Wednesday, March 21, 2012

Quando é que começa a vida de um zangão?

Para os que dizem que a vida começa com a concepção, e acrescentam que "não há qualquer dúvida científica sobre o que é o início da vida, seja ela vegetal ou animal. No pinheiro é o pinhão e na espécie humana é o zigoto", digam-me lá quando é que é o inicio da vida de um zangão.



Primeiro, um resumo da problemática - os ovos de uma abelha rainha podem ser fertilizados ou não; se não forem fertilizados, sai de lá um zangão (bem, uma larva de zangão...); se forem fertilizados, sai uma fêmea (o equivalente a uma situação em que as mulheres ficassem espontaneamente grávidas de meninos, e precisassem de ter relações sexuais para terem meninas). Nas larvas fêmeas, a sua evolução posterior depende da educação - a maioria terá uma educação regular, e virão a ser operárias, mas ocasionalmente algumas serão colocadas em colégios de elite, para virem a ser rainhas (o programa curricular dos dois tipos de educação não é muito diferente - a larva passa os dias num favo, fazendo alguns movimentos, sendo alimentada com uma papa fornecida pelas operárias; a diferença está na comida - as futuras rainhas são alimentadas com uma substância diferente das futuras operárias; um daqueles pequenas nadas que fazem toda a diferença, estilo saber pegar no talher...).

Regressando à questão - quando começa a vida do zangão? De certeza que não começa na concepção (a concepção é, exactamente, o momento em que é determinado que não vai sair um zangão daquele ovo); começará quando o ovo é produzido? Mas nesse momento ainda não está determinado o que vai sair desse ovo (pode sair um zangão ou uma fêmea). No momento em que ovo perde a oportunidade de ser fecundado? Mas não me parece que esse momento seja um instante bem definido (confesso que não sei qual o prazo que um ovo de abelha tem para ser fecundado antes de ficar irreversivelmente zangão).

Já agora - e quando começa a vida de uma abelha fêmea? Na fecundação? Ou logo quando o ovo é produzido (afinal, pode-se argumentar que já estava definido que ia sair dali uma abelha, sendo a fecundação simplesmente uma operação de mudança de sexo; mas se o ser que lá vai sair após a fecundação é geneticamente diferente do que sairia sem fecundação, poderá ser considerado um novo ser que só surgiu na concepção)?

Podemos também abordar outro problema - quando é que acaba a vida de um zangão? Há primeira vista parece simples - o zangão morre pouco depois do acasalamento; no entanto, a abelha rainha armazena o esperma do(s) macho(s), e usa-o para fecundar os seus ovos (excluindo, claro, os dos futuros zangões). Ora, se os espermatozóides do zangão continuam vivos durante anos, se esses espermatozóides têm o mesmo ADN que o zangão original (ao contrário dos humanos, em que os espermatozóides apenas têm metade dos cromossomas do homem que os produziu), e se, via esses espermatozóides, o zangão continua a reproduzir-se (no fundo, a essência dos seres vivos - como alguém disse, "uma galinha é simplesmente a maneira de um ovo produzir outro ovo"), não poderemos considerar que o zangão continua vivo? Porque é que havemos de equacionar o zangão com a cabeça, torax, abdomén, asas, patas, etc. do zangão (que morrem) e não com o seu esperma (que continua vivo)?

Mas se quisermos ir ainda mais longe, pudemos até questionar se o zangão é "apiculo" (estou a tentar aplicar uma palavra que esteja para "Abelha" como "humano" está para "Homem")? Afinal, a respeito da questão "um óvulo não fecundado pode ser considerado humano?", há quem diga que "não" com o argumento que o óvulo (e o espermatozóide, já agora) tem metade dos cromossomas que as células de um ser humano. Mas o zangão tem metade dos cromossomas que uma abelha fêmea (a rainha - tal como as fêmeas humanas - passa metade dos seus cromossomas para o óvulo; como os zangões nascem de ovos não fecundados, têm metade dos cromossomas que a rainha; como o zangão - ao contrário dos machos humanos - passa todos os seus cromossomas para o espermatozóide, no final a conta dá certa: um óvulo fecundado tem o mesmo número de cromossomas que uma abelha fêmea); logo, por esse raciocínio poderíamos considerar que um zangão não chega a ser um organismo propriamente dito (se a razão para considerarmos um zangão como um ser vivo for algo como "mexe-se, tem um sistema nervoso rudimentar, apercebe-se da realidade através dos sentidos, é muito parecido com uma abelha, etc.", onde é que isso nos pode levar na discussão sobre o início da vida...).

