Uma passagem de "Porque Falham as Nações?" que me inspira a escrever mais qualquer coisa: no capítulo respeitante à Revolução ("Gloriosa") Inglesa de 1688, depois de falarem de muitas das reformas feitas pelo novo regime (abolição de grande parte das concessões monopolistas, reforma fiscal substituindo uns impostos por outros, etc.) os autores referem a evolução da despesa pública (página 236):
O Estado começou a expandir-se, tendo as despesas atingido 10% do rendimento nacional. Isso apoiou-se numa expansão da base tributária, em particular no que se referia ao imposto de consumo, que incidia sobre a produção de uma longa lista de bens produzidos internamente. Tratava-se de um orçamento de Estado muito elevado para a época...
Por vezes em certos sectores faz-se uma oposição entre um "liberalismo inglês" (que se preocuparia sobretudo em limitar o poder do Estado) e um "liberalismo francês" (disposto a usar o poder do Estado central para libertar os indivíduos das opressões locais), e entre alguns liberais de hoje em dia parece haver algo muito próximo de uma renúncia ao liberalismo "continental" do século XIX (em tempos, na extinta revista Atlântico - ou seria apenas no blogue? - publicavam um artigo sobre a Guerra Civil portuguesa de 1828-34, em que a dada altura falavam dos "chamados liberais"). Mas, pelos vistos, mesmo na Inglaterra, a "revolução liberal" conduziu ao aumento da dimensão do Estado (e essa combinação entre crescimento da despesa pública e redução da micro-regulação - como a abolição dos tais monopólios - corresponde ao padrão aqui identificado); já agora, creio ter em tempos lido algures que pouco após a independência dos EUA os impostos lançados pelo novo governo já eram mais elevados do que os impostos que o governo britânico queria lançar e que deram origem à Revolução Americana (se for mesmo assim, quer dizer que a partir do momento em que passaram a ter "representation" não se importaram mais com a "taxation") - pelo que suspeito que a diferença entre o mundo anglo-saxónico e continental talvez tenha sido mais de quantidade do que de qualidade. Aliás, uma coisa que sempre me fez ter reservas à teoria do "liberalismo inglês" vs. "francês" é que hoje em dia é exatamente no mundo de língua inglesa que a palavra "liberal" é mais usada como algo parecido com o que era suposto ser o significado "francês" (dois artigos, um dos quais já referi aqui - a propósito de um comentário que me fez pensar sobre o nível atual de conhecimentos de história - sobre a diferença entre as duas tradições liberais, mas aparentemente sem atribuir nenhuma a países específicos).
[Atenção que esta alegada diferença entre dois tipos de liberalismo não é a diferença entre as chamadas liberdade "negativa" e "positiva"; mesmo nos que defendiam o recurso ao Estado central para combater as opressões locais, pode-se considerar que era de restrições à liberdade "negativa" - como direitos feudais, regulamentos corporativos, etc. - que se tratava. No entanto, creio que a posição de defender a intervenção do Estado central contra as autoridades locais mais facilmente pode degenerar numa posição de defender a liberdade "positiva" do que a posição de simplesmente querer limitar o poder do Estado: de achar que o Estado deve libertar os camponeses do senhor feudal até achar que o Estado deve proteger os trabalhadores do poder do industrial que é o maior empregador da aldeia vai um saltinho...
Aliás, num dos textos que linko acima até é dito que «two strands running through the liberal tradition, strands differentiated by their attitudes toward "intermediate groups" (that is, groups intermediate between the individual and the centralized state), a category in which Levy includes "churches and religious groups, ethnic and cultural groups, voluntary associations, universities," and the family, but also "levels of government below the center—towns and cities, or the provinces and states of a federation." Levy justifies including governmental and private groups in the same category on the grounds that the dispute he's tracing tends to do so as well.» - negrito meu: ou seja, há mesmo uma tendência para os que vêm o poder central como o defensor da liberdade individual contra os governos locais o verem também como o defensor dessa liberdade - eventualmente contra as dependências sociais ou económicas - contra o poder social de instituições como famílias, religiões, e se calhar também empresas]
Agora vou buscar uma passagem de um artigo de uma provavelmente esquecida revista anarco-capitalista dos anos 70 (de 69 a 84, para ser mais exato) que acho que pode ser relevante para este tema - o artigo de Roy Childs "Review of John Hospers' Libertarianism, Part I" (Libertarian Forum, volume 4, nº 5, Maio de 1972):
...This is true of the new work by Dr. John Hospers, LIBERTARISM. It is a very great contribution to the growing library of libertarian literature (...)Pegando nesta distinção que Childs (criticando Hospers) faz entre as dimensões "público vs. privado" e "coercivo vs. não-coercivo" (ou "injusto vs. justo"), dá-me a ideia que o liberalismo "histórico" - fosse ele "inglês" ou "francês" - consistiu sobretudo em diminuir o sector privado "coercivo" - concessionários de monopólios, proprietários senhoriais ou feudais, corporações de artes e ofícios, igrejas "oficiais", comunidades aldeãs, donos de escravos, empresas beneficiárias de protecionismo (embora a associação liberalismo/livre-cambismo e conservadorismo/protecionismo não seja absoluta), etc. - e reforçar simultaneamente o sector privado "voluntário" e o sector estatal (a diferença entre as variantes "inglesa" e "continental" é capaz de ter sido sobretudo uma diferença nas proporções em que o sector privado "coercivo" foi divido pelo estatal e pelo privado "voluntário" - e possivelmente o sector privado "coercivo" seria muito maior no continente, o que também pode ter feito diferença). No fundo, em termos modernos, as "revoluções liberais" foram como se um governo acabasse com as PPPs, nacionalizando parte delas e privatizando/liberalizando totalmente as outras.
