Segundo A. A. Amaral, "a unica democracia possível [é] a representativa. A única forma de democracia que cria defesas à livre discricionariedade de um político e nos garante segurança". Imagino que AAAmaral esteja a fazer o contraponto com a "democracia participativa", já que o post se refere a Francisco Louçã, tradicionalmente um defensor dessa posição politica.
Em primeiro lugar, mesmo que a "democracia participativa" seja impossível, isso não significa que os seus partidários não sejam democratas, como AAAmaral afirma, a menos que adoptemos o conceito estalinista de "culpa objectiva" (assim, os defensores da democracia participativa seriam "objectivamente anti-democratas", tal como os anti-estalinistas eram "objectivamente contra-revolucionários"). O certo é que nos partidos que Louçã lidera/liderou sempre houve liberdade de criticar a linha oficial e até de apresentar candidaturas e moções alternativas, e as propostas de Louçã chegaram a ser recusadas nalguns congressos (ao contrário de, p.ex., no PCP - e agora compare-se o "anti-louçãnismo" militante da direita com a clara simpatia de muitos por Jerónimo de Sousa).
Mas, será que tem algum sentido dizer que "a democracia (...) representativa [é] a única que cria defesas..."? Porque é que numa democracia representativa as pessoas estarão melhor defendidas de abusos do que numa democracia participativa?
Por haver limites consitucionais? Mas pode perfeitamente haver uma "democracia participativa" com limites consitucionais - lembrando-me dos meus tempos de estudante, há coisas que uma RGA só pode aprovar por maioria qualificada. Por outro lado, pode perfeitamente haver uma "democracia representativa" sem garantias constitucionais (a França sob o Terror é um bom exemplo).
Por haver separação de poderes? Realmente, numa "democracia participativa", o poder executivo praticamente não existe, sendo absorvido pelo legislativo; no entanto, nas democracias representativas (pelo menos nas parlamentaristas) acaba por se passar o mesmo, ao contrário - o poder executivo acaba por absorver o legislativo. Quanto ao poder judicial, não se vê porque uma "democracia participativa" não poder ter um sistema judicial independente - p.ex. o julgamento por jurí até é muito mais "participativo" do que "representativo" (sobretudo se
incluir o polémico "direito de julgar a lei", que há quem diga que existe nalguns países).
Por vezes, argumenta-se que a "história demonstra que a democracia participativa conduz à tirania", mas essas pessoas devem ler livros de história muito diferentes dos meus: temos montes de exemplos de "democracia participativa" que não conduziram a ditaduras, desde Atenas até à Islândia medieval, passando pelas tribos germãnicas ou berberes, os cantões suiços, os "town meetings" da Nova Inglaterra, etc.. A respeito de Atenas, os inimigos da "democracia totalitária" fazem coro com Platão (um defensor da "aristocracia totalitária"...) e citam a execução de Sócrates como exemplo dos perigos da "democracia participativa" (ou mesmo da "democracia", só), mas não vêm o outro lado da moeda: quantos filósofos - muitos com ideias heterodoxos - havia em Atenas que não foram executados?
Para atacar a "democracia participativa" também se costuma dar o exemplo da Europa de Leste, mas isso é um disparate: os paises de Leste, tirando duas exepções (a URSS até 1936 e a Jugoslávia segundo a Constituição de 1973) seguiam o desenho formal das "democracias representativas", não das "participativas": de "X" em "X" anos, os cidadãos votavam, elegiam um Parlamento, e durante "X" anos, o Parlamento governava-os (a diferença, face à democracia "burguesa", é que só havia uma lista concorrente)*.
Quanto aos únicos exemplos que tinham consagrado um sistema de participação dos "organismo de base", não deixa de ser revelador que um (a Jugoslávia) fosse o mais "liberal" do conjunto, e que o outro (a URSS) o tenha suprimido em 1936, exactamente quando o terror totalitário se preparava para atingir o seu ponto alto.
*Obviamente, não estou a dizer que os países de Leste eram "democracias representativas", apenas que, constitucionalmente, se "disfarçavam" de tal
2 comments:
é obvio que certa malta venha com este tipo de conversa sobre a democracia participativa.
é o velho discurso pelo medo... apontam exemplos descabidos e teorias no minimo ridiculas...
como anarquista, defensor da democracia participativa (e da acção directa), penso ser possivel tal coisa existir. alias até certo ponto quando um cidadao entra num movimento social seja de que natureza for, já a está a pôr em practica.
e aqui não confundir movimento politico, do estilo partidario, (não sou supra partidario como o outro, sou apartidario) com movimento social ou civico.
no fundo, sabem que se alguma vez a democracia participativa singrar (por meios pacificos), assim como a revolução liberal singrou (por meios violentos), eles seriam uma infima minoria (estilo os monarquicos) e a sua mentalidade passaria para os livros como mais um dos episodios da fabulosa historia da humanidade.
já agora, excelente texto.
muito bom. Mas olha que nem todas em as democracias representativas o poder executivo absorve o legislativo. Acho que isso depende da disciplina partidaria e do vigor e debate interno dos partidos. O caso Ingles (ao contrario do portugues) exemplo disso. O Labour nao segue Blair acriticamente (veja-se o caso das ultimas leis anti-terrorismo) e faz oposicao (responsavel)ao executivo.
Quanto a democracia participativa, esta parece-me fundamental e um bom complemento da democracia participativa (sao complementares, nao achas?). Tocqueville defendia a importancia do self-rule e esta (sem recorrer a Rousseaunianismos) nao existe sem participacao activa da pop. Os EUA tem uma tradicao participativa significativa (decrescente, segundo consta) nas pequenas cidades e counties, a questao consiste em saber se isto e' algo facil de implementar em Portugal. A vontade nao chega (ai estou de acordo com o anti-racionalismo dos austriacos).
Um abraco e parabens pelo excelente post
Post a Comment