Thursday, May 15, 2014

Keynesianismo e Estatismo

Há uns tempos, correu pela internet uma discussão sobre se o keynesianismo implica um peso elevado do Estado na economia (sobre isso, ver Russ Roberts, Paul Krugman, Chris Dillow , MarkThoma e António Costa Amaral / Steven Horwitz).

Do ponto de vista formal, não - o keynesianismo apenas implica que os deficits do Estado são bons para estimular a economia, nada dizendo acerca do valor total da despesa pública. Um governo que cobre 10% do PIB em impostos e faça despesas no valor de 15% (um deficit de 5%) está a fazer "estímulo" keynesiano; já um governo que cobre 62% de impostos e faça despesas no valor de 60% (um superavit de 2%), em principio não terá nada de keynesiano.

Ou seja, pelo menos em teoria, podemos ter orçamentos expansionistas com despesa pública reduzida, e orçamentos equilibrados com alta despesa pública (na prática, acho que o segundo caso é mais frequente que o primeiro).

Note-se que esta questão não deve ser confundida com outra, que é se o keynesianismo é a favor dos deficits, ou se é "apenas" a favor de uma combinação de deficits durante as recessões e de superavits durante as expansões - são assuntos diferentes: de novo, podemos ter grande despesa pública com orçamentos permanentemente equilibrados ou superavitários, tal como também poderíamos ter sempre deficit, mas uma despesa pública total relativamente pequena (na verdade, parece-me que o artigo de Horwitz falha um bocado a pontaria, porque apresenta-se como um artigo a demonstrar que o keynesianismo real implicará o "big government", mas para aí 95% do texto é dedicado a argumentar que o keynesianismo implica "big deficits", o que é um assunto diferente).

É verdade que o assunto dos deficits não é totalmente independente do volume da despesa pública - os deficits acumulados implicam mais dívida pública, logo mais juros, logo mais despesa (se um Estado tiver regularmente deficits - em percentagem do PIB - de "d" e o PIB crescer a uma taxa "g", suponho que a dívida publica em percentagem do PIB tenderá a convergir para d*(1+g)/g,). No entanto, pelo menos no mundo desenvolvido, penso que o principal motivo de elevadas despesas públicas são as despesas sociais, não os juros da dívida acumulada, pelo que esse efeito será pouco relevante na prática.

Mas, agora, a questão que Chris Dillow levanta é pertinente - se não há ligação lógica entre o keynesianismo e o "big government", porque é que, na discussão politico-económica do dia-a-dia, os defensores do keynesianismo tendem a ser também os defensores do intervencionismo estatal? Isto é, normalmente quem defende menos impostos, privatizações, desregulamentação, etc. são também os que se opõem às politicas keynesianas de gestão do ciclo económico, e vice-versa.

Já agora, eu diria que, na prática, não é raro encontrar "estatistas anti-keynesianos", que aumentam a despesa pública mas reduzindo os deficits, porque aumentam ainda mais os impostos (p.ex., Margaret Thatcher durante a maior parte do seu mandato); da mesma forma, as redução de impostos de G.W. Bush, feitas, a certa altura, com o argumento de "pôr dinheiro na economia", podem talvez ser vistas como uma forma de "liberalismo keynesiano". Mas, no plano dos princípios (não das politicas concretas) é raro ver alguém defender um "liberalismo keynesiano" (algo como "temos que reduzir os impostos durante as crises para as pessoas terem mais dinheiro para gastar" - embora eu tenha a teoria que a "economia do lado da oferta" mais não foi do que uma capa para em prática o "liberalismo keynesiano"); também não é muito frequente (embora seja mais) ver alguém defender o "estatismo anti-keynesiano" (algo como "para salvar o Estado Social - ou a Segurança Nacional - temos que ter finanças sólidas e equilibradas, sem deficits e de preferência com superavits"; no cenário actual, parece-me que uma versão moderada desse "estatismo anti-keynesiano" é típica dos auto-proclamdos "moderados", que por vezes vêm com conversas do género "ao contrário do que a esquerda quer, temos que atacar a sério o problema do déficit, mas, ao contrário do que a direita quer, sem radicalismos de corte nas despesas, mas também com aumentos de impostos").

[Um aparte - se não há defensores relevantes de uma politica orçamental expansionista com um Estado pequeno, há - ou houve, nalguns países no século XX - efectivamente um movimento político que se notabilizou por simultaneamente defender uma politica monetária expansionista e o Estado pequeno: o Crédito Social, sobretudo no Canadá.

Basicamente, o ponto principal do Partido do Crédito Social canadiano era uma expansão monetária constante, feita pelo método de periodicamente o Estado pagar um "dividendo" a cada cidadão - aqui, uma alegoria explicado a doutrina; fora isso, era um partido largamente liberal na economia e conservador nos costumes, por vezes até com algum anti-semitismo ocasional. Ora, como o Crédito Social nunca chegou a ter influência no governo nacional, e as tentativas dos seus governos locais para criar moedas paralelas foram consideradas ilegais, acabou por desempenhar na prática o papel de partido liberal-conservador, tendo sido durante muito tempo provavelmente o mais liberal dos grandes partidos canadianos; em 1973, o anarco-capitalista Samuel Konkin - pdf - descreveu-o como um "free market, pro-American party with a funny money policy they could not legislate because they had only controlled provincial governments"]

Algumas possíveis explicações para na prática haver uma convergência entre keynesianismo e estatismo:

