Monday, January 16, 2006

O individuo, a comunidade e o Estado (e, já agora, o Romantismo)

João Galamba publicou dois posts sobre o Romantismo, o liberalismo, etc. Realmente, à partida, é díficil dizer estabelecer (ou recusar) uma ligação entre o Romantismo a esta ou aquela posição. Como escrevem Michael Lowy e Robert Sayre em "Revolta e Melancolia", "[o Romantismo é] ao mesmo tempo (...) revolucionário e contra-revolucionário, individualista e comunitário, cosmopolita e nacionalista, realista e fantástico, retrógado e utópico, revoltado e melancólico, democrático e aristocrático, activista e contemplativo, republicano e monárquico, vermelho e branco, místico e sensual" (no entanto, refira-se que os autores - penso que trotskistas - falam de "vermelho" - i.e., radical - e "branco" - tradicionalista - mas não de "azul", ou sejam, não parecem muito crentes num "liberalismo romântico").

Que o Romantismo é, de certa forma, individualista, isso é óbvio. Veja-se esta passagem de Herder, em "Também uma filosofia da história para a formação da humanidade":

"Daí decorre (..) o facto de a maior parte da chamada civilização moderna ser ela mesma de carácter mecânico (...). Tudo se ia transformando em máquina. E uma máquina é governada (...) com um só pensamento! Com um pequeno gesto! Em contrapartida, quantas forças foram ficando adormecidas! Inventou-se a artilharia, e com essa invenção, veja-se como enfraqueceram as seivas que alimentavam o rude vigor guerreiro do mundo antigo, no corpo e na alma, a bravura, a fidelidade, a iniciativa individual, o sentimento de honra! Um exército passou a ser uma máquina contratada, destituída de pensamento, de força e de vontade, orientada pela cabeça de um só homem que lhe paga para mimar à distãncia uns quantos movimentos e desempenhar a função de uma muralha viva que lança e recebe balas (...) Sem qualquer esforço voam pelos ares os restos da existência individual, a antiga forma gótica da liberdade"

Neste texto, Herder faz claramente a defesa de um certo "individualismo", ao defender o heroismo, a coragem e a iniciativa individual do "guerreiro do mundo antigo", por oposição ao "mundo moderno" (i.e., ao século XVIII), em que o soldado não passaria de uma simples peça de uma máquina. E, tal como falava dos soldados, falava da evolução da sociedade na sua época, que, segundo ele, estaria a transformar-se "numa máquina governada por um só homem", em que o individuo perderia a sua individualidade.

E o individualismo de Herder é um individualismo que faz a apologia da coragem e do heroismo, isto é, não tem nada a ver "pós-modernaços que fazem análise apenas e só a partir do seu sofá e não agem sobre o mundo", como pretende Henrique Raposo (poder-se-á argumentar que, em rigor, Herder não pertence ao Romantismo mas ao Sturm und Drang, mas um pode ser considerado a continuação do outro).

Mas esse individualismo não será contraditório com o "comunitarismo"? Talvez não. Para ilustrar essa não-contradição vou fazer um salto um bocado grande, e passar da filosofia e literatura dos séculos XVIII e XIX para a teoria da gestão empresarial da segunda metade do século XX. Mais exactamente, para a teoria da "organização mecânica vs. orgânica", de Burns e Stalker. Segundo estes autores, as empresas (ou, de uma maneira geral, as organizações) poderiam funcionar de duas maneiras: no sistema "mecânico", há uma estrutura formal bem definida, e em que cada individuo desempenha uma tarefa específica; no sistema "orgânico", as tarefas de cada um não estão tão formalizadas e a organização do trabalho baseia-se muito na "interacção directa" (estilo um trabalhador diz para o outro "Enquanto fazes as contas dos avençados, eu ia pondo as folhas de ponto por ordem", e o outro responde "Se calhar era melhor ires buscar dossiers ao armazém"). Ora, o sistema "orgânico" é simultaneamente mais "individualista" e mais "comunitário" do que o "mecânico", já que implica mais iniciativa e criatividade individual, e, ao mesmo tempo, maior espírito de cooperação e entreajuda.

No fundo, a ideologia do Romantismo é mais ou menos isso: uma combinação de "individualismo" (no sentido de originalidade individual) com "comunidade", isto é, um espirito de solidariedade entre os individuos (em principio, baseado mais em laços pessoais e/ou afectivos do que numa organização formal).

