Thursday, January 18, 2007

Proudhon, liberal?

Rui Albuquerque escreve que Proudhon estaria muito perto do liberalismo clássico. Primeiro, pensei em escrever um post refutando essa ideia (diga-se desde já que não percebo muito de Proudhon em primeira mão - o que conheço é mais através de Ben Tucker).

No entanto, se calhar Rui A. tem razão. Se adoptarmos alguns pressupostos (com os quais eu suponho que nenhum liberal vai concordar...) poderemos facilmente considerar Proudhon como uma "espécie de liberal". Aliás, diga-se que Kevin Carson (provavelmente o mais destacado proudhoniano da actualidade) considera-se um "libertarian" e "auto-coloca-se" no mesmo grupo que "libertarians" (i.e., liberais clássicos) como Thomas Knapp, Brad Spangler, Roderick Long, Sheldon Richman, etc.

Não se deduza disto que eu concorde que Proudhon esteja mais perto do liberalismo do que do socialismo, como escreve Rui A. O que acho é que Proudhon pode ser considerado um "socialista-liberal" (aliás, penso que ele mesmo escreveu que o anarquismo era a sintese entre o socialismo e o liberalismo) - afinal, se Burke e Tocqueville podem ser conservadores-liberais, porque não poderá também alguem ser socialista-liberal? Uma pessoa que advogue "a propriedade dos meios de produção pelos trabalhadores associados" (a forma como os socialistas, tradicionalmente, se auto-definiam) e que ache que o "mercado livre" é a melhor maneira de atingir esse objectivo (no fundo, era mais ou menos essa a posição dos anarquistas individualistas) preenche os requisitos mínimos para ser aceite tanto no socialismo como no liberalismo.

Mas será que podemos considerar que Proudhon defendia o "mercado livre"? Efectivamente, ele defendia uma economia de mercado e sem regulamentação estatal (na verdade, sem Estado), mas não aceitava concentrações de propriedade maiores que a que o individuo podesse pessoalmente utilizar - p.ex, não reconhecia a legitimidade de alguem possuir mais terras das que cultivava pessoalmente (ver O que é a propriedade?). Isso não será uma restrição ao "mercado livre"? Talvez sim e... talvez não!

Talvez não, porquê? Por duas razões: em primeiro lugar, eu não sei exactamente como Proudhon pretendia acabar com a tal concentração de propriedade (por culpa exclusivamente minha - a "Solução do Problema Social" está on-line e em inglês, é só eu ler se tiver energia para isso); se ele advogasse que os não-proprietários invadissem as propriedades dos grandes proprietários, isso, em principio, seria uma violação do "mercado livre"; se pretendesse acabar com a concentração da propriedade sobretudo através de mecanismos como cooperativas de crédito, que tornassem possível a toda a gente (se assim quisessem) tornar-se proprietário dos seus "instrumentos de trabalho", penso que não há nada aí de anti-liberal.

Vamos então a uma parte mais polémica - será que mesmo que Proudhon advogasse a ocupação de propriedades pelos não-proprietários (como, implicitamente, fazia o seu discipulo Tucker), isso não poderia ser consentaneo com o "mercado livre"? Para começar, tenho que confessar a minha ignorancia - não sei se a oposição de Proudhon à concentração de propriedade aplicava-se a todo o tipo de propriedade ou sobretudo à propriedade do solo (ou, no geral, à de recursos naturais) - modernamente, muitos proudhonianos fazem uma distinção entre estes dois tipos de propriedade (e isso pode afectar a resposta a dar à questão).

