Thursday, November 17, 2016

A automatização e o desemprego

[Sobre o assunto: o meu Um argumento a evitar na defesa do Rendimento Básico IncondicionalOs robots vão roubar o meu emprego... ou talvez não, de Miguel Carvalho; e Robôs a roubar empregos, por Pedro Romano]

Será que a automatização, os robots, os computadores, etc., criam desemprego?

Vamos imaginar que uma máquina permite a 1 trabalhador fazer o trabalho que antes era feito por 100; quais serão as consequências disso? Podem acontecer 3 coisas - a) 99 trabalhadores são despedidos; b) mantêm-se os mesmo trabalhadores, mas agora produzindo 100 vezes mais do que produziam antes; ou c) podem passar a trabalhar 1 hora por dia (em vez de 8) e terem 87 dias de férias (em vez de 22) por ano, e no final continuarem a produzir exatamente o que produziam antes. Creio que no mundo real, o que tem acontecido desde a revolução industrial tem sido sobretudo o efeito b), com algum c) à mistura (ou seja, o progresso tecnológico tem originado maior produção e mais tempo livre, não mais desemprego).

As teorias de que "não vai haver empregos para todos" baseiam-se no cenário a), mas porque é que há de ser o cenário a) a ocorrer e não um dos outros?



Vamos analisar possíveis motivos:

- O cenário b) pressupõe que a taxa de crescimento económico seja igual (ou maior) que a taxa de crescimento da produtividade do trabalho; mas terá que forçosamente que o ser, mesmo a médio/longo prazo? Diga-se que há uma certa circularidade nisso - a decisão de um empresário despedir 99 empregados ou, em vez disso, passar a produzir 100 vezes mais do que produzia depende das suas espetativas sobre se a economia vai crescer algo parecido com 100 vezes (gerando mercado para o aumento da produção); mas há algum mecanismo que faça a taxa de crescimento da economia ser igual à da produtividade? A longo prazo, suspeito que sim: vamos imaginar que o empresário está convencido que a economia não vai crescer - mesmo nesse cenário acho que ele não ia manter a produção igual e despedir 99 trabalhadores: afinal, agora os custos de produção são menores, logo ele pode praticar preços mais competitivos e, mesmo com o conjunto da economia estável, vender um pouco mais do que vendia (p.ex., ele pode duplicar a produção e despedir só 98 trabalhadores). Mas então temos uma situação em que, mesmo estando à espera que a economia se mantenha estável, a automatização faz os empresários aumentarem um bocadinho a produção, fazendo a economia crescer um bocadinho; mas se esse aumento inicial foi feito assumindo que a economia não ia crescer, ao perceberem que o conjunto da economia afinal está a crescer, vão aumentar ainda mais um pouco a produção, fazendo a economia crescer ainda mais um pouco e... num processo que tenderá a convergir para um crescimento económico similar ao aumento da produtividade.

O possível contra-argumento será que, durante toda essa transição, houve uma transferência brutal de rendimento dos trabalhadores para os empresários (p.ex., no tal cenário em que o empresário duplicou a produção, este teve o dobro das receitas e pelo menos 98% menos das despesas com salários; já os trabalhadores ficam a ganhar menos - sobretudo os 98 que foram despedidos, mas mesmo o salários dos outros provavelmente baixará devido à pressão da concorrência dos desempregados). Além dos efeitos distribuicionais, isso pode ter um problema mesmo para o crescimento da economia: se os empresários forem menos gastadores que os trabalhadores, isto pode originar uma redução da procura total e uma contração da economia (em vez do tal aumento que iria pouco a pouco convergir até a uma economia 100 vezes maior). Mas aí trata-se de um problema que pode ser resolvido recorrendo simplesmente a políticas de aumento da procura para garantir que a economia cresce ao ritmo da produtividade - ou seja, uma clássica situação de gestão macroeconómica de garantir que o produto cresce de acordo com o produto potencial, sem isso ter que implicar grandes mudanças de paradigma.

