Ainda a respeito da polémica desencadeada por Ricardo Araújo Pereira, André Azevedo Alves argumenta no Observador que "[n]os dias que correm, defender a liberdade implica, cada vez mais, resistir à ofensiva do poderoso lobby LGBT. (...) Um bom exemplo desse ódio foram as reacções contra declarações do insuspeito Ricardo Araújo Pereira, em que este se terá queixado da crescente opressão do politicamente correcto nestes domínios".
Mas vamos lá ver - ao que me parece, o RAP não se queixou que fosse proibido (legalmente) fazer piadas a falar de mariconços (ou de coxos), mas sim que haveria um ambiente de pressão social que tornaria impossível ou muito difícil fazer isso. Da mesma maneira, nenhum dos comentadores (dos que eu li) que criticou RAP disse que deveria ser ilegal fazer anedotas que pudessem ser vistas como homofóbicas, apenas que os humoristas deveriam abster-se de o fazer (mesmo a Isabel Moreira, abertamente, foi isso que disse, apesar das implicações mais ambíguas que se possam ver no texto dela).
Na mesma linha, a maior parte dos comentários feitos no post do Facebook de Miguel Vale de Almeida criticando o artigo de AAA (que AAA recomenda a leitura como ilustração prática da sua tese) são bastante violentos (inclusive dizendo que o Observador não devia publicar aqueles artigos), mas parece-me que só dois ou três falam em fazer queixa às autoridades.
Claro que isso levanta uma questão (que, na minha opinião, deveria ser mais discutida do que tem sido nestas polémicas sobre o "politicamente correto") - até que ponto um ambiente de pressão social generalizada não poderá ser quase tão opressivo como as leis do Estado (ou talvez até mais - afinal, não é raro que quando uma coisa seja proibida por lei mas não seja alvo de sanção social, a lei acabe na prática por ser ignorada: como aquela taxa que nos anos 80 se pagava pela televisão ou conduzir a mais 10 kms que o limite de velocidade; mesmo a proibição do aborto ou do consumo de haxixe - quando eram crimes - andavam perto disso, só ocasionalmente dando origem a processos)?
A respeito disso, Henry David Thoreau escrevia, n'A Vida sem Principio:
Mesmo admitindo que o norte-americano tenha se livrado do tirano político, ele ainda é escravo de um tirano económico e moral (...). Não consideramos este país a terra dos homens livres? Que significa ser livre do poder do rei Jorge e continuar escravo do rei Preconceito ?Ou John Stuart Mill, em On Liberty:
Like other tyrannies, the tyranny of the majority was at first, and is still vulgarly, held in dread, chiefly as operating through the acts of the public authorities. But reflecting persons perceived that when society is itself the tyrant — society collectively over the separate individuals who compose it — its means of tyrannizing are not restricted to the acts which it may do by the hands of its political functionaries. Society can and does execute its own mandates; and if it issues wrong mandates instead of right, or any mandates at all in things with which it ought not to meddle, it practices a social tyranny more formidable than many kinds of political oppression, since, though not usually upheld by such extreme penalties, it leaves fewer means of escape, penetrating much more deeply into the details of life, and enslaving the soul itself. Protection, therefore, against the tyranny of the magistrate is not enough; there needs protection also against the tyranny of the prevailing opinion and feeling, against the tendency of society to impose, by other means than civil penalties, its own ideas and practices as rules of conduct on those who dissent from them; to fetter the development and, if possible, prevent the formation of any individuality not in harmony with its ways, and compel all characters to fashion themselves upon the model of its own. There is a limit to the legitimate interference of collective opinion with individual independence; and to find that limit, and maintain it against encroachment, is as indispensable to a good condition of human affairs as protection against political despotism.Mas, a ser assim, acho que temos uma curiosa inversão dos alinhamentos tradicionais: usualmente era a esquerda que dizia que, mesmo que possa haver liberdade legal, o peso das tradições sociais e/ou da dependência económica (p.ex., o risco de ser despedido) pode limitar grandemente essa suposta liberdade (creio que era isso que consistiam as teses da Escola de Frankfurt e afins sobre "personalidade autoritária", "tolerância repressiva", "unidimensionalidade", etc.); já à direita é que era mais frequente dizer-se que desde que o Estado não te proíba, és livre (à partida diria que essa posição vinha acima de tudo dos liberais socialmente conservadores - que pretendem uma combinação de Estado não-intervencionista com uma sociedade em que os "valores tradicionais" sejam predominantes; já entre liberais socialmente "progressistas" - a começar talvez pelo Thoreau e o Mill e a acabar em muitos auto-proclamados "liberais espessos" - é mais comum a ideia de que as convenções sociais também podem ser opressivas; quanto a conservadores não-liberais, penso que não perdem muito tempo a discutir sobre se as convenções sociais são ou não restritivas da liberdade - suponho que o raciocinio deles seja algo "e se forem?"). Mas nas polémicas sobre o "politicamente correto" parece-me ser mais frequente ser a direita (e/ou os conservadores culturais, o que não é exatamente a mesma coisa) a queixar-se da alegada "tirania do politicamente correto" (mesmo, parece-me, em situações em que essa suposta "tirania" não vem do Estado), e cada vez mais se vê a esquerda a argumentar que desde que não haja nenhuma proibição oficial de dizer isto ou aquilo, não há problema nenhum (ou será que é exatamente por isso que esta questão da "pressão social" não é tão discutida como eu acho que deveria ser? Porque nenhum dos lados se sente confortável em evidenciar esta contradição?)
