Wednesday, June 15, 2011

Os economistas e a economia

João Pinto e Castro escreve sobre a questão "Por que é que os economistas aparentam saber tão pouco sobre a economia?".

Antes de abordar esse texto, vou antes citar uma passagem de Pacheco Pereira que me parece relevante: "A nossa situação actual de país tutelado por burocracias internacionais, assim como o ascenso nos últimos anos de uma dominante tecnocrática de "pensamento único" com origem na hegemonia do discurso económico (aliás mais empresarial do que económico), reduzindo a política à economia, favorece estas concepções que são aliás muito fortes na actual maioria" . (destaque meu)

Onde é que eu quero chegar com isto? É que muitas das ideias que são apresentadas à opinião pública como sendo "as ideias dos economistas" são na realidade ideias vindas da área da gestão empresarial, um disciplina completamente distinta (na minha faculdade, até havia um funcionário que dizia que bastava olhar para a roupa para se distinguir um estudante de economia de um de gestão de empresas) - um exemplo é o conceito de "competitividade" (como em "Portugal perdeu competitividade"), que é muitas vezes referido nas páginas de economia dos jornais como se fosse um conceito "económico", mas a que grande parte dos economistas torce o nariz (até porque a primeira coisa que um futuro economista aprende no seu curso é talvez a teoria da vantagem comparativa de David Ricardo, segundo a qual um país, mesmo que seja mais atrasado que outro em tudo, terá sempre um sector em que será mais competitivo; ora, num mundo que funcione de acordo com a visão de Ricardo, a ideia de um país ser globalmente mais ou menos competitivo não faz sentido).

Agora, vamos analisar o artigo do JPC:

Todavia, a síntese dessa investigação que é servida aos estudantes e à opinião pública ignora sistematicamente as limitações da racionalidade humana e as falhas dos sistemas económicos que delas decorrem, em favor de uma visão cor-de-rosa do funcionamento dos mercados desregulados.

Talvez seja o curso que eu tirei que era peculiar, mas nunca dei por isso - passava-se muito mais tempo a falar de falhas de mercado do que a dizer "o mercado desregulado é o melhor".
Assim, embora o estudo do comportamento dos agentes económicos demonstre que os pressupostos da microeconomia estão errados, ela continua a ser ensinada como se nada fosse. A microeconomia - disciplina rainha da síntese neoclássica - adotou, aliás, uma metodologia oposta à da ciência experimental: partindo de um certo número de axiomas, vai por aí fora deduzindo teoremas em catadupa ao jeito de um manual de geometria. Tanto os axiomas como os teoremas são falsos, mas isso não incomoda os guardiões da teoria económica.
Agora entramos no terreno favorito dos modernos críticos da ciência económica, que é basicamente dizer "a ideia que os agentes económicos são perfeitamente racionais e procurando maximizar a sua utilidade está errada, e esse erro metodológico conduz a erro de previsão e de recomendação de politicas". Mas, se pensarmos bem, quais foram os erros a que esse pressuposto levou?

Se, como se deduz do texto, o problema é com a visão cor-de-rosa do funcionamento dos mercados desregulados, isso não tem nada a ver com a metodologia neoclássica - os argumentos pró-regulação em questões como externalidades, concorrência imperfeita, bem públicos, selecção adversa, etc. baseiam-se totalmente no modelo neoclássico do "individuo perfeitamente racional e procurando maximizar a sua utilidade" (na verdade, em questões como os bens públicos ou a selecção adversa, até me parece que é o lado "estatista" que exagera nessa visão, ao assumir que, sem intervenção do Estado, vai toda a gente ser free-rider ou que ninguém vai subscrever um seguro de saúde se for um bocadinho mais saudável que o cliente típico desse seguro).

Mesmo a tese neo-keynesiana de as recessões ocorrem porque os preços demoram a ajustar-se (se tiver disposição, ei-de escrever algo sobre isto) é perfeitamente enquadrável nesse modelo - é só assumir que pensar em mudar os preços, calcular que novos preços praticar e mudá-los efectivamente (imprimindo novos menus, p.ex.) tem um custo e portanto não é "racional e maximizador da utilidade" estar sempre a ajustar os preços à procura.
Os economistas empregam-se sobretudo no estado, nos bancos, na universidade e na televisão. As duas últimas ocupações devem ser consideradas normais, pois alguém deve explicar aos mortais que, por muito mal que as coisas corram, vivemos no melhor dos mundos, apenas perturbado pela inoportuna intervenção de políticos condicionados pelo voto popular. O fascínio dos economistas pelos bancos também não causa estranheza: afinal, como lapidarmente proclamou o assaltante Willie Sutton, "é lá que está o dinheiro".