- O cenário b) pode ser ambientalmente desastroso, já que implica aumentos brutais da produção para manter o mesmo nível de emprego. Mas não necessariamente: vamos pensar em 3 coisas - a quantidade de trabalhadores necessária para produzir uma quantidade de produto final; a quantidade de matérias primas necessária para produzir esse produto; e a quantidade de poluição necessária para produzir esse produto (na verdade, a poluição até pode ser vista como um tipo especial de matéria-prima, em que um fábrica consome p.ex., combustíveis, peixe, metal... e ar puro). Se a tecnologia progredir de forma mais ou menos uniforme, e se essas quantidades diminuírem todas, não há problema nenhum (voltando ao exemplo inicial, a empresa continua a manter o mesmo número de trabalhadores, a consumir as mesmas matérias primas, a poluir o mesmo e passa a produzir 100 vezes mais). Mas e se não for uniforme? Vamos imaginar o que aconteceria se a produtividade do trabalho aumentar, mas a "produtividade" das matérias primas ficar na mesma - a procura de matérias primas iria aumentar, fazendo subir o seu preço: o resultado seria provavelmente uma sociedade em que os trabalhadores ficariam cada vez mais pobres, os proprietários de recursos naturais (p.ex, as elites governantes de países produtores de matérias-primas) cada vez mais ricos e os capitalistas assim-assim; fazendo o mesmo raciocínio para a poluição (que não havia progressos na tecnologia anti-poluição), assumindo que se pode poluir à vontade: teríamos o tal crescimento económico equivalente ao progresso tecnológico, sem aumento do desemprego, mas em compensação teriamos uma catástrofe ambiental (pegando no exemplo original, 100 vezes mais poluição); finalmente num sistema em que fosse preciso pagar algum imposto ou comprar direitos de emissão para poluir (e continuando a assumir que não houve progressos na tecnologia anti-poluição): aí teríamos há mesma a economia a crescer pouco e o tal aumento do desemprego, mas em compensação teríamos um aumento brutal do valor dos impostos sobre a poluição ou do preço dos direitos de emissão (já que as empresas até querem aumentar a produção e a poluição, mas como não se pode poluir mais, o resultado é fazer subir o "preço" da poluição) - se essa receita for para o Estado (ou para as comunidades locais, já agora, ou outra instituição parecida), até poderia ser usada para sustentar os desempregados (via um RBI, p.ex.), resolvendo-se assim tanto o problema do desemprego como o da poluição (note-se que se os direitos a poluir forem distribuídos, não por um leilão, mas por um processo político obscuro de os atribuir gratuitamente ou a um preço módico a algumas empresas, que depois os podem revender, a situação já é diferente: quem vai capturar as receitas do aumento do preço da poluição serão essas empresas, num processo semelhante ao das tais elites governantes dos países produtores de matérias-primas - confirmando, aliás, o que escrevi atrás sob a similaridade entre a poluição e as matérias primas).

- O cenário c), de redução do tempo de trabalho, quase que só é viável se não existir à partida uma tendência para o desemprego aumento; é que, se o desemprego até estiver alto, mais naturalmente o tempo de trabalho aumentará, já que os patrões podem usar levar os trabalhadores a aceitar trabalhar mais horas e/ou dias, com o argumento "se não quiserem, há muita gente ali fora que quer trabalhar". Assim, o cenário c) parece-me que só pode ocorrer, ou em conjugação com o b), ou então através de fatores exógenos ao processo económico convencional (pressão dos sindicatos, p.ex.).

- Outra situação que poderia tornar impossível o cenário b) seria se o progresso técnico fosse no sentido de, para produzir uma dada quantidade de produto, fosse cada vez necessário menos trabalho e cada vez mais máquinas (ou, numa linguagem mais técnica, que a produtividade aparente do trabalho estivesse a aumentar e a produtividade aparente do capital estivesse a diminuir). Numa situação dessas, acho que a economia tenderia, a prazo, para uma situação de desemprego em massa, desigualdade brutal (mas com taxas de juro e de lucro próximas do zero) e estagnação económica (ver aqui e sobretudo aqui para uma explicação de como isso ocorreria) - basicamente, a crise final do capitalismo à Marx. No entanto, penso que a substituição de trabalhadores por máquinas tem sido sobretudo no sentido de se usar melhores máquinas, e não tanto de mais máquinas (ao longo do tempo, o rácio entre o valor do capital investido e o valor da produção tem tido um movimento muito oscilante, mas sem uma tendência definida a crescer permanentemente, que era o que aconteceria se cada vez fosse necessárias mais máquinas para produzir uma dada quantidade de produto).

