Thursday, August 30, 2018

Re: O Bloco nada tem a dizer sobre a Venezuela?

N'O Observador, João Marques de Almeida pergunta se O Bloco nada tem a dizer sobre a Venezuela?.

Na verdade, não é muito difícil ver o que o Bloco tem a dizer sobre a Venezuela; é só ir ao Esquerda.net , p.ex.

Se eu percebo, a reclamação do João Marques de Almeida é por o Bloco não ser capaz de defender a Venezuela, apesar de lá haver mesmo um regime socialista; mas então a questão seria se a Venezuela é mesmo socialista, e aí é que a porca pode torcer o rabo, porque deve haver quase umas duzentas definições rivais do que é "socialismo"; p.ex., se definirmos socialismo como "uma sociedade sem Estado, sem dinheiro e sem trabalho assalariado", a Venezuela não será socialista, já que todas essas coisas existem na Venezuela (ou no caso do dinheiro, pelo menos existem pedaços de papel que são impressos com a intenção de serem usados como dinheiro) - assim, quando grupos como o Socialist Party of Great Britain fazem post scriptums dizendo que a Venezuela não é socialista estão totalmente correctos, já que o SPGB define "socialismo" como uma sociedade sem dinheiro e com a economia gerida democraticamente, condições que a Venezuela não cumpre. Da mesma forma, para um marxista-leninista radical, que defenda que quase tudo, tirando talvez micro-empresas unipessoaism seja nacionalizado, a Venezuela também não será socialista (já que grande parte da economia continua a ser, pelo menos nominalmente, privada).

Mas se isso é fácil para micro-grupos estritamente ideológicos, que têm uma definição rígida do que é "socialismo" e bem plasmada nos seus documentos ideológicos e sites na internet (e em que portanto é fácil verificar se um regime existente no mundo real é ou não socialista de acordo com a definição particular adotada por esse grupo), já é mais difícil para partidos como o Bloco de Esquerda, cuja plataforma ideológica é mais vaga, e onde cabem desde social-democratas (que só se distinguem dos do PS por discordâncias quantitativas - mais despesa pública e maior progressividade fiscal) até defensores de um "socialismo de conselhos operários" ou coisa parecida. No entanto, mesmo com essa enorme salganhada ideológica que é o BE, penso que é possível ver um fio condutor, nomeadamente a partir da críticas que as correntes que deram origem ao Bloco faziam aos antigos regimes da Europa de Leste (independentemente de terem começado a fazer essa crítica a partir dos anos 30 ou a partir de 1990): nomeadamente, a crítica principal era de que esses regimes não eram verdadeiramente socialistas (mas sim ou "capitalistas de estado", ou "estados operários com uma degeneração burocrática", ou algo assim) porque, embora os meios de produção pertencessem ao estado, esse estado não era controlado e governado pelo conjunto da sociedade (e nomeadamente pelo proletariado), mas sim por uma elite de "burocratas" que se havia assenhorado do poder político e, consequentemente, também do económico. Tal como já disse, esta crítica aos regimes comunistas realmente existentes (de que não basta estatizar a economia ou parte substancial dela, é preciso que a economia estatizada seja mesmo gerida pela coletividade e não por uma nova classe dirigente) pode ser subscrita por muita gente, desde defensores de uma democracia parlamentar com os sectores estratégicos da economia nacionalizados (estilo o Reino Unido durante os governos do Old Labour) até defensores de que as empresas e o estado sejam governados por delegados de plenários de fábrica, rotativos e revogáveis a qualquer instante.

