Há quatro anos escrevi este post sobre o assunto, onde concluí (baseado no General Social Survey) que, pelo menos nos EUA, as pessoas que mais defendiam a liberdade de expressão eram as nascidas entre 1940 e 1979, e que a partir de 1980 há uma inversão.
Atendendo às recentes polémicas sobre a "cancel culture" e como de qualquer maneira o GSS já tem mais dois anos de inquéritos (o post anterior foi feito com dados até 2014, e já foram realizados mais dois GSS em 2016 e 2018), vou regressar ao assunto.
Para quem não sabe, o GSS é um inquérito com montes de perguntas que é feito, normalmente, de 2 em 2 anos nos EUA (desde 1972).
Provavelmente o mais relevante seria ir ver os dados para Portugal ou então para o conjunto do mundo "ocidental", provavelmente usando o World Values Survey, mas eu não sei mexer nisso.
Cinco das perguntas do GSS são sobre se o inquirido seria a favor de que se retirasse de uma biblioteca pública:
- um livro de um religioso muçulmano atacando os EUA (LIBMSLM)
- um livro defendendo a implantação de uma ditadura militar (LIBMIL)
- um livro a favor da homossexualidade (LIBHOMO)
- um livro contra a religião (LIBATH)
- um livro dizendo que os negros são inferiores (LIBRAC)
[para todas as perguntas, "1" significa "retirar"; "2" "não retirar"]
Pegando nessas perguntas, poderemos construir um índice agregado de oposição à liberdade de expressão (a que chamei "remover"), usando o valor mais baixo da resposta às cinco perguntas (por outras palavras, quem responde "1" a alguma tem "1", quem respondeu "2" a todas tem "2"). Poderá perguntar-se o porquê de usar o mínimo em vez de uma soma ou média - o motivo é que a melhor maneira de medir o respeito de alguém pela liberdade de expressão é ver a sua atitude face à opinião que ele mais detesta: afinal, alguém que queira remover os livros racistas e a favor da ditadura militar, mas deixar os livros islamitas anti-americanos, pró-homossexualidade e anti-religiosos provavelmente não é alguém que defende medianamente a liberdade de expressão, mas sim alguém com opiniões anti-imperialistas, anti-militaristas, anti-homofóbicas, anti-religiosas e anti-racistas e que quer remover da biblioteca os livros que vão contra as suas ideias (o mesmo para quem tenha um padrão oposto).
Vendo a evolução ao longo dos anos:
Frequency Distribution |
Cells contain:
-Row percent
-Weighted N | REMOVER |
1 | 2 | ROW TOTAL |
YEAR | 1972 | 36.4
561.3 | 63.6
981.2 | 100.0
1,542.5 |
1973 | 51.1
764.1 | 48.9
731.6 | 100.0
1,495.7 |
1974 | 50.1
735.0 | 49.9
733.1 | 100.0
1,468.1 |
1976 | 58.9
878.6 | 41.1
613.3 | 100.0
1,491.9 |
1977 | 60.1
915.0 | 39.9
608.3 | 100.0
1,523.3 |
1980 | 57.4
839.6 | 42.6
623.7 | 100.0
1,463.3 |
1982 | 56.1
1,032.5 | 43.9
808.1 | 100.0
1,840.6 |
1984 | 57.7
841.5 | 42.3
617.1 | 100.0
1,458.6 |
1985 | 56.7
869.7 | 43.3
664.2 | 100.0
1,533.9 |
1987 | 56.8
1,031.2 | 43.2
783.4 | 100.0
1,814.5 |
1988 | 58.2
566.6 | 41.8
406.2 | 100.0
972.9 |
1989 | 52.8
544.1 | 47.2
486.4 | 100.0
1,030.6 |
1990 | 52.1
466.3 | 47.9
428.5 | 100.0
894.8 |
1991 | 50.6
497.9 | 49.4
486.7 | 100.0
984.6 |
1993 | 47.3
495.0 | 52.7
552.0 | 100.0
1,047.0 |
1994 | 48.4
976.4 | 51.6
1,040.8 | 100.0
2,017.1 |
1996 | 50.5
959.3 | 49.5
938.7 | 100.0
1,897.9 |
1998 | 47.6
893.4 | 52.4
982.3 | 100.0
1,875.7 |
2000 | 50.5
933.8 | 49.5
914.5 | 100.0
1,848.2 |
2002 | 47.7
442.6 | 52.3
485.6 | 100.0
928.2 |
2004 | 48.4
422.2 | 51.6
450.1 | 100.0
872.2 |
2006 | 48.6
964.2 | 51.4
1,020.7 | 100.0
1,984.9 |
2008 | 59.8
807.8 | 40.2
544.0 | 100.0
1,351.8 |
2010 | 59.8
763.9 | 40.2
513.5 | 100.0
1,277.4 |
2012 | 60.3
785.0 | 39.7
517.4 | 100.0
1,302.5 |
2014 | 59.6
1,024.2 | 40.4
693.4 | 100.0
1,717.6 |
2016 | 59.6
1,130.5 | 40.4
764.9 | 100.0
1,895.5 |
2018 | 59.7
940.4 | 40.3
635.3 | 100.0
1,575.7 |
COL TOTAL | 53.7
22,081.8 | 46.3
19,024.8 | 100.0
41,106.7 |
Aparentemente, o período mais permissivo foi de 1993 a 2006 (bem, o ano mais permissivo foi 1972, mas isso era outro mundo, acabado de sair dos "sixties") em que a maioria dos inquiridos não queriam remover nenhum dos livros da biblioteca (nota - eu imagino que nem todas as perguntas tenham sido feitas em todos os anos; nomeadamente duvido muito que nos anos 70 alguém se tivesse lembrado da pergunta "LIBMSLM").