E, já agora, quando é que começa a vida de uma alforreca?

As alforrecas mandam os óvulos ou os espermatozóides para a água (imagino que quando sintam uma concentração de alforrecas no local) e após a fecundação desenvolve-se uma larva, que se fixa ao fundo do mar como um pólipo, uma coisa parecida com uma anémona-do-mar em miniatura ou um coral. Ao fim de algum tempo, a partir do pólipo desenvolvem-se pequenas alforrecas, que se libertam para o oceano e regressam à vida natatória.

Assim, quando começa a vida de uma alforreca? Na concepção, que dá origem à larva/pólipo? Ou quando a alforrequinha se liberta do pólipo? E, aliás, o casal original de alforrecas deve ser considerado como os pais ou como os avôs da nova geração de alforrecas?

E, já que estamos a falar de alforrecas, o que dizer da caravela-portuguesa? Há primeira vista parece uma alforreca (com tentáculos de 10 metros...), mas na verdade nem é considerada como um organismo, mas sim como uma colónia de pólipos (isto é, de montes de pequenos organismos).

A sua reprodução - alguns dos pólipos da caravela-portuguesa produzem células sexuais; supostamente quando várias caravelas-portuguesas se encontram próximas, os óvulos e espermatozóides são libertados para a água, e no caso de haver fecundação desenvolve-se uma larva que dá origem a um pólipo; ao contrário do que se passa com a alforreca, esse pólipo não se fixa ao fundo do mar, mas mantém a vida livre, e a partir do pólipo original, vão nascendo novos pólipos; isso até é vagamente parecido com as tais alforrecas que nascem a partir do pólipo, mas na caravela-portuguesa os pólipos permanecem unidos uns aos outros, sendo incapazes de sobreviver sozinhos.

Aqui a questão do "início da vida" tem ainda mais pano para mangas - temos a questão se a vida cada pólipo individual começou no momento inicial da fecundação do ovo, ou se começa quando o pólipo nasce de outro pólipo; e podemos ter ainda outra questão: sobre se "a vida" que estamos a discutir quando começa é a vida de cada pólipo, ou se devemos é discutir a vida da colónia no seu conjunto.

Um aparte - para falar a verdade, nem é muito claro porque é que a caravela-portuguesa é considerada como uma colónia em vez de como um organismo individual; afinal, os pólipos têm todos o mesmo ADN, nascem uns dos outros, estão fisicamente juntos, têm funções diferenciadas e não sobrevivem sozinhos; qual é a grande diferença entre isso e os diferentes órgãos que compõem uma pessoa? Fazendo uma busca na internet não consigo perceber se cada pólipo tem um sistema nervoso individual ou se a colónia tem um sistema nervoso conjunto, o que poderia ser uma pista para o critério usado para a catalogar como um colónia de indivíduos em vez de como um grande individuo (mas, de qualquer maneira, alforrecas e afins, embora tenham nervos, não têm propriamente um sistema nervoso centralizado). De qualquer forma, parece que a principal razão é a comparação com os "primos": como parece que a biologia interna de cada pólipo é muito parecida com a de uma alforreca, uma anémona-do-mar ou um coral individual, considerou-se que os pólipos deveriam ser vistos como indivíduos e a caravela-portuguesa como uma colónia.

Claro que toda esta conversa de "quando começa a vida" tem um equívoco desde o início - a vida começou há uns milhões de anos na "sopa primordial", quando uma série de reacções químicas produziram moléculas de ADN (ou algo parecido), que por sua vez deram origem a outras moléculas de ADN, que deram origem a outras..., muito provavelmente num processo continuo até aos dias de hoje (quase de certeza que as moléculas de ADN que se devem estar a dividir para produzir novas células para substituir as outras minhas células que estão constantemente a morrer existem numa sequência ininterrupta desde a pré-história longínqua) sem qualquer paragem, ou algum momento em que se possa dizer que "criou-se vida" - nomedamente, dizer que a vida começa na concepção, ou no nascimento, ou com o sistema nervoso central, é dizer que antes de qualquer um desses marcos teríamos matéria morta (o que faria desse "princípio da vida" uma espécie de milagre ou acontecimento científico notável - vida a surgir de matéria morta!).

Na verdade, o que toda a gente quer dizer quando diz "o início da vida é no momento em que...." é "um conjunto de células passa a ser um organismo no momento em que...". Mas se há coisa em que há carradas de "dúvida cientifica" é exactamente na questão "quando é que um conjunto de células passa a ser um organismo?" [pdf] - veja-se o exemplo da referida caravela-portuguesa.

No comments: