Neste seu post, Carlos Novais levanta algumas questões/temas para discussão, nomeadamente esta "como adquirir propriedade honestamente que está no estado da natureza (pela ocupação e uso? ou pela permissão/concessão de terceiros?)".
Eu há tempos que pensava em escrever algo sobre uma das vertentes dessa questão - há umas semanas estive a tentar fotografar os corvos-marinhos (pelo menos, acho que são corvos-marinhos) das margens do Arade; será que num sistema liberal "extremo" isso seria possível? E num sistema anarquista tradicional (i.e., "de esquerda")?
A questão é a seguinte - a visão tradicional dos liberais sobre a aquisição de bens que não são de ninguém é "a propriedade adquire-se misturando o seu trabalho com esses bens em estado de natureza" (mas refira-se que o CN fala apenas em "ocupação e uso", não em "misturar trabalho").
Ora, se usarmos o critério do "misturar trabalho", como ficam as pessoas que gostam da natureza em estado selvagem?
Imagine-se que eu gosto de passear nas margens de um rio a fotografar as aves e outra pessoa quer construir lá uma urbanização. Vamos supor que o rio não tem dono. Em principio, penso que fotografar aves não conta como "misturar trabalho", logo eu não podia reclamar a propriedade sobre o rio ou as margens, logo não podia impedir o outro de construir lá a urbanização. Já ele, ao construir a urbanização, estaria a misturar o seu trabalho, logo poderia reclamar a propriedade das margens do rio.
Outro exemplo: na minha infância, eu adorava, na maré vazia, ir brincar nas poças de agua que se formavam nas rochas na Praia da Rocha (nomeadamente, ir apanhar camarões). Para aí há um quarto de século, foi despejada uma enorme carga de areia para aumentar a praia e a zona das poças foi subterrada.
Ora (assumindo que, previamente, a praia não teria dono), como seria resolvido o conflito de interesses entre os utilizadores da praia que preferissem as poças de água e os que preferissem aumentar o areal? De novo, temos a mesma situação - penso que passear entre as rochas, observar os peixes e as anémonas-do-mar, etc., não conta como "misturar trabalho" (já não tenho tanta certeza no caso de apanhar camarões), logo seria difícil aos "apreciadores de poças e rochas" reclamar a propriedade da praia, e limitar a arenização (esta palavra não existe, pois não?); pelo contrário, meter mais areia na praia é "misturar trabalho", pelo que alguém que chegasse à praia (sem dono) com uns camiões de areia poderia despejá-los à vontade e assumir a propriedade do novo areal.
Ou seja, a regra do "misturar trabalho" dá vantagem aos que preferem usufruir de ambientes "transformados" face a quem prefere ambientes "naturais".
Uma situação intermédia poderá ser o caso dos caçadores, pescadores e apanhadores de marisco - estes efectivamente pode-se dizer que, com o seu trabalho, transformam o meio (antes tínhamos um rochedo com percebes, e depois passamos a ter um rochedo limpo), logo talvez possa-se considerar que "misturam trabalho" (era a tal questão dos camarões) e que terão direito à propriedade dos seu locais habituais de caça/pesca.
Mesmo assim, parece-me ambíguo - penso que o argumento "lockeano" para a aquisição de propriedade misturando trabalho é de garantir ao individuo a propriedade dos frutos do seu trabalho: ora, o fruto do trabalho de um pescador é os peixes que apanha, não é o "mar subtraido dos peixes que ele apanhou", logo não me parece tão linear que, de acordo com essa teoria, o pescador tenha direitos de propriedade sobre o mar onde pesca (quem diz "o pescador", diz "o conjunto dos pescadores de determinada aldeia"). E já vi em sites anarco-capitalistas quem negasse direitos de propriedade sobre a terra aos índios norte-americanos, com o argumento que estes só caçavam e não cultivavam a terra (e quem retorquisse que não, que os índios eram os legítimos proprietários).
Qualquer resposta parece-me problemática - se admitirmos que a caça, a pesca, e actividades similares não geram direitos de propriedade sobre os recursos naturais, é claramente injusto para as pessoas/povos que se dedicam a essas actividades, e até pode ser economicamente ineficiente (poderíamos ter situações em que a caça fosse mais produtiva que a agricultura, mas em que os habitantes prefeririam dedicar-se à agricultura como forma de adquirir direitos de propriedade). Mas, por outro lado, porque razão o facto de eu, a dada altura, ter apanhado conquilhas numa praia me há de dar o direito de propriedade sobre essa praia, e nomeadamente o direito a cobrar a quem queira ir também apanhar conquilhas lá? A minha apanha original de conquilhas não acrescentou valor nenhum à praia (muito pelo contrário - passaram a haver menos conquilhas lá).