Mas, se formos por esse critério, efetivamente a Venezuela também não será "socialista", já que lá o poder também não é exercido pelo conjunto da sociedade, mas por Maduro, Diosdado Cabello e os seus próximos; o que se poderá questionar é se há alguma diferença significativa face à era Chavez (em que o autoritarismo era menos aberto mas já era visível - e o fim da limitação aos mandatos deveria ter provocado algum alarme naquela esquerda que normalmente até anda sempre a evocar a rotatividade), quando grande parte do BE até parecia ter uma posição favorável à Venezuela (mas atenção que nunca foi um apoio inequívoco ou unânime, como por vezes é dado a entender - veja-se que, p.ex., o Luís Fazenda e os seus próximos também eram críticos do Chavez; aliás, curiosamente Bandera Roja, o mais parecido que há na Venezuela com uma "UDP", é e era um dos grupos mais ativos na oposição a Chavez/Maduro; sobre a posição das várias esquerda portuguesas face ao regime venezuelano, ver este meu post escrito em 2008).

6 comments:

Anonymous said...

Longe de mim ser um conhecedor da situação venezuelana do período já longo (20 anos) desde que Chávez chegou ao poder. Mas permita-me trocar umas ideias consigo, num comentário rápido.

Em primeiro lugar, parece-me que o discurso de Chávez só se radicalizou (no sentido de falar de "socialismo") verdadeiramente depois do Carcazo. Tais situações (linguagem e tentativa de golpe armado apoiado pelos EUA) nunca chegaram a acontecer no Brasil lulista. Mas de qualquer modo há um paralelo, que é uma guinada à esquerda e investimento público para melhorar as condições de vida das camadas mais pobres, em grande contraste com o que vinha acontecendo há décadas e o que lhes deu a ambos um amplo apoio "popular" (simplificando aqui muito o assunto...)

Venezuela e Brasil têm estruturas económicas muito diferentes, sendo que a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo conhecidas no mundo e o orçamento de estado está por isso muito dependente do preço do barril. Ao radicalizar o discurso e com o passar do tempo acabou por impulsionar a ALBA, ajudar Cuba, enfim, uma série de tentativas que me parecem ir num sentido realmente internacionalista e contra a ordem existente antes disso na América Latina. E onde quero chegar com isto: foram ações de um modo geral bem vistas à esquerda (eu lembro-me de ler um artigo antigo - talvez 10 anos - no esquerda.net que não voltei a encontrar e que era claramente apologista do processo bolivariano - embora como bem nota o Miguel, o BE tem muitas sensibilidades e por isso um artigo não representa todo o BE).

Agora, com o preço do barril em queda (provavelmente o factor mais importante) e com os compadrios "inevitáveis" quando o partido se confunde com o Estado e quando há escassez de bens e fundos, com uma ameaça real da direita que continua a controlar uma parte importante da economia e da imprensa, a Venezuela afunda-se a cada dia que passa. Penso que o que é aqui mais importante é que o Estado vê o seu orçamento a diminuir a e não consegue simplesmente manter a despesa anterior, sendo que isso se traduz numa queda acentuada do nível de vida das pessoas que dessa ajuda dependiam (penso ter lido algures que existia uma espécie sistema de rações como o cubano - ou talvez fosse em dinheiro como a "bolsa família" lulista). E é perder essa segurança que mete o povo na rua. Repare-se que é uma análise a frio, não quero com isto dizer que não sei que existiram ataques reais a sindicalistas "independentes", activistas, presos por delito de opinião e outros atropelos que têm de ser condenados.

Ora, a meu ver está em curso um ataque ideológico de direita MUITO forte em Portugal (é incrível a quantidade de artigos escritos sobre a Venezuela, um país com 30 milhões de habitantes com quem quase nem temos laços económicos). Repare-se que qualquer assunto que se debata vai acabar à Venezuela. Leio o Público e costumo passar os olhos nos comentários, veja-se que no último texto do Rui Tavares em que ele ataca o encontro de Orbán com Salvini (um texto que só mereceria uma conciliação desde os comunistas ao CDS), a caixa de comentários é completamente tomada de início ao fim por comentadores "de direita" que se queixam que o RT não escreve contra a Venezuela (e até está muito longe de ser verdade, parece-me que o RT cada vez mais é um moralista de esquerda mas que a curto prazo apoia a política neocon na UE, basta ver o grupo europeu a que se colou e por que razões, mas adiante.)

