Tuesday, July 22, 2014

Tentativa de uma tipologia dos tipos de ficção

Pessoas normais em situações normais - ?
Pessoas normais em situações extraordinárias - romance de aventuras (várias variantes)
Pessoas extraordinárias em situações normais - drama, "literatura séria"
Pessoas extraordinárias em situações extraordinárias - ficção especulativa (FC, fantasia)

Desenvolvendo:

O tipo "pessoas normais em situações extraordinárias" corresponde às obras em que uma pessoa igual a qualquer outra de repente se vê envolvida (como testemunha, vítima, falso culpado, etc.) em conspirações, crimes, etc. Uma variante é um tipo de ficção infanto-juvenil (bastante comum nos filmes dos anos 80) em que um grupo de crianças ou de jovens adolescentes, até então levando uma vida perfeitamente normal, de repente se vê envolvida numa trama aventurosa (testemunhar um crime, encontrar um mapa do tesouro, ser visitado por extraterrestres, etc.).

O tipo "pessoas extraordinárias em situações normais" corresponde às obras em que não se passa nada de especial nos acontecimentos em que o personagem está envolvido e em que o interessante na história está mesmo no personagem em si - na sua vida interior, nos seus pensamentos e emoções, na forma como reage aos acontecimentos, etc. Grandes partes dos filmes classificados como "drama" e dos livros classificados como "ficção literária" seguem este esquema.

O tipo "pessoas extraordinárias em situações extraordinárias" , em que tanto os personagens como as situações são fora do vulgar, terá o seu exemplo mais puro nos filmes de ficção científica e de fantasia, ou na banda desenhada de super-heróis (que no fundo pode sempre ser vista como uma variante da FC ou da fantasia, conforme as origens do poder dos hérois seja técnica-biológica ou sobre-natural); no entanto, o romance de aventuras ou o policial também podem cair aqui, dependendo da forma como os protagonistas são apresentados (escala deslizante de anormalidade do protagonista num policial: cidadão comum que se vê envolvido num crime; polícia; detetive privado; criminoso contra criminosos piores que ele; superdetetive tipo "Sherlock/Poirot").

Diga-se que a fronteira entre o "pessoas normais em situações extraordinárias" e o "pessoas extraordinárias em situações extraordinárias" pode ser muito porosa: na FC/Fantasia os personagens principais, muitas vezes, por mais estranhos que sejam, são apresentados como o mais parecido que há - dentro da história - com pessoas normais (ou são humanos no espaço encontrando entidades extraterrestres, como no Caminho das Estrelas ou Espaço 1999, ou feiticeiros/deuses que só recentemente descobriram a sua natureza, como em Harry Potter ou Percy Jackson, ou são humanos com outro nome, como os hobbits de Tolkien, que me parecem mais "humanos normais" que os "humanos normais" propriamente ditos); e um personagem pode começar como "pessoa normal em situações extraordinárias" num livro/filme, e à medida que as sequelas vão avançando vão se tornando extraordinário (ou começa a ser percebidos como extraordinários pelos leitores/espetadores, mesmo que eles próprios não mudem - qualquer um dos livros de Os Cinco - nem sei porque me lembrei destes - seria "pessoas normais em situações extraordinárias", mas o conjunto dos livros acaba por dar uma aura de extraordinariadade aos próprios personagens).

Mais complicado é o quadrante "pessoas normais em situações normais", em que os personagens não têm nada de especial e também não lhes acontece nada de especial; realmente há alguns estilos avulsos que talvez se enquadrem nesta categoria: sitcoms, telenovelas (se os protagonistas não forem milionários com disputas por heranças e filhos ilegitimos pelo meio), etc. O naturalismo, o realismo e o neo-realismo tentaram deliberadamente ser isso, mas não sei se conseguiram: p.ex., Os Maias (supostamente a obra-prima do realismo/naturalismo português) realmente gira à volta de pessoas normais (num certo meio social) levando a vida normal (de novo, nesse meio) da altura, mas o que é certo é que teve que introduzir um personagem principal extraordinário (Carlos da Maia é claramente apresentado como tendo tido uma educação e uma personalidade diferentes das outras pessoas) e também um acontecimento extraordinário (penso que não é nenhum spoiler referir o incesto involuntário); a respeito do neo-realismo / realismo socialista, muitas vezes formalmente corresponde à descrição "pessoas normais em situações normais", limitando-se a descrever a vida quotidiana das classes desfavorecidas, como em Esteiros, sem os personagens ou os acontecimentos terem nada de especial; no entanto, a particularidade é que suspeito que esses romances acabavam por ser lidos sobretudo por jovens idealistas da classe média, o que os tornava na prática - do ponto de vista dos leitores - obras sobre "pessoas extraordinárias em situações extraordinárias" (o mesmo pode ser dito de muitas obras anti-guerra, descrevendo os horrores da guerra sem heroísmos, como Nada de Novo na Frente Ocidental ou Platoon: como o destinatário dessas obras era sobretudo as pessoas que não tinham participado na guerra, acaba por funcionar, do ponto de vista do público, como pessoas em situações extraordinárias). E quando o romance neo-realista acabava com uma greve, uma ocupação, ou com o personagem principal, inicialmente apolítico, a juntar-se ao "Partido", aí entrava totalmente no terreno "situações extraordinárias". No fundo, suspeito que uma obra "pessoas normais em situações normais" em estado puro acabaria por ser demasiado entediante para o público.

1 comment:

João Vasco said...

Que análise interessante :)