Sunday, June 09, 2013

Ainda a esquerda anarquista pró(?)-propriedade privada

A respeito da minha passagem referindo que "também nem toda a esquerda anarquista é contra a propriedade privada - algumas facções defendem uma sociedade de pequenos proprietários em que cada um seja uma espécie de micro-empresário", um leitor responde que "Isto por si já é impossível, visto que nem todas as pessoas têm a capacidade de gerir bens de produção, e além disso, este arranjo impossibilitaria vendas de propriedade. Se eu quiser vender a minha propriedade, será que posso? Mas assim, ao longo do tempo, uns iriam ficar com mais propriedade e outros até sem propriedade de produção (bens de produção). Seria proibido vender a propriedade? Mas isso não é iniciação de violência?..".

Em primeiro lugar, para quem esteja menos dentro destas questiúnculas, convém explicar a quem me referia - basicamente estava a pensar na corrente umas vezes designada por "anarquismo individualista" e outras vezes por "mutualismo" (os conceitos não são exactamente idênticos, mas há uma grande sobreposição): Proudhon, Josiah Warren, Lysander Spooner, Ben Tucker ou, modernamente, Kevin Carson.

Como é que estes autores acham que surgirá essa tal sociedade de pequenos proprietários?

a) Em primeiro lugar (e talvez seja esse o aspecto mais importante do seu pensamento), acham que numa sociedade em que não haja limites legais à criação de bancos, eventualmente com a sua própria moeda, a taxa de juro irá descer para valores muito próximos do zero, através da criação de "bancos mútuos"; com juros próximos do zero, segundo eles seria relativamente fácil toda a gente se tornar proprietário - mesmo quem não tivesse dinheiro para adquirir os seus meios de produção poderia obter um empréstimo e depressa o amortizaria; nesse aspecto, parecem-me em directa oposição aos anarco-capitalistas ligados à "Escola Austríaca", que penso acharem que numa sociedade anarquista sem banco central os juros serão mais altos.

b) Sobretudo nas variantes mais modernas, tendem também a argumentar que as mesmas razões que fazem com que o planeamento central seja menos eficiente que o mercado (informação reduzida da parte dos decisores, distorção de incentivos, etc.), também farão com que as grandes empresas sejam menos eficientes que as pequenas, e que o trabalho assalariado seja menos eficiente que o trabalho por conta própria, e que portanto, num mercado "verdadeiramente livre", as pequenas empresas tenderiam a "vencer" as grandes. Um exemplo desta posição pode ser encontrada na obra de Carson "Organization Theory: A Libertarian Perspective" [pdf]. No meu post "Re: Os limites naturais à dimensão das empresas" abordo um tema parecido com este

c) Agora o ponto que o leitor abordou - seria proibido vender a propriedade? Pondo a questão nestes termos, a primeira resposta seria "não"; mas, de certa forma, e pensando bem, anda próxima do "sim", pelo menos para certos tipos de propriedade: por regra, os autores desta corrente tendem a considerar que no caso dos recursos naturais, nomeadamente do solo, a propriedade só será legitima se associada à "ocupação e uso"; p.ex., possuir um terreno e cultivá-lo eu seria legitimo; arrendá-lo (ou provavelmente mesmo recorrer a assalariados) já não (e aí os meus rendeiros ou empregados teriam o direito de se proclamarem como os "legítimos proprietários"). Em termos práticos, isso acaba por se materializar numa posição de "as nossas agências de protecção só irão reconhecer os direitos de propriedade sobre o solo até à dimensão X". Um exemplo deste pensamento surge no texto de Tucker "Property under Anarchism":

Mr. Herbert, as I understand him, believes in voluntary association, voluntarily supported, for the defence of person and property. Very well; let us suppose that he has won his battle, and that such a state of things exists. Suppose that all municipalities have adopted the voluntary principle, and that compulsory taxation has been abolished. Now, after this, let us suppose further that the Anarchistic view that occupancy and use should condition and limit landholding becomes the prevailing view. Evidently then these municipalities will proceed to formulate and enforce this view. What the formula will be no one can foresee. But continuing with our suppositions, we will say that they decide to protect no one in the possession of more than ten acres. In execution of this decision, they, on October 1, notify all holders of more than ten acres within their limits that, on and after the following January 1, they will cease to protect them in the possession of more than ten acres, and that, as a condition of receiving even that protection, each must make formal declaration on or before December 1 of the specific ten-acre plot within his present holding which he proposes to personally occupy and use after January 31. These declarations having been made, the municipalities publish them and at the same time notify landless persons that out of the lands thus set free each may secure protection in the possession of any amount up to ten acres after January 1 by appearing on December 15, at a certain hour, and making declaration of his choice and intention of occupancy
Deixando de lado a questão de se um sistema desses poderia ser transplantado por um universo urbano e/ou industrial (em que a posse do solo me parece inseparável da posse dos edifícios lá implementados, complicando a distinção que esta corrente tende a fazer entre recursos naturais e bens produzidos), vamos voltar ao ponto levantado pelo leitor - são proibidas as vendas de propriedade? Bem, a partir do momento em que os "direitos de propriedade" de quem possuir mais que "X" m2 é suposto serem ignorados, realmente isso na prática é como proibir as vendas de terrenos a quem esteja perto do limite máximo - é verdade que não há ninguém a proibir a venda em sí, mas é como se esta fosse nula.

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