Agora, como eu já disse, também é verdade que o CN só falou em "ocupação e uso", não em "misturar trabalho". Efectivamente, a "ocupação e uso" tem uma maior margem de significados - até se pode considerar que fotografar corvos-marinhos é uma forma de ocupação e uso, logo poderá, em certos casos, ser uma forma de adquirir direitos de propriedade. Mas, sinceramente, também não me parece muito lógico que eu possa chegar a um terreno sem dono, dar lá um passeio, tirar umas fotografias e depois dizer "Agora isto é tudo meu!" (claro que há sempre a alternativa de considerar que um dado uso precisa de ser continuado durante um dado período de tempo para conceder direitos de "aquisição original", e que esse período varia conforme o tipo de uso).
Uma solução é estabelecer que esses casos "bicudos" devem ser decididos pelas comunidades locais, ao nível mais pequeno possível (suspeito que a posição do CN será algo parecido com isso). Mas isso, no fundo, não é reconhecer uma espécie de "micro-comunismo em última instancia", em que a legitimidade da propriedade, mesmo privada, deriva do seu reconhecimento pela comunidade?
E, se estes casos são problemáticos para a direita liberal (pelo menos, para a mais preocupada com uma aquisição original justa), também (ou mais) me parecem para a esquerda anarquista: afinal, se se defende a ocupação de casas abandonadas ou de terrenos não-cultivados não se poderá estará a abrir a porta para que alguém se possa instalar numa reserva natural e construir lá uma casa com sete quartos?
6 comments:
Excelente post!
Eu diria que no anarquismo o problema não tem gravidade maior: o espaço não "é" de uma pessoa, o espaço "está" de uma pessoa e só "está" se houver justificação moral para tal. Assim sendo a comunidade pode conferir legitimidade para ocupar uma casa abandonada, mas não para destruir, ocupar ou monopolizar um recurso que considera valioso em estado bruto. Acho que o hotel algarve não passava numa maioria de 3/4 de uma assembleia ... (estamos a falar de democracia directa, não?) ...
Mas estou certo que este tópico faria faísca de opiniões até dentro de correntes somente anarquistas. Estou a pensar que decerto Rocker e Stirner tenham opiniões bastantes diferentes relativamente a isto.
Parabéns. MM.
Miguel, comentei a sua postagem no meu blog.
O primeiro ponto que se poderia mostrar é que, enquanto o homesteader pode reclamar a posse sobre um dado bem por ter conferido uma parte de si mesmo a ele (ao cultivar a terra, esculpir uma escultura, construir uma barreira etc), o mesmo não pode ser feito por aquele que não retirou o bem de seu estado original. Ainda que tal indivíduo valore muito o bem, e talvez ele tenha mais apreço por tal bem que qualquer outro, ele não transformou o recurso numa extensão de seu corpo. Este é o argumento forte.
Outro argumento que poderia ser levantado é este: recursos naturais são indispensáveis para sobrevivência humana. O homem precisa destes recursos, para habitar e para retirar o seu sustento. Privar aqueles que estejam interessados e que realmente precisem arrancar da terra os seus meios de sobrevivência em nome da valoração de alguns indivíduos pela terra não cultivada, os quais não têm uma reclamação legítima de decisão sobre a terra, é injusto.
[...]
Considerando um cenário onde as forma de organização se dêem de forma voluntária, eu penso que o mais provável é que reinasse uma panarquia de comunidades com diferentes teorias de aquisição de recursos naturais. De forma bem simples, não haveria o incentivo econômico para impor seu critério de apropriação para comunidades em que reinem critérios diferentes (guerras “agressivas” são mais prováveis num cenário estatista, já que os governos podem externalizar os custos da guerra através do pagador de impostos e da convocação militar obrigatória).
Então, respondendo a uma indagação feita por Miguel Madeira:
“Uma solução é estabelecer que esses casos “bicudos” devem ser decididos pelas comunidades locais, ao nível mais pequeno possível […] Mas isso, no fundo, não é reconhecer uma espécie de “micro-comunismo em última instancia”, em que a legitimidade da propriedade, mesmo privada, deriva do seu reconhecimento pela comunidade?”
Considero que a auto-determinação de comunidades seja algo inevitável num cenário voluntário, no entanto, ela não é a fonte de legitimidade das possíveis teorias de propriedade sobre a terra que possam surgir.
... ou seja, aquilo que tu chamas de "uma espécie de micro-comunismo em última instancia" pode ser um assunto bicudo para o "libertarianismo", mas é perfeitamente legítimo para o anarquismo.
I told you. We're an anarcho-syndicalist commune. We take it in turns to act as a sort of executive officer for the week,but all the decisions of that officer have to be ratified at a special bi-weekly meeting by a simple majority in the case of purely internal affairs, but by a two-thirds majority in the case of more major ...
Kraak & Smaak!
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