2 comments:

João Vasco said...

«Podem acontecer 3 coisas - a) 99 trabalhadores são despedidos; b) mantêm-se os mesmo trabalhadores, mas agora produzindo 100 vezes mais do que produziam antes; ou c) podem passar a trabalhar 1 hora por dia (em vez de 8) e terem 87 dias de férias (em vez de 22) por ano, e no final continuarem a produzir exatamente o que produziam antes. »

O problema da tua forma de ver o problema é que estás a vê-lo de forma estática e não dinâmica.
As hipóteses a) e b) são perfeitamente compatíveis, se olhares para o problema não como "qual a procura de trabalho em equilíbrio?" (caso sem que a) e b) são incompatíveis entre si), mas sim "qual a evolução temporal da procura de trabalho em equilíbrio?". Aí podes ter a) numa primeira fase, que após um ajuste acabará por dar em b).

E isto é muito relevante porque foi aquilo que se sucedeu durante as revoluções industriais. Hoje, vendo que as revoluções industriais não geraram desemprego permanente é muito fácil rirmo-nos dos luditas. Mas aquilo que motivou os luditas não foi um medo hipotético do desemprego, foi o desemprego bem real que existiu devido ao ajuste dos mercados ser tudo menos instantâneo.

«O cenário b) pressupõe que [...]» Tudo o que dizes nos dois parágrafos seguintes refere-se ao valor de equilíbrio. Esqueces-te completamente da dinâmica.

Tudo o que escreves a seguir parece-me bastante certeiro. O meu único problema com o teu texto é mesmo só te focares no equilíbrio. Mas se um choque for muito brutal o equilíbrio pode demorar várias décadas a ser atingido.


Pedro romao said...

O que eu acho:

1. Não me parece que o post esqueça a questão dinâmica do processo de ajustamento, como diz o JV. A questão do mecanismo concreto através do qual o modelo converge de uma situação inicial de pleno emprego e produtividade X para uma situação de produtividade 100X e pleno emprego, ou produtividade 100X e taxa de desemprego 99%, está lá.

2. Provavelmente este processo dependerá de mais variáveis do que aquelas que estão descritas. Por exemplo, o Miguel fala da propensão marginal ao gasto dos empresários e dos trabalhadores, que determina a forma como os ganhos de produtividade absorvidos inicialmente pela empresa se traduzem num aumento da procura. Eu diria que é preciso saber antes disso se são as empresas que de facto se apoderam inicialmente do ganho de produtividade. E isto, por sua vez, dependerá não apenas das expectativas de procura, mas também da causa original do aumento da produtividade (capital humano? Capital físico? TFP? Ideias apropriáveis, como patentes?, ou ideias tipo bem público puro?). Se povoarmos o modelo com todas estas subtilezas começamos a chegar a algum lado. Acho que até aqui estou a concordar com tudo o que o Miguel escreve, parece-me.

3. Dito isto, parece-me que os factos estilizados que conhecemos sugerem que os aumentos de produtividade revertem para os trabalhadores como aumentos de salários e/ou tempo de lazer, sem impactos no emprego. Estes dados são: a) uma taxa de desemprego aparentemente estacionária, sem tendência de subida no longo prazo; b) uma relação capital/trabalho relativamente estável no longo prazo, de 2/3 para 1/3. Há algumas subtilezas tanto em a) como em b) - fenómenos de histerese no primeiro caso, e a tese de Piketty no segundo. Mas nenhum dos dois parece correlacionado com a produtividade, por isso não aquece nem arrefece.

4) Isto não quer dizer que os factos estilizados sejam um bom guia para o futuro, claro. Se estes factos são resultado de até hoje ter havido sempre forças macroeconômicas a empurrar a economia para o pleno emprego, mas entretanto houve uma quebra estrutural que obriga a rever esta hipótese (estagnação secular?), então é bem possível que a tecnologia cause desemprego no longo prazo. Claro que neste caso não será apenas a robotização a fazê-lo, mas toda a tecnologia.

Ah, bom post! :)