Tuesday, January 15, 2008

Como as invasões bárbaras criaram a Europa

João César das Neves, argumentando que "a Igreja criou a Europa", desmente (com razão) o mito que a Idade Média foi a Idade das Trevas:

"Os avanços conseguidos na chamada Idade das Trevas são impressionantes, todos dirigidos a melhorar a vida concreta (op. cit. c. II): ferraduras, arado, óculos, aquacultura, afolhamento trienal, chaminé, relógio, carrinho de mão, etc. A notação musical, arquitectura gótica, tintas a óleo, soneto, universidade, além das bases da ciência, a separação Igreja-Estado e a liberdade dos escravos (c. III) são também criações medievais."

E até dá uma boa razão para a persistente ideia do "atraso" medieval:

"As razões desse engano são muito curiosas. Como explica Stark, todas as ditaduras exploram o povo para criar obras grandiosas à magnificência dos tiranos. Foi assim Roma e os reinos orientais. Destroçado o despotismo com a queda do império, a Cristandade gerou um surto de criatividade prática, pois as populações não temiam a pilhagem dos ditadores. Assim as realizações da Idade Média resultaram em melhorias da vida das aldeias, não em monumentos que os renascentistas poderiam admirar. Por isso esses intelectuais posteriores, nos seus gabinetes, desprezaram uma época sem mausoléus, enquanto louvavam as tiranias de que só conheciam a arquitectura e erudição."

Mas, nessa passagem, involuntariamente, deita por terra a sua tese que a Igreja foi a causa do progresso medieval - "Destroçado o despotismo com a queda do império, a Cristandade gerou um surto de criatividade prática, pois as populações não temiam a pilhagem dos ditadores"; ou seja, na mesma passagem em que JCN diz que "a Cristandade gerou um surto de criatividade prática", diz que foi "a queda do império" que criou as condições para esse progresso, pelo que podemos concluir que, afinal, foi esse o factor decisivo, e não "a Cristandade".

Um bom tira-teimas seria comparar o progresso na Europa medieval com o ocorrido, no mesmo período, no Império Bizantino (isto é, a parte da "Cristandade" onde uma espécie de Império Romano continuou a existir); se concluirmos que a Europa progrediu muito mais que Bizancio, a tese das "raízes cristãs" será refutada, em detrimento da tese "a queda do império libertou a Europa".

Convém também lembrar que muitos dos países mais avançados da Europa (como os nórdicos) só se converteram relativamente tarde ao cristianismo (note-se que não estou a dizer que o seu avanço resulta dessa conversão relativamente tardia; provavelmente a conversão tardia e o avanço desses países é que são ambas consequências de um poder real fraco).

Outros posts sobre o assunto:
Os "bárbaros" salvaram a Europa
Já que estou falando de "romanos" e "bárbaros"

6 comments:

Pedro Fontela said...

Não é por nada mas para os Bizantinos até à tomada de Bizâncio pelos venezianos a Europa era uma criação de porcos... não há comparação que lhes valha.

JOSÉ LUIZ FERREIRA said...

Nos séculos que se seguiram à queda do Império Romano os "progressos" que se verificaram no conjunto da Europa foram; diminuição da esperança de vida à nascença para pouco mais de metade; redução drástica da produção de cereais por hectare, acompanhada de outra redução na proporção de terras cultivadas; regressão no apuramento das estirpes no gado ovino, caprino, suíno, vacum e cavalar; diminuição drástica nos níveis de literacia; destruição de inúmeras bibliotecas e obras de arte; aumento em flecha das doenças infecciosas; declínio acentuado na qualidade da habitação, tanto para as classes sociais mais baixas, como também para as mais altas; atraso civilizacional de cerca de mil anos.
Se é outro período como este que João César das Neves pretende inaugurar, então trata-se de um homem verdadeiramente perigoso.

Miguel Madeira said...

"Nos séculos que se seguiram à queda do Império Romano os "progressos" que se verificaram no conjunto da Europa foram; diminuição da esperança de vida à nascença para pouco mais de metade; redução drástica da produção de cereais por hectare, acompanhada de outra redução na proporção de terras cultivadas; regressão no apuramento das estirpes no gado ovino, caprino, suíno, vacum e cavalar; diminuição drástica nos níveis de literacia; destruição de inúmeras bibliotecas e obras de arte; aumento em flecha das doenças infecciosas; declínio acentuado na qualidade da habitação, tanto para as classes sociais mais baixas, como também para as mais altas; atraso civilizacional de cerca de mil anos."

Sinceramente, não tenho tanta certeza disso. Que "progresso" houve durante o Império Romano? Ao que sei, progressos "práticos" não houve quase nenhuns (nomeadamente porque a escravatura tornava desnecessario o desenvolvimento de máquinas); e (ao contrário dos gregos, p.ex.) também não houve quase nada a nível da ciência teórica, da arte ou da filosofia.

A respeito de variáveis como esperança de vida, literacia, etc., duvido que haja dados credíveis (tanto respeitantes ao Império como à Idade Média) que permitem fazer uma comparação (fazendo uma busca no Google, obtenho, para a esperança de vida no Império Romano, valores que vão dos 22 aos 40 anos).

Anonymous said...

Acho que é hoje consensual que os reis medievais eram bem menos tirânicos e "totalitários" do que o poder político do estado moderno (parlamentos que tudo decidem e tudo controlam; governos que com retóricas contratualistas tudo dominam).

Bom post.

M.Madeira, hoje o seu "presidente", F.Louçã, conseguiu na AR um dos melhores discursos que já o vi fazer. Defendeu o referendo europeu, com uma argumentação quase liberal (citou hobbes, locke, jefferson, e outros). Pena não o ver usar essas referências noutros assuntos. (talvez fosse uma táctica, do estilo "vejam como eu sou um democrata e como, ao contrario do que julgam, defendo as pessoas dos abusos dos governantes", não?)

Anonymous said...

Ainda sobre o post, e para pôr um senão no que disse:

A a tirania e o "totalitarismo" medievais residiam mais numa base horizontal (censura, repúdio, controlo de costumes) do que numa lógica monopolista de estado. Resta saber se a tirania medieval e localista era mais repressiva do que a moderna e democrática. Tenho as minhas dúvidas ainda sobre isso.

Miguel Madeira said...

Uma discussão interessante sobre esta questão:

http://www.twcenter.net/forums/showthread.php?t=39045

Sendo uma clássica discussão-de-forum-de-internet, com comentadores com pseudónimos, etc., vale o que vale, mas alguns dos intervinientes aparentaram perceber alguma coisa do assunto.