Já é mais difícil entender-se o que fazem tantos economistas - de facto, a larga maioria deles - a trabalhar no estado, tendo em conta a sua paixão pelo mercado e pelo setor privado e a aversão instintiva que lhes desperta o setor público. Os economistas amam loucamente o mercado livre, a concorrência sem freios, o empreendedorismo audaz e a globalização absoluta - mas só de longe. Dir-se-ia que temem repetir o desapontamento dos Hebreus antigos quando, depois de vaguearem décadas pelo deserto em busca da Terra Prometida, acabaram por descobrir que, afinal, lá não brotavam das pedras o leite e o maná.
Isto é um disparate sem pés nem cabeça - admito que provavelmente a maioria esmagadora dos liberais sejam economistas, mas a maioria (esmagadora?) dos economistas não são liberais (até porque para um economista o liberalismo não é intelectualmente estimulante - é muito mais "divertido" andar a descobrir "falhas de mercado" e pensar em politicas que poderiam ser feitas para resolver essas falhas do que simplesmente dizer "o mercado resolverá o problema por si"; a única variante de liberalismo que me parece divertida para um economista é o anarco-capitalismo, que esse também abre grande margem para para a especulação intelectual sobre como é que as agências de segurança, os tribunais arbitrais e/ou os condomínios privados irão substituir as funções do Estado) - a respeito disso, ver os comentários a este post n'A Douta Ignorância.

4 comments:

rui fonseca said...

"na minha faculdade, até havia um funcionário que dizia que bastava olhar para a roupa para se distinguir um estudante de economia de um de gestão de empresas..."

Essa é boa!!!
Porquê?

Miguel Madeira said...

Bem, eu conheci essa história já em segunda mão (foi um colega que contou que um funcionário achava isso).

De qualquer maneira, a minha observação empírica sobre a moda iseguiana da temporada 1991-95:

O tipo "freak" (para os rapazes, t-shirt + calças de ganga + sapatilhas/sandálias/botas cardadas, para as raparigas é mais difícil explicar) normalmente era usado por estudantes de economia ou de matemática aplicada.

O tipo "pronto para ir para uma festa" (difícil de explicar, mas penso que fácil de visualizar) era normalmente usado por estudantes de gestão.

Já o tipo "normal" (também "difícil de explicar, mas penso que fácil de visualizar") era usado indistintamente por estudantes de todos os cursos.

Ou seja, eu não subscrevo a opinião do tal funcionário, já que a maioria dos estudantes usava o vestuário "normal" (que não permite distinguir os cursos).

No entanto, é possivel que entre os estudantes mais envolvidos na "vida social" da escola tantos os "economistas"-freaks como os "gestores"-"prontos para ir para uma festa" estivessem sobre-representados e fossem portanto mais visíveis (sendo o tipo "normal" mais normal entre os estudantes mais assíduos às aulas).

Outra observação que me ocorre - parece-me que, em termos "sociológico-culturais", os estudantes de matemática aplicada poderiam contar "operacionalmente" como estudantes de economia (mesmo estilo de vestir, mesmos interesses musicais e artísticos, as mesmas inclinações politicas...)

rui fonseca said...

É curioso.
Na mesma escola, alguns anos atrás, no ISCEF, a situação era geralmente inversa: os betinhos preferiam economia, os que faziam aquilo como estudantes-trabalhadores iam para finanças, porque, supunha-se, tinha mais aceitação nas empresas.

Mudam-se os tempos, mudam-se as roupas ...

João Vasco said...

Miguel Madeira:

«mas a maioria (esmagadora?) dos economistas não são liberais»

Acho que esta é a grande chave dos equívocos do texto que é criticado, e trata-se de uma ideia que eu próprio estou constantemente a tentar desmistificar.

As pessoas pensam que a "economia" (actual) é "de direita", mas estão equivocadas. No mundo académico, não é esse o caso.

De onde vem o equívoco? Da comunicação social, em particular da televisão (a Sic notícias é o expoente máximo disto).

Quando um "especialista" vem falar sobre economia (economista ou não, mas passa por tal porque o assunto é esse), geralmente a sua perspectiva é a do liberalismo de direita, a necessidade do estado ser menos interventivo, de privatizar as empresas públicas, eventualmente de prestar os serviços de educação e saúde através de vouchers, de alterar a constituição ou a lei laboral no sentido de "tornar mais fácil a contratação" (referem-se a facilitar os despedimentos), etc.. Ah, e falam sobre o excessivo peso do estado na nossa economia sem mencionar que Portugal a esse respeito está muito perto da média europeia.

Creio que no mundo académico algumas destas opiniões são tão extremas e raras como as opiniões marxistas, mas ainda estou para ver o "especialista" que vá trazer esta perspectiva à televisão quando o tema em análise é a economia (eu não sou marxista).

Desta distorção daquilo que é o debate académico e as posições dos especialistas sobre estes assuntos, surge esse equívoco disparatado que dá origem a textos como este.

Depois é um desdém pelos economistas (à esquerda) que cada vez mais acho que é fruto da ignorância e destas escolhas editoriais dos canais televisivos - cujas causas seria interessante analisar.