa ou má, mas se ele pode ser instrumentalizado até à sua desejável destruição, ou se deve ser destruído de imediato.

Na esquerda moderada o estado é apenas um instrumento (que por vezes funciona mal) ao serviço da vontade colectiva, e apenas nesta medida é defensável.


A grande diferença entre as diferentes esquerdas e direitas (quer as mais liberais, quer as mais conservadoras) é a protecção que se confere à propriedade privada. Para a direita a propriedade privada é, em todas as suas acepções, um direito tão fundamental como os outros; para a esquerda há outros direitos que podem ser considerados mais importantes (quanto mais à esquerda: saúde, educação, habitação, trabalho, igualdade).



Por fim, costumo traduzir "ultimate" por "derradeiro".

Anonymous said...

João Vasco: bom comentário, seria bom que os teus colegas do blogue (que por vezes parece que aprenderam o que é ser de esquerda a ler blogues de direita liberal) se apercebessem disso.

João Vasco said...

Anónimo:

Uma coisa boa do blogue onde escrevo (o Esquerda Republicana), além de sermos todos uma cambada de "desalinhados" (o que é raro, pelo que tenho visto, em blogues políticos que apresentem conteúdo novo diariamente), é existirem diferentes sensibilidades à esquerda. Uns estão mais à esquerda que outros, uns são mais liberais que outros, de forma que apanhamos um espectro alargado em várias dimensões, e volta meia volta temos discussões acesas nas caixas de comentários.