Sunday, December 30, 2012

A peça da TVI sobre o abismo fiscal nos EUA

É capaz de constituir justa causa de despedimento do jornalista que a elaborou. É que é daquelas coisas que se pode dizer que são "not even wrong".

Para começar, o que é o "abismo fiscal"? O Nuno Gouveiaaqui uma explicação mais detalhada, mas, basicamente, o que aconteceu foi que algumas reduções de impostos aprovadas nos tempos de Bush filho foram temporários, expirando a 31 de dezembro de 2012. Assim, se nada for feito, em 2013 os norte-americanos serão confrontados com um aumento brutal de impostos.

Para impedir isso, tanto Obama como a liderança republicano têm sugeridos planos alternativos, em que sejam renovados as reduções de impostos para a maior parte das pessoas, sendo afectados apenas os altos rendimentos. No entanto, tais propostas têm sido rejeitadas por muitos congressistas republicanos, que só aceitam uma solução em que ninguém fique a pagar mais impostos (convém notar que, aqui, a "opção default" é o aumento de impostos para quase toda a gente - isto é, se o Congresso não aprovar medida nenhuma, os aumentos de impostos entram automaticamente em vigor).

Ora, a peça da TVI descreve o "abismo fiscal" de forma totalmente fantasiosa - diz que os EUA estão à beira de atingir o limite do endividamento e que, caso não haja acordo, vão entrar em incumprimento e não vão conseguir pagar a dívida! O autor está claramente a confundir o "abismo fiscal" com a questão do "debt ceiling", um assunto largamente diferente. E dá a entender que o motivo porque Obama está a propor o aumento de impostos sobre os mais ricos como uma maneira de impedir esse incumprimento, quando o que se está a discutir pouco tem a ver com isso.

E isso é um erro gravíssimo porque inverte completamente os termos do problema - dá a entender que o perigo que vem aí é o de o governo dos EUA ficar sem dinheiro, quando o risco é exactamente o oposto: ficar com dinheiro a mais (e os norte-americanos com dinheiro a menos) devido aos aumentos de impostos.

[Será que os jornalistas foram influenciados pelo facto de viverem num país em que o problema orçamental principal tem sido, realmente, o Estado estar à beira de ficar sem dinheiro, e por isso terem dificuldade em imaginar que outros países possam ter problemas orçamentais diferentes? Admito que para um sul-europeu - ou para um irlandês - a ideia "temos que fazer urgentemente alguma coisa para impedir o deficit de descer demasiado" é um bocado contra-intuitiva]

Adenda: já que estou com a mão na massa, tenho também algumas dúvidas que seja verdade isto que o "Público" diz: "os democratas querem uma subida concertada de impostos apenas nos rendimentos mais elevados e os republicanos, por outro lado, defendem um aumento generalizado de impostos sobre o rendimento"; a ideia que tenho é que grande parte dos republicanos se opõem a qualquer aumento de impostos (exactamente o oposto do que o Público diz), mas talvez o jornalista se esteja a referir às propostas de alguns republicanos de eliminar benefícios fiscais (o que realmente fará muita gente pagar mais impostos), ou simplesmente ao resultado prático de recusar qualquer compromisso com Obama e os democratas (que irá ser "cair no abismo" e subir os impostos para todos).

1 comment:

Manuel said...

Exactamente! Mas ignorância neste país já é endémica!