Vendo, não por ano em que o inquérito foi feito, mas por ano de nascimento do inquirido (agrupado por "
gerações"):
Frequency Distribution |
Cells contain:
-Row percent
-Weighted N | REMOVER |
1 | 2 | ROW TOTAL |
COHORT | 1: 1883-1927 | 68.5
5,019.3 | 31.5
2,305.4 | 100.0
7,324.7 |
2: 1928-1945 | 53.1
4,785.0 | 46.9
4,231.9 | 100.0
9,016.9 |
3: 1946-1964 | 46.7
6,983.9 | 53.3
7,963.5 | 100.0
14,947.4 |
4: 1965-1980 | 50.4
3,479.1 | 49.6
3,417.8 | 100.0
6,896.9 |
5: 1981-1996 | 61.9
1,660.1 | 38.1
1,023.5 | 100.0
2,683.6 |
6: 1997-2000 | 68.8
87.2 | 31.2
39.5 | 100.0
126.6 |
COL TOTAL | 53.7
22,014.5 | 46.3
18,981.4 | 100.0
40,996.0 |
Como provavelmente seria de esperar, a geração mais tolerante (a única em que a maioria dos inquiridos não quer remover livro nenhum) é a dos "boomers" (nascidos entre 1946 e 1964); a mais intolerante são mesmo os "zoomers" (nascidos a partir de 1997), com valores só comparáveis (e mesmo assim um bocadinho menos permissivos) dos nascidos antes de 1928.
Controlando pelas ideias políticas dos inquiridos:
Statistics for POLVIEWS = 1(Liberal) |
Cells contain:
-Row percent
-Weighted N | REMOVER |
1 | 2 | ROW TOTAL |
COHORT | 1: 1883-1927 | 65.2
730.4 | 34.8
390.3 | 100.0
1,120.7 |
2: 1928-1945 | 45.8
832.8 | 54.2
986.6 | 100.0
1,819.4 |
3: 1946-1964 | 37.6
1,544.5 | 62.4
2,563.0 | 100.0
4,107.5 |
4: 1965-1980 | 41.7
802.6 | 58.3
1,120.3 | 100.0
1,922.9 |
5: 1981-1996 | 53.8
454.6 | 46.2
390.7 | 100.0
845.3 |
6: 1997-2000 | 76.3
39.0 | 23.7
12.1 | 100.0
51.0 |
COL TOTAL | 44.6
4,403.8 | 55.4
5,463.0 | 100.0
9,866.8 |
Statistics for POLVIEWS = 2(Conservative) |
Cells contain:
-Row percent
-Weighted N | REMOVER |
1 | 2 | ROW TOTAL |
COHORT | 1: 1883-1927 | 70.5
1,471.0 | 29.5
614.9 | 100.0
2,085.9 |
2: 1928-1945 | 55.5
1,673.7 | 44.5
1,343.0 | 100.0
3,016.7 |
3: 1946-1964 | 51.3
2,343.1 | 48.7
2,221.2 | 100.0
4,564.3 |
4: 1965-1980 | 53.4
1,094.2 | 46.6
956.0 | 100.0
2,050.2 |
5: 1981-1996 | 62.2
416.2 | 37.8
253.2 | 100.0
669.4 |
6: 1997-2000 | 59.6
11.4 | 40.4
7.7 | 100.0
19.0 |
COL TOTAL | 56.5
7,009.5 | 43.5
5,396.0 | 100.0
12,405.5 |
E agora finalmente temos uma novidade face ao post de há 2 anos - entre os "zoomers", ao contrário do que acontece em TODAS as gerações anteriores, os auto-identificados "liberais" (esquerda) são mais hostis à liberdade de expressão do que os auto-identificados "conservadores" (direita). Aliás, a hostilidade entre à liberdade de expressão entre os "zoomers" parece estar a ser sobretudo impulsionada pelos "liberais", pois os "conservadores" até são ligeiramente mais liberais (sem aspas) do que os da geração anterior.
