Há dias, André Azevedo Alves escreveu sobre "Liberalismo, Conservadorismo e Livre Comércio".
Na minha condição de não-liberal e não-conservador, uma coisa que me ocorre é que num dos supostos pontos de acordo entre liberais e conservadores talvez haja uma diferença subtil entre as duas correntes, e que até certo ponto os dois pontos de tensão assinalados são exatamente o resultado dessa pequena diferença.
Refiro-me à parte do "respeito pela instituição familiar, pelas formas voluntárias de associação civil e pelo papel dos corpos intermédios" (ou, como se refere mais à frente, "as estruturas intermédias e voluntárias da sociedade"). Neste ponto, há primeira vista (e sobretudo como está formulado no texto) liberais e conservadores parecem defender quase a mesma coisa; mas penso que há uma diferença (claro que se pode questionar se eu serei a pessoa mais indicada para falar sobre liberalismo ou conservadorismo) - creio que os liberais valorizam sobretudo o "voluntário", e os conservadores o "intermédio" (num dos conjuntos de princípios conservadores que elaborou, Russel Kirk diz que um é "conservatives uphold voluntary community, quite as they oppose involuntary collectivism"- mas se se for a ler a descrição que vem a seguir, o ponto principal parece essas comunidades ser locais e pequenas - incluindo os governos locais - mais do que o serem voluntárias; Robert Nisbet, no seu "O Conservadorismo"/"Conservatism, Dream and Reality", parece-me ainda mais explícito que as associação intermediárias não têm que ser voluntárias, até porque inclui as instituições quase-governamentais britânicas e o FED norte-americano como exemplos).
Note-se que podemos ter instituições intermédias mas não voluntárias, como governos locais, ordens profissionais, e mesmo até certo ponto a família (não é voluntária para os filhos menores; e, se não existir divórcio unilateral sem justa causa, mesmo a voluntariedade do casamento é discutível, tendo algumas semelhanças com a famosa questão da escravatura voluntária); isto para não falar de todas aquelas instituições que existiam até há uns 200 anos (corporações de artes e ofícios, igrejas oficiais, autoridades feudais ou senhoriais, escravatura, servidão...) - e que na altura eram frequente tema de controvérsia entre os liberais e conservadores de então - que poderiam ser vistas como formas de autoridade intermédia não-voluntária (note-se que o AAA fala do conservadorismo de "matriz não estatista", o que talvez relativize a relevância das minhas observações).
Da mesma forma, se calhar também poderemos ter instituições de certa maneira voluntárias, mas que sejam tão grandes que já não sejam bem "intermédias" - pense-se no caso de algumas empresas (para quem considere que a relação laboral na empresa capitalista é voluntária); voltando ao Robert Nisbet, este escrevia algo como "para um conservador, uma empresa como a AT&T, com as suas centenas de milhares de empregados, é algo quase tão assustador como a burocracia federal" (atenção que eu estou a citar um livro que não leio há mais de 20 anos - a citação provavelmente não é exata).
Um aparte - suponho que uma possível consequência da diferença entre "intermédio" e "voluntário" é que a questão da aquisição original da propriedade (nomeadamente da propriedade do solo) talvez seja mais relevante para liberais do que para conservadores: para um liberal a autoridade de um patrão sobre os empregados ou de um proprietário de terras sobre os rendeiros ou caseiros é legítima porque se baseia num contrato voluntário; mas o caráter voluntário do contrato só faz sentido se se considerar que o proprietário é verdadeiramente o proprietário legítimo da empresa ou dos terrenos em questão - se não, não haveria grande diferença entre um proprietário de terras a cobrar rendas aos seus rendeiros e um qualquer senhor feudal a cobrar tributos aos camponeses do seu território (ou um moderno gang a "vender proteção"). Já para um conservador, que considere que o principal seja a autoridade ser local e descentralizada, não fará tanta diferença se a origem remota dos direitos de propriedade atualmente existentes foram transações voluntárias ou não, e se calhar semelhanças que possam ser invocadas entre as relações hierárquicas na sociedade moderna e o feudalismo serão mais uma feature do que um bug (a esse respeito, Nisbet, na obra já referida, conta o caso de um conservador inglês do século XIX, inicialmente anti-capitalista e anti-indústria... até ao dia em que efetivamente visitou uma fábrica em Manchester, vindo de lá fascinado com o que viu, e dizendo "Nunca se criou um sistema feudal tão perfeito; pessoas e máquinas estão submetidas à vontade de um só homem, e tal não desagrada a alguém com a minha sensibilidade"). No entanto, penso que no mundo moderno, industrial ou pós-industrial, este ponto não é muito relevante, já que estas polémicas sobre quem é ou não é o proprietário legítimo parecem ser sobretudo à volta da propriedade da terra ou dos recursos naturais (bem, a sociedade pós-industrial tem também uma polémica deste género - a questão da propriedade intelectual; mas essa não me parece ter qualquer alinhamento específico com as ideologias políticas tradicionais, sendo largamente transversal às divisões entre conservadores, liberais e socialistas).