Agora, vamos imaginar a seguinte situação - imaginemos que eu adquiria (porque comprava, herdava, era-me dada, não interessa como) um pedaço de terra e no "contrato de aquisição" vinha um conjunto de cláusulas estipulando que eu só poderia ser proprietário desse terreno na condição de:

a) não possuir mais que "X" hectares de terra;

b) em caso de violação do ponto anterior, ao fim de 6 meses, qualquer pessoa poderia tomar posse da minha propriedade, desde que aceitasse respeitar estas cláusulas;

c) eu só poderia transferir a propriedade para alguém que também aceitasse estas cláusulas;

Não sei o que os liberais pensam, mas creio que estas regras, em si, não seriam contraditórias com o "mercado livre"; afinal, na sua essencia não são diferentes de, digamos, comprar um terreno sabendo que tenho que dar direitos de passagem ao vizinho do lado (são diferentes no conteúdo, mas não do principio de haverem condições anexadas à propriedade de um terreno). Aliás, se pesquisarmos os sistemas fundiários de várias sociedades tribais, por vezes encontramos regras parecidas, em que o individuo tem o usufruto do "seu" terreno, mas se morrer sem filhos ou deixar a aldeia, a terra regressa ao dominio da aldeia.

Claro que se pode argumentar que, neste exemplo se trata de uma regra aceite "voluntariamente", não de uma norma universalmente "imposta", mas aí levanta-se a questão da "aquisição original" da propriedade: como é que se adquire, pela primeira vez, a propriedade de algo que não tem dono e que direitos efectivos vêm incorporados nesse "direito de propriedade"?
  • Um "proudhoniano" dirá que a aquisição original de um terreno obtem-se com a "ocupação e uso" e perde-se se o proprietário deixar de "ocupar e usar" pessoalmente o terreno;
  • um "lockeano" dirá que propriedade obtem-se "misturando o trabalho" (no fundo, a mesma coisa que a "ocupação e uso"), desde que deixe o suficiente para os outros, e a partir daí, o dono pode fazer o que quiser com a propriedade adquirida;
  • um "rothbardiano" dirá o mesmo que o "lockeano", mas sem a restrição de "deixar o suficente para os outros";
  • outras correntes de pensamento (georgistas, adeptos da Escola de Chicago, etc.) lá têm as suas próprias teses a esses respeito;

[Já agora, este texto, em PDF, do rothbardiano Roderick Long poderá ter algum interesse para ver as diferenças entre as várias teses da "aquisição original"]

Ora, mas esta conversa toda interessa para quê? Para determinar o que é "mercado livre" ou não. Se aceitarmos a tese rothbardiana, uma invasão de terras será uma violação do "mercado livre" se o proprietário tiver obtido essas terras, directa ou indirectamente, do ocupante original (já que os direitos de propriedade estarão a ser violados). Pelo contrário, se aceitarmos a tese proudhoniana, um proprietário absentista exigir uma renda para alguém poder usar o seu terreno e recorrer à violência (estatal ou privada) para assegurar esse "direito" é que será uma violação do "mercado livre" (já que, segundo o conceito proudhoniano de propriedade, o titulo do suposto proprietário é ilegitimo).

Assim, de acordo com o sua visão da "aquisição original", os proudhonianos até podem ser classificados como os verdadeiros defensores do "mercado livre" e os georgistas, lockeanos, rothbardianos, etc. serão uma carrada de perigos intervencionistas, dispostos a recorrer à violência contra os "proprietários legitimos" (e poderiamos fazer um raciocinio idêntico para qualquer uma das outras escolas de pensamento).

Mas, por outro lado, se para definir se Proudhom era socialista eu estou a usar a definição socialista de socialismo ("controle dos meiso de produção pelos trabalhadores associados"), para definir se ele era liberal também deveria usar a definição liberal de liberalismo - e penso que quase nenhum liberal aceita a visão proudhoniana da propriedade como uma norma aceitável para a "aquisição original" (como alguns liberais que às vezes até vêem aqui, não sei o que eles terão a dizer).

