Esta noticia lembrou-me de um assunto sobre o qual há muito que pensava escrever:
Qual é a possibilidade de uma criança tranquila, que não dá problemas a ninguêm, etc., ser diagnosticada por um psicólogo como tendo "hiperactividade"? Dir-me-ão: "Impossível! A uma criança com esse perfil nunca seria sequer posta a hipótese de ter hiperactividade - outras coisas talvez, mas hiperactividade não".
Mas é esse o meu ponto - todas as crianças que vão a um psiquiatra para ver se são "hiperactivas", em principio, já têm um temperamento compatível com o diagnóstico de "hiperactividade". Logo, se um psicólogo errar e diagnosticar como "hiperactiva" uma criança que não o seja, como se reconhecerá esse erro? Afinal, todas essas crianças, à partida, terão um temperamento, pelo menos, próximo da "hiperactividade", logo será quase impossível distinguir as que foram correctamente diagnosticadas e as que foram erradamente consideradas como tal.
Ou seja, será que o diagnóstico de "hiperactividade" cumpre o critério da "falseabilidade", isto é, caso esteja errado há maneira de se provar que está errado? A principal maneira seria o diagnosticado ter um comportamento incompatível com ser "hiperactivo" mas, se fosse esse o caso, a possibilidade de ser "hiperactivo" nem sequer teria sido levantada.
Efectivamente, vejo uma situação em que o diagnóstico podia ser provado falso: uma criança ser considerada "hiperactiva", os pais ignorarem o diagnóstico e continuarem a tratá-la como tratavam antes e, anos depois, ela passar a ter um comportamento "normal"; aí podia-se concluir que não era "hiperactividade" nenhuma, tinha sido apenas uma "fase da vida" (mas não deve haver muitos casos desses, já que o natural é que os país - mesmo que estejam na dúvida sobre a correcção do diagnóstico - lhe dêem algum tratamento, seja ele calmantes ou arranjarem-lhe actividade extra-curriculares para gastar energias); no caso dos pais submeterem a criança a alguma forma de tratamento, uma melhoria não prova nada, já que tanto pode significar que o psicólogo se enganou no diagnóstico como como significar que o psicólogo "fez um milagre".
Além disso, imagino que seja mais fácil descobrir um "falso negativo" do que um "falso positivo" - se o comportamento de uma criança que foi diagnosticada como "não-hiperactiva" piorar, haverá uma tendência para rever o diagnóstico; pelo contrário, se uma diagnosticada como "hiperactiva" melhorar, há mais um monte de hipóteses além de "erro de diagnóstico" - pode significar que "o tratamento está a fazer bem", que "apesar de tudo, com a idade está a ganhar algum juízo", que "nestes últimos tempos, ele tem estado mais calmo", etc.
Desta forma, talvez seja mais fácil descobrir um psicólogo que se "engana por defeito" do que um que se "engana por excesso" (hum, se esta hipótese for verdadeira, que significará em termos de incentivos?).
[Um aparte: em tempos remotos conheci uma "psicóloga da educação" - ou coisa parecida - que dizia que "os psicólogos são todos uns aldrabões"; mas, na altura em que a conheci, ela andava à procura de emprego e era rejeitada em todos os sítios a que ia, o que poderia gerar algum ressentimento quanto aos colegas que efectivamente tinham emprego]
Estou a dar o exemplo da "hiperactividade", mas penso que isto se aplicará a quase todas as condições neurológicas e/ou psicológicas.
Uma doença infecto-contagiosa , p.ex., corresponde a uma realidade "objectiva" - uma pessoa, ou está infectada por um dado micro-organismo ou não está; no caso de um cancro, a mesma coisa - ou um pessoa tem um tumor a desenvolver-se ou não tem. Já grande parte dos problemas neurológicos ou psicológicos penso que não é assim tão simples - afinal, cada pessoa tem uma personalidade (e uma constituição neurológica) única, e considera-se que alguém tem uma "doença mental" ou um "problema neurológico" quando a sua condição, por um lado, é demasiado diferente do normal, e, por outro, suficientemente parecida com a de algumas outras pessoas para se poder aplicar o mesmo rótulo a todas.
Ora, enquanto, p.ex., a varicela é uma coisa "digital" (ou se está infectado pelo vírus ou não se está), uma "perturbação mental" é uma coisa mais "analógica" - muitas vezes há um continuum entre a "normalidade" e a "doença", e determinar se alguém tem ou não tem uma dada perturbação acaba por depender de uma convenção arbitrária sobre a que partir de que momento se considera que se tem essa perturbação (note-se que isto não se aplica só à questão de determinar se o individuo tem alguma perturbação; aplica-se também à questão de determinar que perturbação o individuo tem exactamente). Claro que se uma pessoa houve vozes ou está convencida que é um vampiro com 500 anos, é evidente que tem algum problema, mas provavelmente há uma área cinzenta em que não é fácil (ou talvez seja impossível) determinar se alguém tem algum problema (e, em caso afirmativo, qual).
Qual é a possibilidade de uma criança tranquila, que não dá problemas a ninguêm, etc., ser diagnosticada por um psicólogo como tendo "hiperactividade"? Dir-me-ão: "Impossível! A uma criança com esse perfil nunca seria sequer posta a hipótese de ter hiperactividade - outras coisas talvez, mas hiperactividade não".
Mas é esse o meu ponto - todas as crianças que vão a um psiquiatra para ver se são "hiperactivas", em principio, já têm um temperamento compatível com o diagnóstico de "hiperactividade". Logo, se um psicólogo errar e diagnosticar como "hiperactiva" uma criança que não o seja, como se reconhecerá esse erro? Afinal, todas essas crianças, à partida, terão um temperamento, pelo menos, próximo da "hiperactividade", logo será quase impossível distinguir as que foram correctamente diagnosticadas e as que foram erradamente consideradas como tal.