Uma observação - pode-se questionar o uso da questão "remover livro [X] da biblioteca pública" como medida de respeito pela liberdade de expressão; afinal, pode-se argumentar que liberdade de expressão significa apenas que o Estado não proíbe a divulgação de certas ideias, não que o Estado tenha que as divulgar através das bibliotecas públicas; mas atendendo a que
o que se tem falado até gira muito à volta da "censura" social e não apenas, ou sobretudo, da censura legal, creio que o querer "remover livro [X] da biblioteca pública" é uma boa medida de tolerância social.
Agora, algumas questões que se podem levantar:
Primeiro, qual o porquê dessa redução constante da tolerância social, a começar entre os nascidos a partir de 1965 (em que cada geração é mais intolerante que a anterior)? Tenho dificuldade em encontrar uma explicação - o grande salto parece ser a partir do inquérito de 2008; foi mais ou menos a partir dessa altura que o Twitter e o Facebook começaram a popularizar-se - será que o facto de o discurso público ter começado a transferir-se para plataformas centralizadas (muito mais centralizadas do que o mundo dos jornais, livrarias, bibliotecas municipais, websites ou blogues), onde é relativamente fácil calar os adversários (basta o dono da plataforma concordar com esse silenciamento) tenha contribuído para uma cultura de intolerância (por um efeito de "poder é querer"/"where there's a way there's a will" - sim, estou a inverter o dito tradicional: a minha suspeita é que o ser objetivamente possível fazer algo conduz frequentemente a uma racionalização, em que nos convencemos que não há mal nenhum em fazer esse algo)? No entanto acho que as redes sociais só se tornaram mesmo dominantes nos "anos 10", e de qualquer maneira em 2008 duvido que já pudessem ter influenciado a cultura (coisa que demora alguns anos) no sentido de já poderem afetar as respostas a inquéritos.
Segundo, o que é que aconteceu aos zoomers para entre estes os de esquerda serem mais intolerantes que os de direita (ao contrario do que parece acontecer em todas as gerações anteriores)? Aqui, é que estou mesmo convencido que é o efeito "poder é querer"/"where there's a way there's a will" - a esquerda atual (ou pelo menos o anti-racismo/feminismo/etc.; o anti-capitalismo é outra história) tem muito maior influência social do que costumava ter (nomeadamente a nível empresarial), portanto tem muito mais capacidade de exercer censura social (basicamente, ver
a 8ª tese sobre a "cancel culture" de Ross Douthat - "The right and the left both cancel; it’s just that today’s right is too weak to do it effectively.") - em consequência, tendem a racionalizar esse poder fático, convencendo-se que é aceitável bloquear a difusão de ideias "más".
Ou pode ser largamente um artificio das perguntas - talvez algumas das perguntas que poderiam captar a censura de direita (como se deve ser autorizado na biblioteca livros contra a religião ou a favor da homossexualidade) sejam tão demodé em 2016 ou 2018 que já ninguém responde "não" a elas (talvez livros fazendo a apologia da "fluidez de género" fossem uma melhor questão hoje em dia?). .
Ou simplesmente a amostra ainda é tão pequena (afinal, estamos a falar de pessoas nascidas durante 4 anos, de 1997 a 2000, enquanto as outras gerações englobam entre 15 e 20 anos) que pode ser apenas ruído estatístico.
A metodologia (não as conclusões, que ele não estava a analisar a mesma coisa que eu) foi largamente copiada
deste post de Razib Khan.
Como isto foi feito (convém ter um bocadinho de hábito com o interface de pesquisa do GSS para perceber esta explicação):
Create Variables - Compute
remover=min(LIBMSLM,LIBMIL,LIBHOMO,LIBATH,LIBRAC)
1º quadro:
Row - YEAR
Column - remover
2º quadro:
Row - COHORT
(r:1883-1927;1928-1945;1946-1964;1965-1980;1981-1996;1997-2000)
Column - remover
3º e 4º quadros:
Row - COHORT (r:1883-1927;1928-1945;1946-1964;1965-1980;1981-1996;1997-2000)
Column - remover
Control: POLVIEWS(r:1-3 "Liberal";5-7 "Conservative")
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