Entre os opositores dos bancos centrais e defensores do padrão-ouro (nomeadamente os mais "populistas"), por vezes surge a tese de que, emprestando os bancos "dinheiro fraudulento", ou "dinheiro criado do ar", os devedores não têm a obrigação de pagar as suas dívidas (não faço ideia se o Carlos Novais ou o George Reisman subscrevem essa posição).
Por exemplo, em 1967, numa cidade do Minnesota, Jerome Daly recusou-se a pagar a sua hipoteca com base nesse argumento, tendo tido o apoio de um tribunal local (e o de Murray Rothbard - pdf). Recentemente, também vi essa tese num blogue pró-padrão-ouro, argumentando que a crise dos empréstimos para habitação em dívida nos EUA devia ser resolvida cancelando as dívidas (não me lembro onde vi isso, mas acho que foi no FSK Guide to Reality, um blogue que até a mim me parece um bocado lunático).
Isso, dados os pressupostos de partida, faz sentido? Á primeira vista, acho que não.
Note-se que, se estivermos a falar de proudhonianos, que defendem um sistema em que qualquer pessoa (ou grupo de pessoas) pode criar uma espécie de "banco central" e começar a conceder empréstimos em dinheiro "alternativo" feito na impressora, essa posição faz sentido: os prouhdonianos acham que intervenção do Estado no mercado monetário faz os juros serem mais altos do que seriam em concorrência pura, logo tem lógica que defendem o não-pagamento dos empréstimos, ou, pelo menos, dos juros (afinal, eles consideram que os devedores estão a ser explorados pelo sistema, que faz com que os juros sejam artificialmente altos).
Mas os defensores do padrão-ouro com reservas integrais acusam os bancos centrais de promover a expansão monetária, o que em principio significa juros mais baixos do que seriam de outra maneira. Ora, se se acha que os juros são artificialmente baixos, parece-me difícil que se possa deduzir daí um direito a não pagar as dívidas aos bancos (afinal, os devedores também serão beneficiários do sistema...).
Consigo imaginar algumas formas de justificar essa posição, mas não me parecem muito sólidas:
a) Podemos considerar que quem beneficia com os juros baixos não são os devedores (o argumento que fiz ali atrás): se os emprestimos forem para comprar bens com uma oferta pouco elástica (será o caso da habitação? talvez, sobretudo em certas localizações onde não há espaço para se construir muito mais), o resultado de juros baixos é subir o preço dos bens em questão. Aí, até se pode dizer que, de certa forma, os bancos obrigam os clientes a se endividarem: ao concederem crédito barato ao Fernando (e a mais uma carrada de clientes), fazem com que os preços da habitação (por exemplo) subam, obrigando a Catarina a ter também que se endividar para comprar uma casa que, de outra forma, poderia ter pago com o seu dinheiro (ou, pelo menos, poderia ter-se endividado menos). Assim, como se pode argumentar que a expansão do crédito "obrigou" os devedores a pagaram mais pelas suas casas (e a endividarem-se mais), talvez seja logicamente coerente uma recusa de pagamento das dívidas.
b) Podemos também considerar que os clientes dos bancos são vitimas de fraude, já que contraem empréstimos na fase da expansão (com juros baixos) e depois, quando os juros regressam ao seu valor "natural" têm que pagar muito mais. Mas os clientes já sabem que os juros podem subir e baixar (e até têm a opção de contratarem um empréstimo com taxa fixa), logo não se pode falar em fraude.
c) Podemos considerar, não tanto que os devedores não têm a obrigação de pagar as dívidas, mas sim que os bancos não têm direito às hipotecas que executam. Ou seja, como os bancos actuais vivem de emprestar "dinheiro fraudulento", podem ser considerados organizações criminosas e o seu património considerado como "sem proprietário legitimo". Assim, quando um banco toma posse de uma casa por não pagamento da dívida, pode-se considerar que a casa em questão passa a ser "sem proprietário" e aberta a "homesteading". E, quem melhor para reclamar o "homesteading" do que quem já está na "posse útil" da casa, isto é, quem lá vive? Logo, à partida, isso implicaria que os bancos não pudessem desalojar devedores em incumprimento.