Ou seja, será que o diagnóstico de "hiperactividade" cumpre o critério da "falseabilidade", isto é, caso esteja errado há maneira de se provar que está errado? A principal maneira seria o diagnosticado ter um comportamento incompatível com ser "hiperactivo" mas, se fosse esse o caso, a possibilidade de ser "hiperactivo" nem sequer teria sido levantada.
Efectivamente, vejo uma situação em que o diagnóstico podia ser provado falso: uma criança ser considerada "hiperactiva", os pais ignorarem o diagnóstico e continuarem a tratá-la como tratavam antes e, anos depois, ela passar a ter um comportamento "normal"; aí podia-se concluir que não era "hiperactividade" nenhuma, tinha sido apenas uma "fase da vida" (mas não deve haver muitos casos desses, já que o natural é que os país - mesmo que estejam na dúvida sobre a correcção do diagnóstico - lhe dêem algum tratamento, seja ele calmantes ou arranjarem-lhe actividade extra-curriculares para gastar energias); no caso dos pais submeterem a criança a alguma forma de tratamento, uma melhoria não prova nada, já que tanto pode significar que o psicólogo se enganou no diagnóstico como como significar que o psicólogo "fez um milagre".
Além disso, imagino que seja mais fácil descobrir um "falso negativo" do que um "falso positivo" - se o comportamento de uma criança que foi diagnosticada como "não-hiperactiva" piorar, haverá uma tendência para rever o diagnóstico; pelo contrário, se uma diagnosticada como "hiperactiva" melhorar, há mais um monte de hipóteses além de "erro de diagnóstico" - pode significar que "o tratamento está a fazer bem", que "apesar de tudo, com a idade está a ganhar algum juízo", que "nestes últimos tempos, ele tem estado mais calmo", etc.
Desta forma, talvez seja mais fácil descobrir um psicólogo que se "engana por defeito" do que um que se "engana por excesso" (hum, se esta hipótese for verdadeira, que significará em termos de incentivos?).
[Um aparte: em tempos remotos conheci uma "psicóloga da educação" - ou coisa parecida - que dizia que "os psicólogos são todos uns aldrabões"; mas, na altura em que a conheci, ela andava à procura de emprego e era rejeitada em todos os sítios a que ia, o que poderia gerar algum ressentimento quanto aos colegas que efectivamente tinham emprego]
Estou a dar o exemplo da "hiperactividade", mas penso que isto se aplicará a quase todas as condições neurológicas e/ou psicológicas.
Uma doença infecto-contagiosa , p.ex., corresponde a uma realidade "objectiva" - uma pessoa, ou está infectada por um dado micro-organismo ou não está; no caso de um cancro, a mesma coisa - ou um pessoa tem um tumor a desenvolver-se ou não tem. Já grande parte dos problemas neurológicos ou psicológicos penso que não é assim tão simples - afinal, cada pessoa tem uma personalidade (e uma constituição neurológica) única, e considera-se que alguém tem uma "doença mental" ou um "problema neurológico" quando a sua condição, por um lado, é demasiado diferente do normal, e, por outro, suficientemente parecida com a de algumas outras pessoas para se poder aplicar o mesmo rótulo a todas.
Ora, enquanto, p.ex., a varicela é uma coisa "digital" (ou se está infectado pelo vírus ou não se está), uma "perturbação mental" é uma coisa mais "analógica" - muitas vezes há um continuum entre a "normalidade" e a "doença", e determinar se alguém tem ou não tem uma dada perturbação acaba por depender de uma convenção arbitrária sobre a que partir de que momento se considera que se tem essa perturbação (note-se que isto não se aplica só à questão de determinar se o individuo tem alguma perturbação; aplica-se também à questão de determinar que perturbação o individuo tem exactamente). Claro que se uma pessoa houve vozes ou está convencida que é um vampiro com 500 anos, é evidente que tem algum problema, mas provavelmente há uma área cinzenta em que não é fácil (ou talvez seja impossível) determinar se alguém tem algum problema (e, em caso afirmativo, qual).
1 comment:
Absolutamente, é um problema de grande parte das doenças psiquiátricas, dependem de um auto-diagnóstico prévio do próprio (ou da família).
Há o último exemplo disto, que é a "adicção". Nenhum consumidor de droga que não tenha problemas graves que atribui à droga irá procurar ajuda. Significa que dificilmente um médico lhe dirá "está parvo, não está nada dependente, comece é a pôr o despertador e a alimentar-se melhor que os problemas desaparecem". Regra geral, se eu e/ou os meus próximos decidirmos que tenho um problema de "dependência de drogas", vou receber validação médica quase de certeza. Mesmo que eu tenha um consumo relativamente modesto e recente, e seja é preguiçosa e ferozmente egoísta (não é uma ficção muito longe de realidades que conheço).
Por outro lado, pode perfeitamente haver pessoas a fazer consumos intensivos e regulares de droga, com dificuldade em realizar coisas que a maior parte de nós realiza, e com danos físicos e mentais significativos, sem serem diagnosticados como dependentes (quase basta que haja independência doméstica e bastante dinheiro ou acesso facilitado à(s) substância(s) em causa). Não sei de vocês, mas eu conheço casos vários assim, com substâncias várias também.
Neste caso, a "toxicodependência" é de facto um diagnóstico médico ou uma classificação social? Eficaz, se calhar, mas não por/para motivos médicos. A não ser que aceitemos que há uma boa parte da psiquiatria (não toda) que serve a manutenção da ordem social e não a saúde das pessoas em si.
Bom, já melguei o suficiente por hoje. Boa noite!
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