9 comments:

Anonymous said...

a questão não é só de liberal ou socialista, mas tambem do que se entende por ambos os conceitos.
portanto é tambem uma questão de conceitos.

os marxistas e os liberais aceitam a visão lockeana da propriedade.

desta forma proudhon não é nem liberal nem socialista, pois estes conceitos em si são pobres, trata-se de uma espécie de terceira corrente, pois tem uma definição propria de propriedade.
uma corrente que advem do socialismo utopico, sendo assim socialista+(preencha aqui faz favor).

mas podem-lhe chamar o que quiserem, socialista utopico (ainda não morreu), socialista libertario, socialista liberal (algo que me faz confusão), enfim...

como a noção de propriedade proudhoniana inclui o que se podem considerar à primeira vista restrições, isso torna-o muito pouco apelativo para os liberais da praça.

rui a. said...

Parabéns pelo «post», caro Miguel. Brevemente, tenciono regressar a Proudhon.

André Azevedo Alves said...

Creio que é Roderick Long.

Miguel Madeira said...

Pois é, obrigado.

CN said...

"Um "proudhoniano" dirá que a aquisição original de um terreno obtem-se com a "ocupação e uso" e perde-se se o proprietário deixar de "ocupar e usar" pessoalmente o terreno; "

Deixar de ser proprietário por abandono de uso e ocupação é consistente com Rothbard.

A questão do "deixar o suficiente para os outros"
e mais um apontamento.

A capacidade real de "ocupar e usar" propriedade a mais não me parece que exista.

CN said...

"Se aceitarmos a tese rothbardiana, uma invasão de terras será uma violação do "mercado livre""

Rothbard fala sobre a questão do "monopolio da terra", em termos pocuo usuais num certo liberalismo, que nao se dispoem a analisar o problema.

O "monopolio da terra" é um problema real por exemplo na America do Sul, onde, a aquisição de propriedade foi de facto um processo escuro, onde foram despojados donos originais (tribos, etc) e onde esse processo teve até o incentivo por parte dos Estados na altura.

Ou seja, alguns dos problemas "sociais", podem ter origem naquilo que seriam reclamações de pessoas que se deparam com situações de grandes propriedades adquiridas anteriormente nao por ocupação e uso, mas por ocupação do que seriam as terras de nativos /etc.

Assim, Rothbard, que nao costuma deixar falhas teorias-praticas no seu pensamento, reconhece que esse é um problema, enquatno algum neo-liberalismo (digamos assim), passa por cima dos problemas historicos.

Miguel Madeira said...

"Deixar de ser proprietário por abandono de uso e ocupação é consistente com Rothbard."

O ponto está no "pessoalmente" - um prouhdoniano conta "alugar" ou "contratar empregados" como "abandono".

Miguel Madeira said...

A respeito das invasões de terras o que eu escrevi foi "se aceitarmos a tese rothbardiana, uma invasão de terras será uma violação do "mercado livre" se o proprietário tiver obtido essas terras, directa ou indirectamente, do ocupante original"

Agora, também é verdade que na prática há menos conflito entre Proudhon e Rothbard do que na teoria, já que, efectivamente, a maior parte das situações reais de conflitos entre proprietários e "sem-terra" tem origem em atribuições "estatistas" de terras (mesmo quando os actuais proprietários não as receberem por concessão estatal, na origem da cadeia de transferências de propriedade costuma estar uma doação/venda desse genero)

Miguel Madeira said...

Aliás, reconheço que talvez seja pouco provável que, num "mercado livre" um sistema de "minifúndio" se transforme naturalmente num de "latifúndio" - afinal, quando predomina a pequena propriedade, até é frequente aparecerem vozes a pedir a intervenção do Estado para "racionalizar a estrutura fundiária" (expressão que normalmente significa aumentar a diminsão das explorações), através de emparcelamentos, leis de indivisibilidade, etc. o que indicia que, nesses casos, o "mercado", sozinho, talvez até favoreça mais a "desconcentração excessiva" da propriedade fundiária do que a "concentração excessiva" (já no século XIX, Kautsky dizia que a "concentração capitalista" não parecia estar a ocorrer na agricultura).

[Quando estava a procurar informação sobre "emparcelamentos", encontrei esta noticia - não faço ideia se isso tem alguma credibilidade, mas que dá que pensar sobre o tema da origem real da concentração da propriedade, dá]