[Já agora, a respeito de aparentes trocas de posição, recomendo o texto Brendan Eich and the New Moral Majority, por William Saleton, na Slate, sobre a demissão mais ou menos forçada de Brendan Eich de CEO da Mozilla, depois de se saber que ele tinha doado dinheiro para uma campanha para abolir o casamento homossexual; o autor afirma que os argumentos usados para pressionar Eich a se demitir foram os mesmos que durante décadas foram usados para justificar o despedimento de homossexuais: "ele não se integra", "os clientes e os outros empregados não se sentem à vontade", etc.]
Agora, acho que há duas questões (pelo menos) que se podem levantar acerca disso:
Primeiro, será possível uma situação em que há censura social mas não restrições legais? Ou será que, a partir do momento em que, numa dada sociedade, um dado comportamento (como a homossexualidade ou a homofobia) é socialmente repudiado, é uma questão de tempo até surgirem leis contra esse comportamento?
Segundo, será possível uma situação sem censura social, ou será que a diminuição da censura social sobre uma coisa está forçosamente ligada a mais censura social sobre outra (isto é, combater a censura social contra X implica praticar censura social contra Z)?
Para explicar melhor o que quero dizer, vamos pensar num exemplo que não corresponda a divisão ideológica no mundo real (para pudermos refletir objetivamente no assunto, sem sermos influenciados por clubismos políticos) - p.ex., usar óculos modelo aviador (ou então, para referir algo que foi realmente atacado há uns meses, cargo shorts - como é que isto se diz em português?).
Vamos imaginar que existia um ambiente de censura social generalizada contra o uso de óculos modelo aviador, que era opinião generalizada, frequentemente repetida em todo o sítio, que eram uns foleiros, que viviam mentalmente no princípio dos anos 80, que eram serial killers em potência, que nos lugares que que é "reservado o direito de admissão" eram impedidos de entrar, que nas entrevistas de emprego quem usasse esses óculos era imediatamente posto de parte, etc. e que era frequente alguém que usasse esses óculos, quando finalmente arranjasse um emprego, ser praticamente obrigado pelas colegas de trabalho (via sessões diárias de "quando é que mudas de óculos?") a mudar de óculos.
Agora vamos imaginar que, finalmente, um grupo de utilizadores desses óculos e de "aliados" decidem que é tempo de contra-atacar - consistindo esse contra ataque em artigos indignados nas redes sociais sempre que alguém escreve ou diz qualquer coisa contra os óculos modelo aviador, boicotes e listas negras contra as empresas que discriminam pessoas por usarem óculos modelo aviador, e provavelmente criando as palavras "oculosdeaviadorofóbico" e "imagengista" para designar os seus adversários (e, já que estamos numa de boicotes, boicotando os meios de comunicação que propagam a oculosdeaviadorofobia).
Face a esse contra-ataque, alguns poderiam queixar-se "já não se pode dizer nada"; mas essa perseguição (e repito que estou falando apenas de perseguição ao nível da sociedade civil, não de leis) aos oculosdeaviadorofóbicos teria por objetivo, exatamente, contrariar uma situação em que "já não se pode usar os óculos de que se gosta".
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]