Henrique Raposo escreve hoje no Expresso que
Trump não é conservador, republicano ou federalista, é um “confederado” sulista à imagem de Andrew Jackson, o fundador do Partido Democrata. (...)Tendo razão nalguns pontos, acho que Henrique Raposo acaba por fazer uma grande confusão (talvez porque em muitos aspetos a política norte-americana dos séculos XVIII e XIX acaba por ser algo contra-intuitiva para os olhos europeus).
As divisões esquerda-direita nos EUA não se fizeram na linha religiosa ou na linha capitalista. Nos EUA, todos defendem o cristianismo e o capitalismo. A divisão foi estabelecida noutras linhas, a saber: federalismo “versus” maior autonomia dos estados; abertura comercial e cosmopolita “versus” ruralismo, isto é, sociedade (gesellschaft) “versus” comunidade (gemeinschaft). Logo na fundação, a “direita” federalista de Hamilton e Adams contestou a “esquerda” de Jefferson.
Os federalistas queriam uma união federal com centralidade jurídica (Supremo Tribunal) e financeira (Banco central), e aspiravam a uma América industrial, comercial, marítima, aberta ao exterior, e ligada aos valores universais. É por isso que os federalistas já tinham uma atitude crítica em relação à escravatura. À luz do direito natural, Hamilton e os Adams consideravam a escravatura como uma ofensa moral inaceitável.
Do lado oposto, o esclavagista Jefferson recusava o federalismo forte, defendia uma mera confederação de estados sem autoridade central e federal, sem Supremo ou Banco central; o objetivo era a perpetuação daquele idílio rural parado num tempo de cavalheiros e senhoras. Claro que este idílio era suportado pela escravatura – um pormenor. Ao fundar o Partido Democrata, em 1828, Andrew Jackson corporizou este espírito sulista, que rebentaria na sucessão antiLincoln.
Sim, os Federalistas de Hamilton e John Adams (e os Whigs e Republicanos do século XIX, que continuaram a sua linha ideológica) eram os defensores da industrialização e do comércio, e eram também os mais críticos da escravatura (embora a atitude de Jefferson sobre a escravatura também fosse muito ambígua); mas não eram exatamente adeptos da "abertura ao exterior": Federalistas/Whigs/Republicanos eram o partido do protecionismo, e também eram os maiores céticos face à imigração - veja-se os Alien and Sedition Acts, do presidente John Adams, que tornava mais difícil aos estrangeiros naturalizarem-se e permitia ao presidente prender ou deportar estrangeiros que considerasse perigosos (medidas tomadas em parte por receio dos imigrantes franceses - numa altura de tensão entre os EUA e a França revolucionária - e em parte porque os imigrantes apoiavam maioritariamente o partido jeffersoniano, e portanto os federalistas tinham interesse em tornar mais díficil que esses adquirissem a cidadania).
Costuma comparar-se Trump com Jackson, mas eu eu diria que , se o estilo é Jackson, o conteúdo é Hamilton (o programa de Trump é largamente o de Hamilton - nacionalismo, protecionismo, obras públicas, um estado simultaneamente pró-business e intervencionista). Nos anos 30 dizia-se que Roosevelt combinava objetivos jeffersonianos (populismo económico) com meios hamiltonianos (intervencionismo federal) - poderemos talvez dizer que Trump combina um forma jacksoniana com um conteúdo hamiltoniano?
Quando, ao longo do século XIX, começam a surgir conflitos por causa da imigração católica, continua a ser o Partido Democrático o mais pró-imigrante, com a reputação de ser o partido dos irlandeses, enquanto é nos partidos opostos aos Democratas, como os Whigs e sobretudo os Know Nothings, que surge a oposição à imigração, inclusive por considerarem que a imigração irlandesa fazia de um plano secreto de uma religião oposta aos princípios da democracia liberal para conquistar os Estados Unidos. Grande parte dos Know Nothings, anti-imigração e anti-católicos, juntam-se depois ao Partido Republicano de Lincoln (penso que muitos defendendo o fim da escravatura exatamente porque achavam que os escravos tiravam o trabalho aos brancos protestantes e deveriam ser recambiados para a Libéria) - ou seja, essa história de, de um lado os racistas xenófobos, do outro a abertura ao exterior, não é assim tão simples: durante grande parte da história dos EUA, o que temos é de um lado o racismo anti-negro, e do outro a xenofobia anti-católica (antes de acusarem os Democratas de serem o partido do "acid, amnesty and abortion", no final do século XIX os Republicanos acusavam-nos de ser o partido do "rum, romanism and rebellion").
Na verdade, eu até suspeito que o único aspeto constante da política norte-americana desde a criação do país é atitude face à imigração: os Democratas (incluindo o "Partido Republicano" de Jefferson) e o outro partido trocaram muitas vezes de posição em vários assuntos (autonomia dos estados, comércio internacional, politica externa, etc, etc), mas na imigração os Democratas quase sempre foram o partido pró-imigrante e o outro partido o mais restricionista.
Já agora, há um acontecimento na história dos EUA que não costuma ser visto nestes termos, mas que talvez possa ser considerado como um prenúncio da tal aliança sulista-yankees tradicionais, unidos contra os "outros": a Lei Seca (que tinha muito de subtexto anti-imigração à mistura), cujos maiores apoiantes parecem ter sido os Democratas sulistas e os Republicanos.
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