Em defesa do "complemento salarial", Hugo Mendes escreve:
O debate não gira em torno do desenho especifico da medida, mas do principio. E por principio, diz-se, o Estado não deve complementar o salário pago pelas empresas. (...)
É que o Estado JÁ complementa o salário pago pelas empresas através de várias formas e feitios. Fá-lo todos os dias, através da existência de um serviço nacional de saúde, que evita que o salário do trabalhador tenha de cobrir todas as despesas com estes cuidados; fá-lo através da existência de uma escola pública, que evita que o salário do trabalhador tenha que suportar a educação dos filhos; fá-lo através de um conjunto de prestações que ajudam a equilibrar os orçamentos familiares de quem trabalha. (...)
o mesmo se passa, já agora, a nível fiscal, com o principio que, em sede de IRS, isenta do pagamento de imposto aqueles que auferem rendimentos do trabalho inferior ao valor anual do salário mínimo, acrescido de 20% (artigo 70.º - “mínimo de existencia”).
Mas há uma diferença importante entre todos esses programas sociais e a proposta de complemento salarial: eu tenho direito ao SNS, à escola pública e às isenções de IRS quer esteja empregado quer não, enquanto o tal complemento salarial é só para quem esteja empregado (se assim não fosse, seria exatamente a mesma coisa que o RSI). E essa diferença tem implicações.
Fundamentalmente, os tais programas de que toda a gente beneficia, incluindo os desempregados, tornam a vida dos desempregados menos má do que seria se tivessem que pagar para ir aos hospitais, para terem os filhos na escola, etc.; isso faz com que a pressão para aceitarem o primeiro emprego que lhes apareça não seja tão grande como seria se tivessem que pagar essas despesas por inteiro (e, pela mesma razão, também tornam mais fácil a um trabalhador descontente despedir-se e ir à procura de outro emprego, sabendo que durante a fase da "busca" vai ter o suporte do "Estado Social"); assim, esses apoios, ao reduzirem a pressão para os desempregados arranjarem emprego e para os empregados para não se despedirem, reduzem o poder negocial dos empregadores e aumentam o dos empregados, contribuindo assim para que os salários e condições de trabalho sejam melhores do que seriam de outra maneira - pegando no mesmo raciocinio que usei aqui, são programas que têm o efeito de reduzir a oferta de trabalho (poderá argumentar-se que ninguém opta por ficar desempregado só por existir saúde e educação pública, mas nas decisões "na margem" tem sempre algum peso - imagine-se um portimonense que está na dúvida entre continuar à procura de emprego em Portimão ou aceitar um emprego em Olhão: se tivesse que pagar as despesas de saúde e educação todas do bolso dele seria maior a pressão para aceitar já o emprego).
Já no caso de um subsídio que só vai para quem tem emprego, a dinâmica é potencialmente oposta: com esse subsidio um desempregado tem mais a ganhar em aceitar uma dada oferta de emprego (porque, além do salário, vai também passar a receber o subsídio), e um empregado (subsidiado) tem mais a perder em se despedir (porque além de perder o ordenado, perde também o subsídio); assim, o complemento salarial, ao aumentar o incentivo para os desempregados arranjarem emprego e para os empregados para não se despedirem, pode aumentar o poder negocial dos empregadores e reduzir o dos empregados, tornando piores os salários (refiro-me, claro, ao salário ilíquido) e condições de trabalho - o tal cenário em que aumenta a oferta de trabalho.
Agora um ponto - os leitores já devem ter notado que, enquanto a respeito dos apoios sociais universais e do RSI, eu escrevo que reduzem a oferta de trabalho e aumentam os salários, a respeito do complemento salarial eu escrevo que "pode" aumentar a oferta de trabalho e reduzir os salários; este "pode" é porque admito que no caso do complemento salarial pode haver dois efeitos contraditórios - por um lado, aumenta o incentivo para quem não tem emprego arranjar um; mas por outro, para quem tem emprego e além do salário recebe o subsídio, pode (dependendo muito dos pormenores exatos da medida) reduzir a pressão (porque agora tem menos necessidade de ganhar mais dinheiro) para fazer horas extraordinárias, arranjar um segundo emprego em part-time, etc.; ou seja há um efeito a aumentar a oferta de trabalho e outro efeito a diminuí-la, não sendo claro à partida qual será predominante.
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]