Saturday, May 28, 2011

Pode haver ditaduras de esquerda?

O Andé Azevedo Alves e o Nuno Gouveia referem (aparentemente discordando) a posição de que "não há ditaduras de esquerda".

Será que podem haver "ditaduras de esquerda"? A resposta a isso é complicado, sobretudo por uma razão - não é muito claro o que quer dizer "ditadura". Imagino pelo menos 3 sentidos possíveis para a palavra "ditadura":

1 - regime politico em que uma elite (ou, no caso extremo, um individuo) impõe a sua vontade ao povo

2 - regime politico em que não há limites ao poder dos governantes (não há separação dos poderes, "estado de direito", etc.)

3 - as duas coisas ao mesmo tempo (isto é, só será uma "ditadura" se verificar simultaneamente as condições 1 e 2)

Pondo as coisas de outra maneira, qual é o antónimo de "ditadura"? Se formos pelo sentido 1, será "democracia", se formos pelo sentido 2, será talvez "liberdade".

Para complicar ainda mais a questão, hoje em dia muita gente (tanto de esquerda ou de direita, tanto pró como anti-ditaduras...) usa os dois sentidos como equivalentes, sem se lembrar que são conceptualmente diferentes (a conversão actual da direita liberal à democracia e da esquerda radical ao liberalismo de costumes contribui ainda mais para essa confusão, já que diminui a quantidade de pessoas empenhadas em notar que "democracia" e "liberdade" não são forçosamente sinónimos)

Regressando à questão - é possivel uma ditadura de esquerda? Se adoptarmos a definição 1 (e a 3, que implica a 1), possivelmente não - afinal, o dogma fundamental do pensamento de esquerda é o igualitarismo, a ideia que todos devem ter a mesma participação na distribuição da riqueza e na tomada de decisões; desde que se fala em esquerda e direita que a esquerda tem tido como bandeira a participação do maior número de pessoas no processo politico (desde a defesa da supremacia do parlamento sobre o rei - o motivo original da divisão "esquerda/direita" -, passando pela república, o sufrágio universal, o "aprofundamento da democracia participativa", etc.). Ora, um regime em que o poder está nas mãos de uma minoria é a negação disso tudo; o próprio facto de as ditaduras originadas a partir do movimentos de esquerda sentirem a necessidade de terem "democrático" no seu nome (ex. "República Democrática Alemã") demonstrará que há uma contradição intrinsica entre ideias de esquerda e uma ditadura (e por isso os ditadores que se dizem de esquerda têm que fingir que os seus regimes são democracias - pelo contrário, ditadores de direita não tem problema nenhum em defender que cabe aos "grandes homens" liderar as "multidões de medíocres", ou coisa parecida).

Mas, se definirmos "ditadura" pelo sentido 2, já não há nenhuma contradição no conceito de "ditadura de esquerda" - um bom exemplo poderá ser a França durante o Terror, em que um comité responsável perante um parlamento eleito por sufrágio universal mandava cortar cabeças a torto e a direito (mas o regime de Napoleão, uns anos mais tarde, já não seria uma ditadura "de esquerda").

2 comments:

Ricardo Aveiro said...

Na verdade, para que uma elite imponha a sua vontade ao povo, o 2 tem sempre que se verificar.

Por outro lado, a redução do estado de direito tem como objectivo a imposição da posição de uma minoria ao povo (ou mesmo de uma maioria, se entrarmos no campo da demagogia - a subjugação da minoria face à maioria é feita através do despojamento dos direitos). Caso contrário, não era necessário o fim do estado de direito.

O problema com o 1), é que sem o 2), não temos ditaduras. Por ex. se conclui que Hitler não era um ditador. Ele tinha o apoio do seu povo... Com esta definição também não há ditaduras de direita...

Ou seja, apenas o 2) é relevante. Logo, pode haver ditaduras de direita e de esquerda.

Já agora, uma nota. O liberalismo inicialmente era considerado à esquerda do espectro político, e com a chegada do comunismo/socialismo e afins, passou a estar à direita. Note-se que é esta a ideologia que mais defende o Estado de Direito. Veja - não é a esquerda ou a direita que são mais democráticas. É o liberalismo que é mais democratico que todos os outros.

Por outro lado, a esquerda é profundamente anti-liberal (também nos costumes, pois convém não confundir liberdade e progressismo - a esquerda muitas vezes impõe o "progresso" às pessoas, não as quer deixar escolher - veja-se a ultima proposta de lei para as uniões de facto, que passava a incluir uma espécie de divórcio!!!).

Pelo que a questão que se impõe é: existe alguma esquerda verdadeiramente democrática?

Miguel Madeira said...

"Na verdade, para que uma elite imponha a sua vontade ao povo, o 2 tem sempre que se verificar."

A curto prazo não, embora a médio e longo prazo sim. Algo que escrevi sobre o assunto:

http://ventosueste.blogspot.com/2009/10/porque-o-liberalismo-esta-condenado-ao_5328.html

"Por ex. se conclui que Hitler não era um ditador. Ele tinha o apoio do seu povo... Com esta definição também não há ditaduras de direita..."

O partido nazi nunca teve a maioria nas eleições. Mesmo em 1933, em que a campanha eleitoral decorreu já em quase ditadura (sentido 2), com as liberdades civis restringidas e com as SA e as SS a impedirem os comícios da oposição, os nazis tiverem apenas 44% dos votos.

No entanto, em vez de "regime politico em que uma elite (ou, no caso extremo, um individuo) impõe a sua vontade ao povo" ficaria melhor "regime politico em que uma elite (ou, no caso extremo, um individuo) pode impor a sua vontade ao povo" (a diferença é pequena mas é relevante - se um líder todo-poderoso toma uma decisão que, por acaso, o povo até concorda, de certa forma ele não está a impor a sua vontade ao povo; mas continua a ter o poder de a impor)

"Já agora, uma nota. O liberalismo inicialmente era considerado à esquerda do espectro político, e com a chegada do comunismo/socialismo e afins, passou a estar à direita. Note-se que é esta a ideologia que mais defende o Estado de Direito. Veja - não é a esquerda ou a direita que são mais democráticas. É o liberalismo que é mais democratico que todos os outros." (...)

Acho que nesta parte o Ricardo está a confundir "democrático" com "liberal" ou "libertário" ("democracia" é suposto ser o oposto de "ditadura - 1", enquanto "liberdade" será o oposto de "ditadura - 2")