- muita oposição ao intervencionismo estatal baseia-se na ideia de que os governantes não têm a informação (e talvez nem os incentivos) suficiente para tomar boas decisões acerca da economia; ora, a partir do momento em que se considera que o Estado deve estar no ramo de estabilizar a economia (mesmo que o faça com medidas aparentemente "liberais", como reduzir os impostos durante uma recessão) está-se implicitamente a admitir que o Estado tem capacidade para tomar essas decisões, e logo está-se a abrir a porta para outro género de intervenções

- também muita oposição ao intervencionismo baseia-se na ideia que os mercados conduzem a uma afetação eficiente de recursos; ora o keynesianismo acredita que os mercados podem falhar nessa tarefa, o que o torna uma teoria mais atrativa para "estatistas" do que para liberais

- num mundo (ou pelo menos numa civilização - a ocidental) em que grande parte da intervenção do Estado é promovida com o argumento de "tirar aos ricos para dar aos pobres", há uma afinidade entre o keynesianismo e as politicas redistributivas: por um lado, porque a própria existência de impostos progressivos (ou mesmo proporcionais) e de programas de assistência social é intrinsecamente keynesiano, na medida em que gera automaticamente um aumento do deficit durante as recessões (porque a carga fiscal diminui - já que as pessoas baixam de escalão do IRS - e as despesas sociais aumentam - já que há mais pobres) e uma redução durante as expansões, o que é exatamente a receita keynesiana; além disso, o keynesianismo tem implicito um enviesamento a favor do consumo (pelo menos se a economia estiver em recessão, em "armadilha de liquidez", etc., etc.) - ora, se partirmos do principio que as pessoas com menores rendimentos poupam uma menor proporção do seu rendimento (essa permissa é muito discutivel a nível académico, mas faz parte do chamado "senso comum"), isso quer dizer que as politicas redistributivas aumentam o consumo, levando os defensores dessas políticas a simpatizar com a economia keynesiana

- o modelo keynesiano das crises económicas é muito parecido com o modelo marxista dessas mesmas crises (crises de sobre-produção criadas pela escassez da procura e só possíveis num mundo em que exista moeda): pegue-se no modelo keynesiano, ponha-se os capitalistas a terem uma propensão ao consumo muito menor que os trabalhadores; estipule-se que os salários reais (em vez dos nominais) são rigidos no curto/médio prazo; e introduza-se no longo prazo uma tendência para o progresso tecnológico ser capital-intensivo - e temos o modelo marxista. Logo, as pessoas que têm uma formação de base essencialmente marxista tendem a se identificar com o modelo keynesiano (mesmo que digam que precisa de uns ajustes aqui e ali)

- mesmo que o keynesianismo não implique um Estado "grande" em termos quantitativos (isto é, que consuma uma grande percentagem do PIB), implica um Estado "grande" em termos qualitativos (isto é, um Estado que faça mais do que assegurar a justiça, a polícia e a defesa)

Leituras adicionais (mesmo que não sejam diretamente sobre o assunto, acha que acabam por o ser indiretamente):

- Why Are Libertarians Inflation Hawks?, por Timothy Lee

- Ayn Rand Endorses Big Government, por Stephan Kinsella


- Keynesianism, left & right, por Chris Dillow

3 comments:

pedro romano said...

Uma questão mais ontológica: será que é possível haver sequer um Governo keynesiano?

Quer dizer: um keynesiano é alguém que acredita que o Governo pode aumentar a procura agregada (e portanto o Produto) através da manipulação das variáveis orçamentais. Descer impostos e aumentar despesa, por si sós, não servem para qualificar alguém como keynesiano. É preciso que a alteração fiscal seja feita como um determinado propósito, e assentando num determinado mecanismo.

Mas será que quem está nas cúpulas tem sequer um pensamento tão estruturado? Por exemplo, quando George Bush apresentou os cortes de impostos, falou em 'pôr dinheiro nas mãos das famílias' - isto parece uma referência tosca ao mecanismo keynesiano, e não a mecanismos supply-siders.

Um exemplo ainda mais vívido. Será que Roosevelt estava a ser keynesiano quando anunciou o New Deal, em 1933? Parece um bocado difícil responder afirmativamente, uma vez que a Teoria Geral é de 1936. Se quem decide a política do Estado apenas tem uma concepção muito vaga daquilo que está a fazer, não será enganador atribuir rótulos que de certa forma 'impõem' pelo menos alguma sofisticação intelectual?

CsA said...

"o keynesianismo apenas implica que os deficits do Estado são bons para estimular a economia"

Convém acrescentar que Keynes defendia orçamentos expansionistas para o combate à recessão económica, assim como defendia orçamentos superavitários em tempos de prosperidade económica.

Esta parte da "equação" parece muitas vezes esquecida pelos ditos "keynesianos" ;)

Miguel Madeira said...

"assim como defendia orçamentos superavitários em tempos de prosperidade económica."

Eu também tinha essa ideia, mas nos últimos tempos li alguns artigos de keynesianos na internet negando que fosse essa a posição de Keynes (e até foi ao Samuelson à procura do que me julgava lembrar ser uma citação de Keynes dizendo isso mas afinal era de outro tipo qualquer). Como não estava com a minima vontade de ir à procura do que o Keynes original escreveu, achei melhor saltar sobre essa parte.

Até por outra razão - como o ponto do meu post era a questão "o keynesianismo implica um Estado grande?", ir discutir também a questão "o keynesianismo significa deficits?" corria o risco de ir misturar os dois assuntos (tal como fez o Steven Horwitz), que me parecem diferentes.