Part of my disagreement with this emphasis, or lack of it, by Hospers, lies in his distinction between public and private sector. "In most nations of the world, there is what is called the 'public sector' and the 'private sector'. More accurate labels would be the coerced sector and the uncoerced sector. In the uncoerced sector - that is, the free market - we have only voluntary exchange. In the coerced sector, conditions are imposed on the free market by govern - which distorts the market and impedes its efficiency." Now my objection to this is fundamental: the radical distinction is not between the public and the private sectors, or public and private ownership and control, but rather between just and unjust ownership and control. (...) Suppose, for example, that a thief makes off with someone's watch. Is that watch in his possession now "public" property? Is is "private" property, which, remember, is equated by Hospers (and Rand, apparently) with the uncoerced, free market sector? Or take the case of a government seizing everyone's property and giving it to individuals who are not technically part of the State apparatus.Is that "private property", or the "free market, uncoerced sector"? Also take the case of someone justly owning something and donating it to those in the government,such as somebody's donation of a private library to the government. Is this part of the public sector wich is equated, with the coercive sector?
(...) And a large part of the "private sector" in the world is property that, by libertarian standards, unjustly held, such as is the case with the land in in the multitude of feudalist countries wich still exist (...).
There is the same problem in the case of Hospers' critique of student takeovers of university campuses. The argument against this in the case of justly established "private" universities is clear. But what about State universities? And what about the so-called private universities which are nearly 90% bankrolled by the state? (...) Or those which align with the State to do research into ways and means of destroying other's peoples lives and property?
E agora vou divagar para um assunto já completamente diferente do tema original:
É frequente dizer-se que o "liberalismo" norte-americano pouco tem a ver com o significado usual da palavra no resto do mundo (e eu, sempre que me refiro aos "liberais" norte-americanos, uso aspas); mas vendo bem, talvez os "liberais" dos EUA não estejam tão longe do liberalismo "histórico" como tudo isso: afinal, dá-me a ideia que a sua ideologia anda muito à volta de usar o poder do governo federal para "proteger" os indivíduos contra os pequenos poderes (dos governos estaduais e locais, das famílias, das empresas, etc.); mesmo na economia, dá-me a impressão que, comparativamente com os socialistas europeus, os "liberais" preocupam-se menos com a igualdade de rendimentos, e mais com assuntos como leis anti-monopólio ou anti-discriminação (que me parecem corresponder a uma visão do mundo mais individualista - como proteger as pequenas empresas das grandes, ou garantir que indivíduos de grupos tradicionalmente marginalizados tenham as mesmas possibilidades de subir na vida). A diferença - diferença esse que provavelmente justifica o uso das aspas - face ao liberalismo "histórico" é que pegaram na ideia do Estado central como protetor dos indivíduos contra os pequenos poderes e alargaram-na aos poderes puramente privados e supostamente "voluntários" (nomeadamente no aspeto económico) - mas, até como referi nuns parágrafos mais atrás, nem é um salto totalmente inédito nem se calhar particularmente difícil de dar.
Uma coisa que também me parece é que a contra-cultura dos anos 60 integrou-se mais facilmente no Partido Democrata dos EUA (os jovens rebeldes da altura foram se calhar os maiores apoiantes das campanhas de Eugene McCarthy em 1968 e de George McGovern em 1972) do que nos partidos socialistas tradicionais europeus (na Europa, quando o "espírito de 68" se manifestou na política partidária foi sobretudo através de partidos não-tradicionais, como a Democracia Proletária italiana, a Esquerda Socialista dinamarquesa, o PSR português ou os "Verdes" em vários países). A principal razão foi de certeza os incentivos para a integração nos partidos dominantes que existem nos EUA (com o sistema eleitoral maioritário a uma volta e o presidencialismo a tornarem difícil criar 3ºs partidos e ao mesmo tempo com o sistema das primárias a tornar relativamente fácil tentar tomar um partido por dentro); mas interrogo-me (mas isto é capaz de já ser uma especulação arriscada da minha parte) se a ideologia da contracultura, que criticava o capitalismo menos por os trabalhadores serem explorados, e mais por serem alegadamente transformados em meras "peças da máquina" que executam os planos elaborados pelos patrões e gestores, sem espaço para a criatividade pessoal, não teria logo à partida uma afinidade com a tendência dos "liberais" para defenderem o individuo contra as pequenas autoridades.
Em suma, possivelmente a razão estará mais do lado dos paleoconservadores que acham que o moderno "liberalismo" ou "progressismo" deriva do individualismo do liberalismo tradicional do que dos neoconservadores que associam o "liberalismo" ao fascismo.
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