Tuesday, June 05, 2018

O que são exatamente governos "socialistas"?

Ainda nesta discussão veio à baila o texto de Murray Rothbard, "O Mito do Socialismo Democrático", onde o autor argumenta que é impossível um socialismo democrático :

Contrastemos o sistema do socialismo. O que é socialismo? É a posse ou controle pelo estado dos meios de produção na sociedade. Em resumo, é o controle total pelo aparato estatal sobre os meios de atingir virtualmente quaisquer objetivos que os indivíduos possam almejar na sociedade. Uma vez que o estado tem um monopólio sobre os instrumentos de violência e se distingue de todas as outras organizações ou instituições sociais pelo uso contínuo da violência para atingir seus objetivos, isso significa que o socialismo é um sistema de total violência coerciva sobre todos os cidadãos, a ser exercida pelos líderes e gestores do aparato estatal. (...)

O socialismo, em resumo, coloca as vidas, as fortunas e a honra sagrada de cada cidadão sob o total comando do estado e sua elite dominante. Em nome de maximizar a liberdade humana, em nome de eliminar o domínio de uma classe e a exploração do homem pelo homem, em nome mesmo da “extinção do estado”, o socialismo dá todo poder ao estado e, portanto, à sua classe dominante. Dessa forma, o socialismo cria um domínio de classe e um sistema de despotismo e exploração do homem pelo homem, a fim de colocar todos os outros sistemas nas sombras. Mas o que mais poderíamos esperar de um sistema que coloca todo o poder nas mãos do estado – o estado, o maior genocida, explorador, parasita, ladrão e escravizador em toda a história humana? (...)

Examinemos brevemente as razões para a nossa alegação que aquele que diz “Socialismo” deve inevitavelmente dizer também “Auschwitz” e “Gulag”. (...)

Em terceiro lugar, uma vez que o socialismo significa planejamento central, qualquer escopo possível para reformas ou limitações “democráticas” serão virtualmente inexistentes. Pois, se o plano é central, isso significa que a ninguém será permitido interferir com o plano uma vez que o estado e os seus “experts” tecnocratas tenham tomado suas decisões. Pois quem são o público ou mesmo a legislatura para ousar frustrar os planos estatais cuidadosamente escolhidos? O papel dos eleitores, quer seja direto ou num parlamento, será estritamente plebiscitário: eles apenas serão capazes de votar a favor, para ratificar o plano escolhido pelos planejadores centrais.

Em quarto lugar, outra quimera dos social-democratas é que o socialismo será capaz de permitir liberdades civis, liberdade de expressão, imprensa e assembléia, enquanto mantém um sistema de comando e obediência na esfera puramente econômica. Stalin assassinou milhões de camponeses soviéticos, não por que eles eram dissidentes políticos, mas por que eles resistiram serem expropriados e nacionalizados pelos planejadores centrais soviéticos.

Em quinto lugar, como corolário, liberdades civis não podem ser mantidas sob o socialismo pela simples razão que o governo, como o dono e gerente de todos os meios de produção, de todos os recursos, tem o poder de alocar esses recursos àquelas pessoas e usos a seu favor. Não pode haver genuína liberdade de expressão, imprensa ou assembléia se uma única agência coerciva, o governo, tem o poder de alocar sozinho todo o papel, salões de assembléia, etc. para os usos que ele prefere.

Considere, por exemplo, um Conselho de Planejamento Socialista, que, com toda a boa vontade do mundo, tem a tarefa de alocar os preciosos e escassos papéis, salões de assembléias, impressoras, e assim por diante. Poderia alguém imaginar tal Conselho transferindo algum desses recursos para um periódico anti-socialista? De fato, do ponto de vista deles, por que eles deveriam? Como resultado, recursos tenderão a ser alocados para aqueles indivíduos ou grupos que se posicionam publicamente a favor do regime.
Assim, os vícios usuais da burocracia: favoritismo, nepotismo e troca de favores de políticos irão se profelirar sob o socialismo sem o impedimento das imposições do sistema de lucros e perdas aos quais eles estão sujeitos no livre mercado.
Primeiro uma nota a respeito do caso especifico dos jornais - a posição típica dos socialistas que pretendem combinar a coletivização dos meios de produção com o pluralismo político (p.ex., Trotsky quando passou para a oposição) é que os meios da imprensa devem ser postos à disposição das várias facções proporcionalmente ao número dos seus apoiantes, ou algo parecido. Claro que se pode perguntar "e o que é que impede o tal Conselho de Planeamento Socialista de revogar essa regra e determinar que só os jornais X, Y e Z podem ser publicados?"; mas, por outro lado, o que é que também impede, mesmo num sistema de propriedade privada, o governo ou o parlamento de revogarem as leis sobre a liberdade de impressa e determinarem que só os jornais X, Y e Z podem ser publicados? Se a resposta for "a Constituição", isso também seria válido para o tal regime socialista; se a resposta for "a existência de uma sociedade civil forte e independente do Estado, que se mobilizaria contra uma decisão dessas", já é mais discutível se isso também se aplicaria num regime socialista (de qualquer maneira, mesmo nos regimes da Europa de Leste a comunicação social não era toda propriedade do Estado; uns pertenciam ao Estado, outros ao Partido Comunista, outros às "organizações de massas", etc. - pode-se dizer que ia dar tudo ao mesmo, mas por vezes esse pluralismo formal na propriedade dos jornais levava ocasionalmente a um pluralismo real, como a revista da União dos Escritores da Checoslováquia, que em 1967 funcionou como a voz dos críticos a Novotny).