Agora podemos voltar ao ponto que eu queria referir - como talvez as tais áreas de tensão entre liberais e conservadores tenham a ver exatamente com a tal subtil diferença entre voluntário e intermédio; ou seja, a essência do tal liberalismo "racionalista" talvez seja a tendência para, havendo várias autoridades involuntárias, umas mais centralizadas, outras mais locais, ver no poder central o protetor dos indivíduos contra as "opressões" locais (basicamente, é a questão que é abordada aqui: "Advocates of individual liberty may experience the tension (...) any time the Supreme Court rules on a state law that impinges on liberty.") - fazendo leis para "proteger" os filhos dos pais (ou os alunos das autoridades escolares), revogando regulamentos locais ou regionais considerados "opressivos" (em Portugal isso não é muito relevante, mas por exemplo, a história dos EUA está cheia de conflitos entre os direitos individuais e os direitos dos estados, talvez a começar pela Guerra da Secessão) ... e, a nível internacional, a defesa da "ingerência humanitária" contra regimes ditatoriais também pode ser vista como uma manifestação dessa atitude (que por vezes pode animar ambos os lados de uma discussão - no caso do burkini, tanto os que defenderam a decisão do conselho constitucional francês revogando as leis locais que proibiam o burkini, como os que defendiam a proibição com o argumento que muitas mulheres usavam-no por serem obrigadas pelas famílias estavam ambos a seguir a linha de usar o poder do Estado para "libertar" os indivíduos das autoridades intermédias).
Inversamente, o protecionismo de alguns conservadores talvez possa ser visto como uma manifestação da tal tendência para defender o "pequeno" e o "local", mesmo quando as forças que ameaçam a "pequenez" e o "localismo" parecem ser voluntárias (como no caso do comércio internacional). E sobretudo os tratados internacionais de comércio livre (o comércio livre unilateral é um caso diferente), limitando a soberania nacional em nome da liberdade económica, se calhar parecerão a alguns conservadores como uma versão planetária do tal fenómeno dos Estados centralizados limitarem a autonomia local em nome da liberdade individual.
Uma observação final (e se calhar na linha do que já escrevi aqui) é que suspeito que tanto os liberais não-conservadores (com a sua desconfiança face à autoridade, mesmo que descentralizada) como os conservadores não-liberais (com a sua desconfiança face às grandes organizações, mesmo que sejam privadas, como no exemplo dado da companhia dos telefones norte-americana) serão muito mais fáceis de converter a alguma variante de socialismo libertário autogestionário do que os fusionistas liberais-conservadores (veja-se quer a influência dos economistas clássicos liberais sobre o anarquismo individualista - com Ben Tucker a dizer que as suas ideias eram simplesmente "manchesterianismo consistente" - quer a do "socialismo tory", nomeadamente de John Ruskin, sobre o "socialismo de guilda"). E, já agora, noto que eu linko frequentemente para artigos na Reason ou em The American Conservative, mas nem sei se alguma vez fiz algum link para a National Review.
Adenda feita a 2018/07/03: como agora até já tenho o livro do Nisbet acessivel [pdf], algumas correções ao que escrevi: a citação sobre a AT & T é "Para os conservadores, o pensamento de uma firma como a AT&T (...), tão grande como muitos governos soberanos, com empregados em número de centenas de milhares e com vários milhões de accionistas, pode ser tão difícil de aceitar como toda a burocracia federal." (páginas 114 e 115); a citação do tal conservador inglês (John Manners) que passou de anti- a pro-capitalista é "Nunca houve um sistema feudal tão completo como o das fábricas; o corpo e a alma estão ou podem estar à disposição de um só homem e, para o meu espírito, isto não é de todo uma má condição da sociedade." (página 103).
Ainda a respeito da questão do "pequeno" versus "voluntário", li mesmo há dias um artigo relevante para isso em The American Conservative, Knock It Off With the ‘Little Platoons’ Already, a respeito de como a expressão de Edmund Burke "pequeno pelotão da sociedade" é distorcido face ao significado original:
The passage in Reflections on the Revolution in France where “little platoons” appears is about French aristocrats who led the Third Estate against other aristocrats. “Platoon” doesn’t reference local government. It doesn’t reference volunteer organizations. It doesn’t even directly reference community. It references class. (...) It might sound pedantic to say that community-focused conservatives misuse the quote. They are, after all, expressing the same essential idea as Burke: society depends on intermediary institutions between the individual and the state. However, when Burke is distanced from the aristocracy to which he referred and interpreted through a modern liberal lens, we arrive at the conclusion that any self-chosen association is a boon to society. It is important to acknowledge the origins of the phrase because it implies that part of the significance of the platoon is precisely that it is not chosen.
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