Está na moda, sejam em debates ou em videoclips, a oposição entre Keynes e Hayek (e suponho que ambos concordariam com essa oposição).
Mas será que muito do anti-keynesianismo actual não será ainda mais anti-hayekiano do que o próprio keynesianismo?
Primeiro, uma recapitulação das opiniões dos protagonistas:
a) Keynes achava que as recessões eram provocadas por uma escassez de procura, e que portanto a solução para isso era o Estado aumentar o deficit (aumentando as despesas e/ou reduzindo os impostos); para Keynes, nem sequer era necessário que o Estado fizesse despesa em coisas úteis - mesmo que o dinheiro fosse gasto a abrir a tapar buracos, as pessoas contratadas para fazer esse trabalho iriam depois gastar o ordenado a comprar bens que fossem úteis para eles, e as pessoas a quem eles fizessem compras iriam também comprar coisas úteis noutros sitios, e assim por diante... de forma que mesmo a despesa inútil iria estimular a produção de bens úteis
b) Hayek escreveu muita coisa, sobre vários assuntos; mas penso que o aspecto mais marcante do seu pensamento é a ideia de que é impossivel os decisores centrais conseguirem ter acesso a toda a informação que está dispersa pelos milhões de individuos na sociedade, logo o planeamento centralizado (ou tudo o que se aproximasse disso) estaria condenado ao fracasso
Agora, há pelo menos duas possiveis maneiras de não ser keynesiano - uma é defender que não se deve fazer politica nenhuma para combater as crises económicas e que o mercado resolverá o problema por si; a outra é achar que, já que as crises têm a sua raiz em problemas de oferta e não da procura, então se o Estado intervir deve ser no sentido de solucionar esses problemas do lado da oferta (exemplo clássico: formação profissional / "qualificações").
O primeiro tipo de não-keynesianismo (vamos chamar-lhe "não-keynesianismo liberal") é típico da direita mais "conservative"/"libertarian" norte-americana e de alguns circulos intelectuais na Europa; já o segundo tipo (vamos chamar-lhe "não-keynesianismo intervencionista") é típico tanto da esquerda "responsável e não-dogmática" como da direita "responsável e não-dogmática" (o discurso típico é "não acreditamos nas velhas ideias de gastar dinheiro a torto e a direito para resolver os problemas, mas também não somos nenhuns neo-liberais; achamos que o Estado tem um papel importante, mas em sectores especificos - educação, infra-estruturas, promoção do «empreendedorismo», etc.- necesários para sustentar o crescimento económico a longo prazo").Penso que o "não-keynesianismo intervencionista" é mais frequente na Europa, mas também aparece nos EUA (p.ex., por vezes alguns artigos do David Brooks, que se calhar é mais um "conservador europeu que por acaso é americano" do que um "conservador americano", parecem-me um pouco nessa linha).
Aliás, arrisco-me a dizer que a única variante de "não-keynesianismo" que é politicamente vendável na Europa é a "intervencionista" - basicamente, os eleitores europeus nunca votariam num partido que, perante uma recessão, dissesse "não vamos fazer nada".
Bem, agora vamos ao que é suposto ser o ponto central deste post: é que, a partir do momento que se aceita que o Estado deve fazer alguma coisa para combater as crises, a visão keynesiana acaba por ser também a mais "hayekiana" - a tradicional politica keynesiana de estimular a economia via aumento da procura (nem que seja gastando dinheiro em coisas inúteis, como bunkers contra uma invasão extra-terrestre imaginária) requer muito menos "conhecimento" por parte dos decisores politicos do que as politicas não-keynesianas de estimular a economia resolvendo os supostos problemas do lado da oferta (que normalmente implicam muito maior micro-gestão por parte do governantes, para descobir quais são esses problemas e como resolvê-los), logo acaba por sofrer menos com o problema hayekiano de os planificadores centrais não terem acesso a toda a informação (o não-keynesianismo intervencionista até pode, em termos quantitativos, interver menos - p.ex., no sentido de a despesa pública representar uma menor percentagem do PIB - mas essa intervenção, nos setores em que ocorre, tem o potencial para ser muito mais detalhada e minuciosa).
Um exemplo do que escrevo é a famosa ideia do "Banco de Fomento" - não acho que este governo seja "o mais neo-liberal de sempre" (provavelmente esse terá sido o de Cavaco Silva - se considerarmos que os seus três governos foram na prática um governo prolongado por 10 anos), mas é seguramente o mais anti-keynesiano de sempre; e mesmo as suas políticas não-liberais (como o tal banco) têm essa marca anti-keynesiana: como bons anti-keynesianos, chegaram à conclusão que o problema fundamental que as empresas portuguesas enfrentavam não poderia ser um problema de falta de procura, mas teria que ser um problema do lado da oferta (que outra coisa poderia ser?), neste caso uma dificuldade das empresas em obter crédito (por uma qualquer razão misteriosa, os bancos privados não estariam a conceder empréstimos a projetos de investimento perfeitamente viáveis e com uma excelente relação rentabilidade/risco); logo, a solução para esse problema foi criar mais um banco público (ou qualquer coisa que não é bem um banco, mas será como um banco) para apoiar as empresas.
Tuesday, May 06, 2014
Keynes contra Hayek?
Publicada por Miguel Madeira em 11:59
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4 comments:
Excelente post, didático e profundo. Fico pensando no empreendedorismo como instrumento de atacar os lados da oferta e procura: basta que esse "banco de fomento" crie cursos de formação de empresários (e os financie) e, durante o curso, lhes pague bolsas de estudos.
DdAB
Bem visto. Uma questão: será que o Hayek alguma vez deu um argumento válido contra a política de estabilização macroeconómica? Eu li o Road to Serfdom e o Legislation and Liberty, e parece-me que são livros contra o micromanagement mas praticamente irrelevantes do ponto de vista macro.
(Outra questão ainda mais importante é: mas será que interessava aquilo que o Hayek tinha a dizer acerca de macroeconomia? O Nobel dele foi ganho por "research on the interrelations between economic, social and political processes", o que tem pouco a ver com política de estabilização).
Sobre Hayek e a macroeconomia:
Friedrich Hayek (1931); Prices and Production [PDF]
Gottfried Haberler (1986); Reflections on Hayek's Business Cycle Theory [PDF]. Cato Jornal 6
Atenção que eu só li o segundo, mas tenho a ideia que o primeiro é a "biblia" da macroeconomia hayekiana.
e con links in press ionizante
a tensão elle só leu o segundo
e nem precebeu as in picações du 1º
fantástico mike,,,
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