Mas o problema fundamental do argumento de Rothbard é ele definir "socialismo" como um sistema em que o estado controla os meios de produção - definição que penso que nenhum auto-proclamado socialista subscreverá (mesmo os socialistas mais estatistas, como Lenine ou Trotsky, não consideravam o controlo pelo estado dos meios de produção como condição suficiente para o socialismo, apenas como necessária).

O que complica esta discussão toda é que não é muito claro o que "socialismo", ou mesmo "socialismo democrático" significa.

Se nos limitarmos ao chamado "socialismo democrático" (ou à "democracia socialista" - este termo tem implicações mais fortes e anti-capitalistas que o anterior), a mim parece-me que a expressão pode ter os seguintes significados:

1 - Uma economia em que o essencial das empresas são capitalistas, e em que depois há impostos altos e/ou progressivos usados para financiar apoios sociais e serviços públicos

2 - Uma economia em que a maior parte das empresas são privadas, mas em que os chamados setores "estratégicos" são do Estado (esses sectores classificados como "estratégicos" tendem a cair, ou naquilo que os economistas chamam "monopólios naturais" - distribuição de eletricidade, comboios, correios, etc. -, ou então nos recursos naturais - minas, petróleo).

3 - Uma economia quase totalmente coletivizada, à maneira dos antigos países de Leste, mas com democracia e pluralismo político.

3.1 - Uma economia coletivista à maneira da Jugoslávia, em que as empresas, ainda que nominalmente públicas, são geridas pelos próprios trabalhadores (ou por representantes eleitos por eles) e atuam num mercado concorrencial (ou pelo menos com uma intervenção do governo central na economia não substancialmente maior do que nos modelos 1 ou 2)

3.2 - Uma economia coletivista com planeamento centralizado

3.2.1 - Uma economia coletivista planificada à maneira da ex-URSS, em que os responsáveis pela gestão económica são nomeados hierarquicamente - p.ex., o ministro da industria nomeia o diretor do conglomerado industrial, o diretor do conglomerado nomeia os diretores de cada fábrica e o diretor da fábrica nomeia os encarregados de sector

3.2.2 - Uma economia coletivista planificada em que os responsáveis pela gestão económica são eleitos - p.ex., os trabalhadores de cada sector elegem o seu encarregado, os trabalhadores de cada fábrica elegem o diretor, um conselho de delegados de fábrica elege o diretor do conglomerado, e um conselho geral de delegados de sector dirige o conjunto da economia (até há algum tempo, as escolas públicas portugueses funcionavam mais ou menos assim) - atenção que "eleitos" não significa necessariamente "eleitos pelos trabalhadores", podem ser também pelos utentes, ou um orgão colegial com representantes dos vários "stakeholders" (o ponto fundamental é não serem nomeados por um órgão hierarquicamente superior)

O termo mais correto para o modelo 1 será "social-democracia", mas é frequentemente usado indistintamente com "socialismo democrático"; o modelo 2 é mais ou menos o que tende a ser defendido por partidos como estes (enquanto estes defendem mais o 1 - mas se olharem com atenção há muitos que aparecem nas duas páginas); o modelo 3.2.1 era o que nos anos 70 era defendido por partidos como o PSU francês, a nossa UEDS e penso que o Partido Socialista Popular espanhol; já o modelo 3.2.2 é o que, em diversas variantes, é ou era defendido pelo sector heterodoxo (anti-soviético) da esquerda radical - comunistas de conselhos, DeLeonistas,  parte dos trotskistas, parte dos "comunistas de esquerda", etc. (os anarquistas estarão algures entre o 3.2.2 e o 3.1, com Kropotkin mais perto do modelo 3.2.2 e Proudhon do modelo 3.1).

As fronteiras entre os vários modelos não são muito bem definidas na prática - se formos ver bem, um modelo 1 puro seria um sistema estilo vouchers/ADSE-para-todos/single-payer-health-system, em que escolas, hospitais, etc. fossem privados mas o Estado pagasse as despesas; no entanto, as escolas públicas estão generalizadas e os mesmo os hospitais públicos são corriqueiros, pelo que na prática podemos alargar o modelo 1 aos sistemas em que o Estado presta diretamente serviços e a um preço simbólico (só classificando como "2" quando o Estado possui empresas produtoras de bens que são vendidos no mercado).

