Wednesday, January 31, 2007

Direitos "negativos" e "positivos" - exercicio para reflexão

A respeito deste post de João Miranda e do que escrevi nos comentários (e também de uma discussão que tive já há algum tempo nos comentários do Arte da Fuga) imagine-se o seguinte cenário: o Pedro ocupa uma casa devoluta propriedade do João. O João vai à policia e pede para porem o Pedro a andar.

Pelo que eu percebo dessa conversa de "direitos negativos" vs. "positivos", "direitos negativos" são aqueles que exigem apenas uma omissão por parte dos outros, enquanto os "positivos" são os que implicam acção para serem realizados.

Questão - quem é que aqui está a reclamar "direitos positivos" e "negativos"?

Algumas respostas possíveis:

a) O João está a reclamar o "direito negativo" de não ver a sua propriedade invadida, enquanto o Pedro está a reclamar o "direito positivo" à habitação

b) O Pedro está a reclamar o "direito negativo" a não ser expulso, enquanto o João está a reclamar o "direito positivo" a assistência policial para expulsar o Pedro

c) Esta conversa de "direitos positivos" vs. "negativos" é potencialmente circular: para definir se um direito é "positivo" ou "negativo" é preciso antes definir que direitos são legitimos, logo é impossível usar o critério "negativo vs. positivo" para definir se um suposto "direito" é legitimo ou não.

Claro que haverá mais respostas possiveis além dessas (já deve ter dado para notar que a minha preferência vai para a c)

Adenda: o artigo da wikipedia sobre o tema tem o que me parece uma excelente definição - "if 'A' has a negative right against 'B' then 'B' must refrain from acting in such a way as to prevent 'A' from doing 'x'. If 'A' has a positive right to do 'x', then 'B' must assist 'A' to do 'x' if 'A' is not able to do 'x' without that assistance. For example, a negative right to life would require others to refrain from killing a person. A positive right to life would require others act to save the life of someone who would otherwise die" (já foram feitos comentários antes de eu fazer esta adenda, mas penso que a validade desses comentários em nada é afectada)

11 comments:

AA said...

Boa provocação, mas fazer jogos de palavras também não ajuda. Todos os direitos baseiam-se em direitos individuais de propriedade, que são por natureza negativos.

Se a propriedade é do João, este tem o direito a fazer do que ela, incluindo o direito a expulsar dali qualquer invasor.

O invasor não tem "direito" (negativo) "a não ser expulso" - com base em que propriedade? Quanto muito, tem o direito a que a sua integridade física (auto-propriedade) não seja posta em causa por via de uma expulsão desproporcional. O "direito a não ser expulso" só existe mediante contrato, implícito ou explícito, voluntaria _e_ previamente acordado por ambas as partes.

O proprietário também não tem o "direito" (positivo) "a receber ajuda policial" - com base em que propriedade? Qualquer ajuda policial "pública" esgota recursos de outrem. Esse é um direito "social" [sim, parece absurdo, mas temos de ser coerentes] O que acontece é que tem o direito (negativo) a não ser impedido de defender a sua propriedade. Ou contratar quem o faça. Mas o Estado monopolizou a violência no território, concedendo ao cidadão, quid pro quo, aquele "direito social", essa titularidade. E a pessoa se quiser mais protecção, que pague no mercado privado. No fundo, não é muito diferente da Educação ou Saúde...

Ou seja, voltamos à nossa discussão sobre a propriedade.

Miguel Madeira said...

"mas fazer jogos de palavras também não ajuda"

Bem, um dos objectivos do post era exactamente referir que um "direito positivo" pode facilmente ser transformado em "negativo" e vice-versa, dependendo da forma como é formulado (ou seja, levantar a questão se a distinção entre direitos negativos e positivos não será tudo um jogo de palavras).

Miguel Madeira said...

«O invasor não tem "direito" (negativo) "a não ser expulso" - com base em que propriedade?»

Da sua - ele é o dono do seu corpo e pode objectar a que o seu corpo seja mexido sem autorização (e se ele tiver uma caixa de CDs na casa, já temos mais alguma propriedade que não pode ser mexida sem autorização).

Claro que se pode dizer "O Pedro só pode fazer o que quiser com a sua propriedade se não afectar o igual direito do João", mas porque é que isso não pode ser virado ao contrário? Porque é que o "direito do Pedro fazer o que quiser com ele próprio e com os seus CDs" há-de ser limitado pelo "direito do João fazer o que quiser com a sua casa" e não o oposto?

AA said...

Miguel,

A questão dos "jogos de palavras" era só para espicaçar :) - porque não é de facto uma questão semântica...

pode objectar a que o seu corpo seja mexido sem autorização

Daí a questão da proporcionalidade da expulsão, algo que é _muito pouco_ clear-cut...

O proprietário tem direito a expulsar invasores, podendo usar para o efeito tanta (ou pouco mais) violência quanta aquela que o invasor estiver disposto a usar - porque este, não tendo direito à invasão, perde o direito a essa "porção de integridade" quando resiste ilegitimamente.

Como é óbvio, há fair use. Um miúdo que invada o jardim do vizinho para ir buscar a bola deve poder levar uns berros, e quanto muito uns puxões de orelha. Um invasor que diga "só saio se arrastado" pode ser arrastado. Se morder e espernear, deve poder levar uns pontapés e estaladas. Se invadir a propriedade armado, assinalando que está disposto a matar ou a ser morto, deve poder ser expulso a tiro.

porque .... há-de ser limitado ....