No entanto, no caso de casas alugadas, por essa lógica, quem teria direito à propriedade de casas cuja hipoteca fosse executada seria, não o devedor, mas o inquilino (afinal, ele é que está homestedeando* a casa); e, no caso de casas compradas para revenda e desocupadas, os habitantes do bairro da lata mais próximo poderiam ocupá-las e e proclamarem-se proprietários (e aí, pode entrar também em acção o "argumento a)" - se a expansão monetária faz subir o preço das casas, talvez seja responsável por algumas pessoas não conseguirem comprar casa própria, e estas terão ainda mais razão para reivindicar parte do património dos bancos)
d) Há também o argumento de que, num sistema em que a moeda é criada sobre a forma de crédito (como acontece no papel-moeda e não acontece no padrão-ouro com reservas integrais), haverá sempre menos moeda em circulação do que dívidas a ser pagas aos bancos (já que os bancos criam 1.000 euros de moeda mas depois cobram dívidas de 1.050 euros), logo as dívidas tenderão a crescer continuamente até os bancos controlarem toda a economia. Mas, de qualquer forma, esse argumento (além de que me aprece estar factualmente errado) é diferente do argumento "austríaco" típico (que é a de que os bancos centrais causam expansão da moeda, enquanto aqui o argumento é que causam escassez permanente de moeda em relação às dividas), pelo que não o vou aprofundar.
De novo, recordo que estes argumentos que estou a desenvolver não se baseiam nos meus pressupostos, mas sim nos pressupostos dos partidários do padrão-ouro
Não sei se o CN (que, recordo, não faço ideia do que pensa acerca da obrigação de pagar dívidas à banca) terá alguma coisa a dizer acerca destas possíveis linhas de argumentação que sugeri.
*não haverá um verbo melhor para isso?
Por exemplo, em 1967, numa cidade do Minnesota, Jerome Daly recusou-se a pagar a sua hipoteca com base nesse argumento, tendo tido o apoio de um tribunal local (e o de Murray Rothbard - pdf). Recentemente, também vi essa tese num blogue pró-padrão-ouro, argumentando que a crise dos empréstimos para habitação em dívida nos EUA devia ser resolvida cancelando as dívidas (não me lembro onde vi isso, mas acho que foi no FSK Guide to Reality, um blogue que até a mim me parece um bocado lunático).
Isso, dados os pressupostos de partida, faz sentido? Á primeira vista, acho que não.
Note-se que, se estivermos a falar de proudhonianos, que defendem um sistema em que qualquer pessoa (ou grupo de pessoas) pode criar uma espécie de "banco central" e começar a conceder empréstimos em dinheiro "alternativo" feito na impressora, essa posição faz sentido: os prouhdonianos acham que intervenção do Estado no mercado monetário faz os juros serem mais altos do que seriam em concorrência pura, logo tem lógica que defendem o não-pagamento dos empréstimos, ou, pelo menos, dos juros (afinal, eles consideram que os devedores estão a ser explorados pelo sistema, que faz com que os juros sejam artificialmente altos).
Mas os defensores do padrão-ouro com reservas integrais acusam os bancos centrais de promover a expansão monetária, o que em principio significa juros mais baixos do que seriam de outra maneira. Ora, se se acha que os juros são artificialmente baixos, parece-me difícil que se possa deduzir daí um direito a não pagar as dívidas aos bancos (afinal, os devedores também serão beneficiários do sistema...).