A fronteira entre o modelo 3.1 e o 3.2.2 também pode ser confusa (e o facto dos defensores do 3.2.2 por vezes chamarem aos seu sistema "autogestão" - tal como os defensores do 3.1 - ajuda à confusão), mas é mais ou menos a mesma diferença entre o capitalismo liberal e o nacional-socialismo - no modelo 3.1 a direção eleita gere a empresa no contexto de um mercado relativamente livre, e no modelo 3.2.2 põe em prática o que está definido no plano (no caso português, as escolas básicas e secundárias são - ou eram, penso que agora as câmaras acabam por escolher os diretores por portas travessas - um caso típico de 3.2.2; já as universidades, que decidem que cursos dar, e penso - posso estar errado - também o valor das propinas, já se aproximam do modelo 3.1, embora continuando a ter muito de 3.2.2).

Agora, convém ter uma certa coerência na argumentação - não se pode primeiro dizer "os países nórdicos não contam como socialistas, porque são tipo 1" e depois dar António Costa como um exemplo de "socialista" e dizer que o socialismo conduziu sempre à opressão e pobreza (já que Costa também é fundamentalmente tipo 1).

Agora, regressando ao argumento de Rothbard de que o controlo estatal da economia dá aos dirigentes do Estado poder total sobre os indivíduos; isso fará sentido de acordo com as várias definições de socialismo?

De acordo com o 1 e o 3.1, penso que não - nesses sistemas, as decisões sobre a economia (nomeadamente o que produzir, como produzir, a que preços vender, etc.) continuam a ser essencialmente descentralizadas; no 2, os governantes (ou os seus representantes) já controlam efetivamente grande parte da economia concreta (em vez de se limitarem a transferir dinheiro de uns para outros, como no 1), mas a evidência empírica é que esse poder não é necessariamente suficiente para impedir a existência de liberdades civis e de democracia política (exemplos - o Reino Unido após a II Guerra Mundial; Portugal a partir de 1976 - ou para os mais puristas a partir de 1982; a França de Mitterrand, etc. e já agora a Índia, durante décadas um típico modelo 2, e também durante décadas o país em que vivia para aí metade  - ou talvez mesmo a maioria? - dos terráqueos que viviam em democracia).

Portanto a questão de se é possível um "socialismo democrático" resume-se aos modelos 3.2.

No modelo 3.2.2, creio que os governantes continuam a não ter o poder total, já que grande parte das decisões continuam a ser tomadas por órgãos descentralizados (se considerarmos as universidades públicas portuguesas como 3.2.2 - e não como 3.1 - o facto de as tendências dominantes no ISEG e na Faculdade de Economia da UNL serem diferentes será um indicativo de que esse género de propriedade estatal será compatível com o pluralismo político) - o que se poderá questionar é se o 3.2.2 é sequer um modelo estável, ou se uma situação em que há um plano central, mas depois as direções das empresas (que supostamente vão implementar esse plano) não são nomeadas por quem faz o plano terá tais tendências centrífugas que, ou se desagrega, tornando-se na prática 3.1, ou se centraliza, passando os dirigentes sectoriais a serem nomeados centralmente (e assim reverte-se ao 3.2.1).

Quanto ao modelo 3.2.1, à primeira vista parece exatamente o modelo conducente à implantação de um regime totalitário; o problema é - se nos limitarmos aos que querem conciliar o socialismo com a democracia pluralista e as liberdades civis, alguém defende o 3.2.1? Sobretudo parece-me que não há ninguém que diga "Não queremos um regime totalitário como o da antiga URSS, mas queremos uma economia estatizada com dirigentes nomeados de cima para baixo"; entre os que dizem que os regimes de Leste não eram "o verdadeiro socialismo", passa-se quase diretamente dos defensores da "economia mista" para os defensores dos "conselhos operários" ou algo do género. Bem, alguns terão existido, já que as páginas 31 a 35 de "Os Conselhos Operários" de Anton Pannekoek[pdf] são dedicados exatamente a criticar os que defendem a combinação de economia estatizada, gestão hierárquica da produção e democracia parlamentar, mas nos últimos 70 anos duvido que tenha aparecido muita gente a defender essa posição.

Uma questão final que pode ser levantada - se considerássemos que a Venezuela chavista/madurista é ou foi em certa altura uma democracia (estou certo que agora não é, mas não estou seguro em que momento deixou exatamente de ser), que variante de "socialismo democrático" seria? Eu diria que inicialmente "1", e a partir de certa altura "2" (ver este post e comentários) - no entanto, mesmo na fase "2", o que Chavéz nacionalizou foi em larga medida o que já tinha sido nacionalizado nos anos 60 e 70 e privatizado nos 90 (curiosamente, muitas das nacionalizações dos anos 60/70 como das privatização dos 90 foram feitas pelo aqui-adversário de Chavéz, Carlos Andrés Peréz); mais do que as nacionalizações, eu diria que a grande particularidade do "modelo venezuelano" foi, a partir de certa altura, uma politca generalizada de controlo de preços, mesmo no setor privado (o que, admito, não é muito fácil de encaixar nesta tipologia que tentei definir - tanto o "1" como o "2" podem ter preços livres ou controlados no sector privado).

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