A respeito das politicas de austeridade não terem, à primeira vista, aumentado significativamente a "pobreza", Hugo Mendes recorda que "que o risco de pobreza é medido a partir do rendimento mediano. Se o rendimento mediano cai, a linha de pobreza também cai. Pode acontecer que, se a classe média perder rendimentos ao mesmo ritmo que os mais pobres, o risco de pobreza não se altere, embora todos estejam a empobrecer: foi isso que aconteceu entre 2009 e 2011, uma vez que a linha de pobreza caiu de €5207 em 2009 para €5046 em 2010, e para €4994 em 2011".
Uma coisa que eu acho não ter grande jeito é a ideia de definir uma linha de "pobreza" em função do rendimento mediano (creio que a definição mais usual é considerar "pobreza relativa" como ter um rendimento abaixo de 60% do rendimento mediano). Eu percebo o raciocínio de adoptar uma definição "absoluta" de pobreza, em que se considera "pobre" quem não tenha rendimento necessário para se atingir um dado padrão de consumo considerado como "o mínimo aceitável"; também perceberia o raciocínio de se adoptar uma definição "relativa" de pobreza, em que se considerasse "pobre" quem tivesse um rendimento inferior a uma dada percentagem do rendimento médio da sociedade onde vivem, já que tal significaria que essas pessoas tinham acesso a uma proporção reduzida da riqueza total produzida nessa sociedade (alguns poderiam argumentar que tal não seria verdadeiramente uma medidade de "pobreza" mas sim de "desigualdade"; mas pronto, sempre mediria alguma coisa...). Já a "pobreza relativa" utilizada atualmente é que não mede verdadeiramente nada.
Para explicar melhor o que quero dizer - imaginemos uma sociedade com três pessoas, com os seguintes rendimentos:
Carolina - 1000 euros
Pedro - 500 euros
Lúcia - 200 euros
Nesta sociedade, uma pessoa (ou 33%) será "pobre", já que o rendimento mediano é de 500 euros e a Lúcia só ganha 200 (40% do rendimento mediano - menos que os 60%).
Agora, imaginemos que, por qualquer razão, a distribuição do rendimento passava a ser assim:
Carolina - 850 euros
Pedro - 500 euros
Lúcia - 350 euros
Pronto, a Lúcia saiu da pobreza, já que agora ganha 70% do rendimento mediano.
Mas imaginemos que a alteração na distribuição do rendimento tinha sido neste sentido:
Carolina - 1200 euros
Pedro - 300 euros
Lúcia - 200 euros
E, aqui, também acabou a "pobreza" - o rendimento mediano é agora de 300 euros, e com os seus 200 euros a Lúcia está agora a ganhar 66% da mediana.
Ou seja, duas alterações de sinal essencialmente contrário na distribuição dos rendimentos (uma no sentido de menos desigualdade, outra no sentido de mais desigualdade) levaram ambas ao "fim" da pobreza relativa.
[A esse respeito, ver estes dois posts de Chris Dillow: Inequality vs relative poverty e Relative poverty vs inequality]
Assim, podemos concluir que a "pobreza relativa" definida a partir da mediana, nem é útil para aferir realmente qual nível de vida dos mais desfavorecidos, nem para ter uma ideia da distribuição do rendimento entre os vários sectores da sociedade (já que, como vimos, padrões bastante distintos de distribuição do rendimento podem estar associadas à mesma taxa de "pobreza relativa"); mas então é útil para o quê?
Mas agora vamos a outro ponto onde queria chegar - não a definição de "pobreza" mas a de "classe média"; também muita gente (quanto tenta medir rigorosamente a "classe média" em vez de recorrer a definições impressionistas, estilo "tem mulher-a-dias") define "classe média" em função do rendimento mediano numa sociedade, mas não faria mais sentido definir a "classe média" em função do rendimento médio? Até porque não falamos em "classe mediana".
Antes de explicar o meu raciocinio, recomendo uma olhada pelos comentários a este post do Worthwhile Canadian Initiative, onde muitos leitores levantam o mesmo ponto que eu.
E qual é o meu ponto? É que na linguagem corrente a expressão "classe média" é frequentemente usada em contextos como "no país A não há classe média, só muito ricos e muito pobres" ou "a classe média está a desaparecer" (indicando uma distribuição do rendimento menos igualitária). Mas tal só faz sentido se definirmos "classe média" como "pessoas com rendimentos próximos da média" - se definirmos "classe média" como "pessoas com redimentos próximos da mediana", num país em que haja uma meia dúzia de ricos e uma multidão de pobres, os pobres serão a mediana e serão "reclassificados" como "classe média" (que assim será a maioria esmagadora da população). Da mesma forma, uma alteração dos padrões de rendimento no sentido de uma transferência de rendimentos do "meio" para os mais ricos (aquilo a que toda a gente chama "a classe média está a desaparecer") leva a uma descida do rendimento mediano e até poderia levar a um "aumento" da "classe média", já que agora algumas pessoas que antes eram consideradas "pobres" agora já estão suficientemente próximas do rendimento mediano para serem consideradas "classe média" (é o que acontece com a Lúcia no meu exemplo acima).
Outra forma de ver a coisa - compara-se uma sociedade estilo "pirâmide", com muitos em baixo, alguns no meio e poucos em cima (o padrão dominante entre pelo menos o estabelecimento dos primeiros Estados e talvez o século XIX ou mesmo o XX) com uma sociedade estilo "pêra", com alguns em baixo, muitos no meio e poucos e cima (o que talvez seja mais ou menos a sociedade dominante no dito "mundo ocidental"). Quando se fala em "sociedade de classes médias", o que toda a gente quer dizer é o segundo caso; mas, se definirmos "classe média" em função do rendimento mediano, até é bastante possível que as sociedades "em pirâmide" tenham mais "classe média" (já que a base da pirâmide é suficientemente ampla para englobar a maioria da população, logo a linha do rendimento mediano passa por aí e tornam-se todos "classe média").
Wednesday, February 12, 2014
Classe média
Publicada por Miguel Madeira em 12:11
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1 comment:
Muito bem observado :)
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