Wednesday, October 20, 2010

O neo-nasserismo de Helena Matos

No Blasfémias, Helena Matos dá voz a um gajo qualquer que diz que nunca houve palestinianos e que o que havia naquele território (tradicionalmente considerado parte da Síria) eram árabes, beduínos, etc., mas não "palestinianos".

Portanto a conclusão que podemos tirar é que, em 1948/49, os fundadores de Israel não expulsaram centenas de milhares de palestinianos, mas sim centenas de milhares de árabes; é falso que desde 1967 mantenham sobre sua ocupação os palestinianos dos "territórios" - na verdade, quem está ocupado pelos israelitas são os árabes dos "territórios"; e os colonatos, barreiras militares, muralhas, etc. que os israelitas constroem na margem ocidental não privam as aldeias palestinianas das suas terras, das suas reservas de água, dos caminhos e estradas que necessitam para circular... não! O que os colonatos, barreiras militares, muralhas, etc. fazem é privar as aldeias árabes das suas terras, das suas reservas de água e dos caminhos e estradas que necessitam para circular.

É uma tese com um passado histórico respeitável - sempre foi largamente a tese da Liga Árabe e dos que se opõem a qualquer "paz separada" com Israel (e por isso consideraram Sadat um traidor), já que para eles o conflito é entre Israel e a "nação árabe" no seu todo, não com qualquer "nacionalidade árabe" em particular. Dentro da OLP é a linha da Saika (que pretende, não uma Palestina independente mas um mega-estado pan-árabe dirigido pelo Baath sírio) e da Frente de Libertação Árabe (a mesma coisa, mas sob a liderança do Baath iraquiano); até certo ponto, era também a posição do Movimento Nacionalista Árabe / Frente Popular para a Libertação da Palestina, inicialmente fãs de Gamal Abdel Nasser e da "República Árabe Unida" (até à Guerra dos Seis Dias e a retirada egípcia do Iemén os terem desiludido com o regime do Cairo).

A tese de que toda aquela região sempre foi chamada de "Síria" (e, concomitantemente, que  "Israel", "Líbano" e "Jordânia" são "criações artificiais do imperialismo") também sempre foi popular entre o regime sírio, nomeadamente para justificar as suas pretensões de tutela sobre o Líbano.

Já tenho mais dificuldade em perceber alguns defensores da política israelita alinharem pelo mesmo diapasão (discutir sobre se os palestinianos são um povo em si ou apenas parte do povo árabe pode ser relevante para os conflitos internos dentro da OLP, mas não vejo em que altere muito os dados do conflito israelo-árabe/palestiniano).

Mas a deriva nasserista/baathista/pan-árabe de Helena Matos cai no erro de todos os nacionalismos que julgam que o que faz uma nação é um passado partilhado; não é - o que faz uma nação é o desejo de viver um presente e um futuro partilhado (e quando esse desejo existe, facilmente se inventa esse tal passado partilhado) - o caso mais paradigmático é mesmo o de Israel (uma nação deliberadamente criada por indivíduos que decidiram, de forma racional e voluntarista, constituir uma nova nação em vez de continuarem a pertencer às nações em que tinham vivido durante séculos), mas praticamente todas as nações surgidas no século XX andam lá perto (há uns séculos atrás, quem ouvia falar em "checos"? O que havia era "boémios", "morávios" e talvez mais um ou outro grupo; e que moçambicanos havia no século XIX? E paquistaneses antes da partilha da Índia? E bangladeshis? E os moldavos, que só são uma nação porque viram que a Roménia estava ainda mais falida que eles? E , já agora, em 1760 qual era a diferença entre o que veio a ser os EUA e o que veio a ser o Canadá?).

A verdade é que os "palestinianos" poderiam ser tão só e apenas "árabes" durante séculos, mas a partir do momento em que, após 1948, nos campos de refugiados começaram a aparecer grupos "palestinianos", que tiverem que lutar tanto contra Israel como contra a repressão jordana e egípcia (o primeiro morto da Fatah foi morto pelos jordanos, não pelos israelitas), surgiu uma identidade nacional palestiniana, distinta (embora não necessariamente contraditória) da identidade árabe, como das identidades tribais e clânicas pré-existentes. E a prova disso é que durante décadas o grupo palestiniano mais importante foram os "nacionalistas palestinianos" da Fatah, enquanto nunca ninguém ligou muito aos "nacionalistas árabes" da Saika ou da FLA, nem à primeira direcção da OLP, de Ahmed Shukeiri (que havia sido largamente escolhida pela Liga Árabe) - ou seja, os "palestinianos" consideram-se um povo, e é isso que os faz um povo (creio que foi Alexandre Herculano - será que os liberais do Blasfémias não o leiem?! - que disse "Nós somos portugueses porque quisemos ser portugueses").

[publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]