Saturday, April 06, 2013

Os privilégios dos funcionários públicos

Helena Matos fala do "actual regime de privilégio da função pública" (discurso ecoado por muita gente).

Mas em que consiste afinal esse famoso "regime de privilégio"?

A ADSE?

Eu sou uma espécie de funcionário público e não tenho ADSE.

O regime de aposentação?

No meu caso, o meu regime de aposentação é igual ao dos privados.

As subidas automáticas de escalão?

Em primeiro lugar, muitas empresas privadas têm "diuturnidades", que é exactamente a mesma coisa que "progressões" que havia na função pública; em segundo lugar, essas subidas de escalão por antiguidade já acabaram há um porção de anos; em terceiro lugar, mesmo as subidas de escalão de acordo com a avalição de desempenho estão suspensas há vários anos; e em quarto, eu nunca tive nenhuma "subida automática de escalão" - todos os aumentos que tive desde o ano 2000 (quando mais ou menos começou a minha carreira profissional) até hoje foram simplesmente o aumento anual da função pública.

As 35 horas de horário em vez de 40?

Não há nenhuma lei que diga que os trabalhadores do sector privado tenham que trabalhar 40 horas, nem que os do sector público trabalhem só 35. Eu realmente trabalho 35 horas, mas no meu local de trabalho muita gente trabalha 40 horas. E, em categorias idênticas, quem trabalha 35 horas recebe 87,5% do que quem trabalha 40, logo não vejo que isso seja um grande privilégio.

Os ordenados maiores?

Talvez. Realmente nalgumas categorias os funcionários públicos ganham mais que os do sector privado (embora nas categorias menos remuneradas ganhem menos que no sector privado); no entanto, é discutível até que ponto grande parte dessa diferença já não foi anulada pela redução remuneratória até 10% a que os ordenados dos funcionários públicos estão sujeitos; e, se não fosse a sentença do TC, este ano haveria uma redução adicional de (até) 7%, correspondente ao subsidio de férias (para não falar do corte de 14% no ano passado, declarado inconstitucional mas aplicado na mesma).

Não poderem ser despedidos?

Neste ponto mistura-se muita coisa - se estamos a falar de despedimentos individuais com justa causa, podem acontecer tanto no sector público como no privado (veja-se o caso da minha ex-colega, que foi mesmo despedida); se estamos a falar de contratos a prazo que não são renovados quando chegam ao fim, também são do mais comum que há no sector público. Quanto ao risco de despedimento por extinção do posto de trabalho / encerramento da actividade: no caso dos trabalhadores do Estado contratados ao abrigo do Código do Trabalho, é igual ao do sector privado (por exemplo, se esta fusão for para a frente e isso criar «sinergias» nos serviços administrativos, é perfeitamente possível eu ser despedido); já nos contratados ao abrigo do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, realmente não correm esse risco.

O pagamento do trabalho extraordinário?

Realmente, é aqui que o estatuto de privilégio dos trabalhadores do Estado é mais visível.

No sector privado, nos dias úteis o trabalho extraordinário é pago a 125% na primeira hora e a 137,5% nas seguintes; nos fins de semana e feriados é pago a 150% [pdf].

Já no sector público (com a excepção [pdf de 1,6 MB] dos profissionais de saúde), desde janeiro de 2013 que nos dias úteis é pago a 112,5% na primeira hora e a 118,75% nas seguintes, sendo pago a 125% nos fins de semana e feriados [pdf de 1,6 MB].

Um privilégio gritante sem dúvida...

Um contra-argumento contra o que escrevo aqui, nomeadamente a respeito da ADSE, das aposentações e dos despedimentos poderá ser "O Miguel não é funcionário público; é trabalhador com Contrato Individual de Trabalho de um Estabelecimento Público Empresarial - logo os exemplos pessoais que dá são irrelevantes"; mas o facto é que todas as medidas de contenção que têm sido tomadas têm como alvo todos os trabalhadores do sector público, seja qual for o seu vínculo e o tipo de instituição onde trabalham.

Sol na eira e chuva no nabal não é possível - das duas uma: ou chamamos "funcionários públicos" a todos os trabalhadores do Estado, ou chamamos "funcionários públicos" apenas aos trabalhadores com Contrato de Trabalho em Funções Públicas; não se pode é usar a primeira definição de "funcionário público" para escolher os destinatários das medidas de contenção e a segunda para exemplificar os alegados "privilégios" que servem de justificação às medidas

[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]