Porque só pode haver propriedade sobre coisas físicas, e as coisas físicas são exclusivas.

Assim, nunca há "iguais direitos" em conflito. Um tem propriedade sobre o lote de território, outro sobre o seu corpo, que não só é estranho ao lote de território, como se introduziu no território. Claro que o invasor não passa a ser propriedade do dono do lote, precisamente porque os títulos de propriedade são distintos.

Nota, claro, que falo em propriedade privada. A propriedade pública é aquela onde por natureza ou história, há conflitos de interesses...

Miguel Madeira said...

«Assim, nunca há "iguais direitos" em conflito. Um tem propriedade sobre o lote de território, outro sobre o seu corpo, que não só é estranho ao lote de território, como se introduziu no território»

Só não há "iguais direitos" em conflito porque se estabeleceu que os direitos de propriedade "imobiliários" valem mais que os "mobiliários"; mas porque é que há-de ser assim (ainda mais se atendermos que até há mais polémica sobre a origem da propriedade de terrenos do que sobre a origem da propriedade de bens produzidos)?

"A propriedade pública é aquela onde por natureza ou história, há conflitos de interesses... "

Também há conflitos na propriedade privada (p.ex., entre a propriedade privada de um computador e a propriedade privada de direitos de autor).

AA said...

Só não há "iguais direitos" em conflito porque se estabeleceu que os direitos de propriedade "imobiliários" valem mais que os "mobiliários"

Não valem mais nem menos porque os bens a que se referem são distintos e exclusivos...

origem da propriedade de terrenos

Não altera o raciocínio...

a propriedade privada de um computador e a propriedade privada de direitos de autor

Bem visto. Se há conflito, é porque um dos direitos está mal definido. Neste caso, são os direitos de autor, porque concedem titularidade sobre propriedade de outrem, reduzindo-a, enquanto que a existência de informação em propriedade privada não reduz a quantidade de informação existente fora dela...

Miguel Madeira said...

"Não valem mais nem menos porque os bens a que se referem são distintos e exclusivos.."

Na prática valem - o direito de eu movimentar o meu corpo (ou o meu carro) em determinada direcção está condicionado ao respeito pelos direitos de propriedade dos terrenos, corredores, etc. por aonde eu me poderia movimentar.

Por outro lado (salvo situações excepcionais, de servidões e afins) é muito raro que o direito de um proprietário imobiliário fazer o que quer com a sua propriedade seja limitado pelo direito das outras pessoas fazerem o que quiserem com os seus corpos fisicos.

AA said...

Na prática valem

Não valem, são condicionantes físicas. Uns bens são moveis, outros são imóveis. Não se pode mover um bem imóvel de forma a conflituar com um móvel.

O tal condicionamento é derivado dos direitos negativos correspondentes a cada propriedade.

é muito raro que o direito de um proprietário imobiliário fazer o que quer com a sua propriedade seja limitado pelo direito das outras pessoas fazerem o que quiserem com os seus corpos fisicos

O direito de auto-propriedade das pessoas não lhes dá direito à propriedade alheia, logo não há conflito de direitos de propriedade.

Miguel Madeira said...

Seja como fôr, isto talvez confirme a posição c). Isto é, dizer (como por vezes os liberais fazem) "Eu só reconheço a existência de direitos negativos,não de direitos positivos" pouca relevância têm para determinar que direitos reconhecemos efectivamente como válidos.

Afinal, o argumento do AA para negar a existência de um direito negativo de "não ser expulso" é, simplesmente, negar que o Pedro tenha esse direito (e uma pessoa que alegasse que o Pedro tinha esse direito - argumentado, p.ex. que o prazo de usucapião devia ser de um semana - poderia argumentar "ele tem esse direito sim senhor! E é um direito negativo!).

Ou seja, o raciocinio acaba por não ser "Eu só reconheço como válidos os direitos negativos" mas sim "Eu só considero «direitos negativos» os direitos que reconheço como válidos"

Miguel Madeira said...

Já agora, será que o usucapião (independentemente do seu prazo ser de 1 semana ou de 20 anos) é um direito positivo (o direito de adquirir o bem em questão) ou negativo (o direito de não ser destituido desse bem)?

AA said...

Já agora, será que o usucapião (independentemente do seu prazo ser de 1 semana ou de 20 anos) é um direito positivo (o direito de adquirir o bem em questão) ou negativo (o direito de não ser destituído desse bem)?

A legitimidade do usucapião não deriva do direito ser negativo ou positivo, deriva de qual é o conceito de propriedade vigente.

Numa sociedade onde for lei (prática legítima) o usucapião - falamos do usucapião legítimo, terrenos cuja propriedade é absolutamente desconhecida, não uma invasão continuada -, o anterior proprietário perde o direito à propriedade, e o novo adquire-o. No fundo, é o conceito que uma propriedade "abandonada" está sujeita a novo homesteading, perfeitamente legítimo...

...deixa de ser um acto legítimo quando o legítimo proprietário mantém o claim sobre a propriedade, porque com isso acciona a expulsão invasores ilegítimos. O facto do proprietário não usar de meios mais radicais não legitima invasores, tal como acontece noutro tipo de roubos.