Consigo imaginar algumas formas de justificar essa posição, mas não me parecem muito sólidas:
a) Podemos considerar que quem beneficia com os juros baixos não são os devedores (o argumento que fiz ali atrás): se os emprestimos forem para comprar bens com uma oferta pouco elástica (será o caso da habitação? talvez, sobretudo em certas localizações onde não há espaço para se construir muito mais), o resultado de juros baixos é subir o preço dos bens em questão. Aí, até se pode dizer que, de certa forma, os bancos obrigam os clientes a se endividarem: ao concederem crédito barato ao Fernando (e a mais uma carrada de clientes), fazem com que os preços da habitação (por exemplo) subam, obrigando a Catarina a ter também que se endividar para comprar uma casa que, de outra forma, poderia ter pago com o seu dinheiro (ou, pelo menos, poderia ter-se endividado menos). Assim, como se pode argumentar que a expansão do crédito "obrigou" os devedores a pagaram mais pelas suas casas (e a endividarem-se mais), talvez seja logicamente coerente uma recusa de pagamento das dívidas.
b) Podemos também considerar que os clientes dos bancos são vitimas de fraude, já que contraem empréstimos na fase da expansão (com juros baixos) e depois, quando os juros regressam ao seu valor "natural" têm que pagar muito mais. Mas os clientes já sabem que os juros podem subir e baixar (e até têm a opção de contratarem um empréstimo com taxa fixa), logo não se pode falar em fraude.
c) Podemos considerar, não tanto que os devedores não têm a obrigação de pagar as dívidas, mas sim que os bancos não têm direito às hipotecas que executam. Ou seja, como os bancos actuais vivem de emprestar "dinheiro fraudulento", podem ser considerados organizações criminosas e o seu património considerado como "sem proprietário legitimo". Assim, quando um banco toma posse de uma casa por não pagamento da dívida, pode-se considerar que a casa em questão passa a ser "sem proprietário" e aberta a "homesteading". E, quem melhor para reclamar o "homesteading" do que quem já está na "posse útil" da casa, isto é, quem lá vive? Logo, à partida, isso implicaria que os bancos não pudessem desalojar devedores em incumprimento.
No entanto, no caso de casas alugadas, por essa lógica, quem teria direito à propriedade de casas cuja hipoteca fosse executada seria, não o devedor, mas o inquilino (afinal, ele é que está homestedeando* a casa); e, no caso de casas compradas para revenda e desocupadas, os habitantes do bairro da lata mais próximo poderiam ocupá-las e e proclamarem-se proprietários (e aí, pode entrar também em acção o "argumento a)" - se a expansão monetária faz subir o preço das casas, talvez seja responsável por algumas pessoas não conseguirem comprar casa própria, e estas terão ainda mais razão para reivindicar parte do património dos bancos)
d) Há também o argumento de que, num sistema em que a moeda é criada sobre a forma de crédito (como acontece no papel-moeda e não acontece no padrão-ouro com reservas integrais), haverá sempre menos moeda em circulação do que dívidas a ser pagas aos bancos (já que os bancos criam 1.000 euros de moeda mas depois cobram dívidas de 1.050 euros), logo as dívidas tenderão a crescer continuamente até os bancos controlarem toda a economia. Mas, de qualquer forma, esse argumento (além de que me aprece estar factualmente errado) é diferente do argumento "austríaco" típico (que é a de que os bancos centrais causam expansão da moeda, enquanto aqui o argumento é que causam escassez permanente de moeda em relação às dividas), pelo que não o vou aprofundar.
De novo, recordo que estes argumentos que estou a desenvolver não se baseiam nos meus pressupostos, mas sim nos pressupostos dos partidários do padrão-ouro
Não sei se o CN (que, recordo, não faço ideia do que pensa acerca da obrigação de pagar dívidas à banca) terá alguma coisa a dizer acerca destas possíveis linhas de argumentação que sugeri.
*não haverá um verbo melhor para isso?
1 comment:
Obrigado por seu comentário em meu blog, mas em certo ponto tens razão: seria necessária a leitura maior de outros artigos de Reinaldo Azevedo para entender memso tudo o que quis dizer com a passagem de "apresentação" da entrevista. Digo, se tiver interesse, tnte ler o seu livro "Contra o Consenso", que é um agrupado de textos que saiam na Revista Bravo e Primeira Leitura, de 1998 a 2005. São textos culturais, onde na primeira parte se dedica a analises sobre literatura. Não há ali nada de partidadrio ou político, mas cultural. Não li ainda seu blog, mas logo que tiver tempo o lerei.
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