(continua)

Anonymous said...

(continuação)
Retomando o tema da economia, penso que o contra-ataque da esquerda tem de partir de um argumento simples: há montes de países com estrutura económica semelhante à Venezuela e que foram e são apoiados pela nossa direita e pelos EUA, que têm ainda mais pobreza e que não têm melhorado em nenhum indicador de desenvolvimento humano. Estou a pensar no caso de Angola, com quem temos bem mais laços do que a Venezuela a todos os níveis (da língua ao número de portugueses que vivem lá).

E porque é que Angola não chega às nossas notícias? E aqui a questão é simples: (1) porque Angola é há muito uma cleptocracia em que a base da pirâmide nunca chegou a beneficiar do petróleo, por isso está numa auto-gestão ou auto-regulação no sentido de sobreviver como se o Estado não existisse há várias décadas (mais uma vez, contraste com Venezuela e Brasil onde a camada análoga da população sentiu uma melhoria de vida real durante um período relativamente longo); (2) porque Angola detém já parte da nossa imprensa e deles dependemos economicamente por isso não convém muito criticar, e (3) - acho que este é um factor até mais importante que o (2) - porque não há novidade nenhuma nas estatísticas que mostram que 95% da população angolana continua na miséria, e isso não dá azo a notícias como a hiperinflação venezuelana - e aqui radica também um dos males da imprensa orientada pelo lucro, que nos põe a pensar num curto-prazismo sincronizado com a necessidade de a imprensa fazer dinheiro através do sensacionalismo.

Posto isto, ao entrar neste jogo de "o Bloco defende ou não defende", o Miguel Madeira desculpe-me mas passa para o campo do inimigo. Porque todos sabemos como a esquerda está a ser hipócrita neste caso, ao começar a demarcar-se da Venezuela apenas quando vê a hiper-inflação e os refugiados a começar a fugir, sendo a ideia subjacente que Chávez é que era bom e Maduro é que mau.

Anonymous said...

Nada mais curioso do que pegar no Público de hoje e ver que o Rui Tavares fala exatamente no que eu escrevi no comentário anterior!

Anonymous said...

Angola nunca foi um país rico, veio de uma guerra que destruiu o País e 2 gerações de Angolanos. A Venezuela era o país mais rico da América Latina. É a diferença. Chavez destruiu a economia, ao oferecer os lucros do petroleo à população e aos seus amigos, incluindo diversas nações Caribenhas e Sul-Americanas.

Anonymous said...

Uma busca rápida diz-me que a Venezuela foi o país mais rico do continente... em 2001, já nos anos de Chávez - recorde-se que o petróleo já fora nacionalizado bem antes disso. Mas onde eu quero chegar é que mesmo que se assuma que a Venezuela chegou a país mais rico do continente com o petróleo privatizado, a questão mantém-se: o que é que a população beneficiou com isso?

O que significa ser o país mais rico? É o maior pib per capita? Nesse caso, a riqueza privada da Isabel dos Santos entra nas contas de Angola? Angola até poderia estar no topo da tabela do pib per capita... se 95% da população beneficia zero desse facto, o que é que isso interessa? O IDH de Angola está abaixo de países completamente falidos com o Zimbabwe ou ao lado do que tem mais petróleo do continente (Nigéria). As métricas têm muito que se lhe diga.

Anonymous said...

A Venezuela nunca teve nenhuma guerra nem chegou ao estado em que chegou Angola de extrema destruição e pobreza.
A população Venezuelana era rica e não sabia. O grande problema era a distibuição de riqueza. Mas no entanto eles todos tinham acesso a comida e viviam mil vezes melhor do que vivem agora, quando o socialismo acabou de acabar com o País. A estratégia que acabou por ser seguida, indiretamente, foi a de garantir que a pobreza se distribuisse pela maioria da população para fazer sentir que todos estavam mais iguais. Perderam primeiro os "ricos" mas no fim perderam todos (menos os governantes).