O uso da dicotomia "orgânico vs. mecânico" em vez da "individualismo vs. colectivismo" tem vantagens: um exemplo - a "wikipedia" é "individualista" ou "colectivista"? Há quem argumente que é "individualista" (já que é feita quase sem autoridade central - e alguns até referem o facto de o "fundador" ser um discipulo da ultra-individualista Ayn Rand); há quem argumente que é "colectivista", já que se baseia na ideia que vários individuos podem escrever um texto em conjunto (a discussão sobre se a wikipedia presta para alguma coisa ou não é irrelevante para a questão). Se em vez disso, formos ver a coisa pela dicotomia "orgânico vs. mecânico", não há grandes dúvidas: a wikipedia é "orgânica", já vai se desenvolvendo pela interacção entre os individuos (mesmo que não se conheçam), e não de acordo com uma cadeia hierárquica formal.

E aqui começam as minhas discordâncias significativas com o João Galamba, quando ele, num post anterior, diz que "O Estado nao [é] uma entidade estranha à sociedade e à comunidade politica" (no original não tem acentos - deve ser do teclado inglês -, mas penso que era isso que ele queria dizer). Ora, o Estado e a "comunidade", na sua essencia profunda, são opostos: a comunidade é "orgânica" - mais que uma situação acabada, é um processo em que quase podemos dizer que todos os individuos se influenciam (e são influenciados) uns aos outros; o Estado é "mecânico", é uma entidade centralizada e hierarquizada. O Estado e a comunidade podem não ser necessariamente inimigos, mas há sempre uma oposição potencial entre eles (e, historicamente, têm sido inimigos: o Estado moderno foi, muitas vezes, construido contra "cidades livres", comunidades aldeãs, tribos, clãs, etc., e substituindo-os por individuos atomizados - processo que teve coisas boas e más).

11 comments:

Anonymous said...

simplesmente BRILHANTE a forma como abordou os temas: individualismo, colectivo e organicidade.
e devo desde já dizer de forma bem sucinta.

agora sobre o romantismo e vou puxar a brasa a sardinha.
o romantismo está muito ligado à contra cultura, sendo muito marcante para os anarquistas.
um anarquista é um "terrorista poético", escreveu uma vez um anarquista.

por outro lado, penso que o romantismo faz parte da natureza humana, quer queiram quer não há algo em nós que nos prende ao romantismo.
eu vou ainda mais longe e afirmo que se os membros de uma sociedade perderem todo e qualquer romantismo, essa sociedade está simplesmente morta.

a evolução humana não se dá pela luta de classes como afirmam os marxistas, nem pela busca de luxo e bens materiais sem fim como afirmam os liberais.
ela dá-se pela libertação do homem, e pela necessidade do homem se libertar de tudo o resto e ser inteiramente seu.


divaguei um pouco, vou ficar por aqui.

Joao Galamba said...

1-Miguel, optimo post e concordo com a maioria das coisas que escreveste. Deixei umas reflexoes/comentario no metablog

2-a ultima frase do agitador e' absolutamente romantica, mas no mau sentido (na minha opiniao). O que e' esse "eu" que se liberta de tudo? Sera o bom selvagem pre-social, o desejo incorrupto, ou um subjectivismo auto-referencial que nao passa de uma forma de narcisismo que acentua ainda mais o atomismo liberal? Ha um livro optimo sobre a questao da autenticidade (que e' uma das novidades romantica): On Authenticity de Charles Guignon.

Abraco

Anonymous said...

o eu que se liberta de tudo é aquele que não precisa de um sistema de castigo e recompensa para ditar o que faz ou o que deve fazer.

já dizia einstein: "Se as pessoas são boas só por temerem o castigo e almejarem uma recompensa, então realmente somos um grupo muito desprezível."

de resto, a melhor descrição, penso eu, está em "o unico e a sua propriedade".

ao longo do livro ele vai desmenbrando cada um dos despotas (estado, deus, liberalismo, etc) por isso ele diz "a minha causa é a causa de nada!" e mais a frente remata com "Se baseio a minha causa em Mim, o Único, ela repousa sobre o seu criador efémero e mortal, que se devora a si mesmo, e posso dizer: Não baseei a minha causa sobre Nada."

no fundo só a consciência do nosso Eu, não de Eu ao lado de outros Eu, mas de um Eu indefinível, de um Eu "único", de um Eu que renuncia a todo o pressuposto comum, nos faz aceder ao que Stirner chama "o meu gozo pessoal".

nem deus, nem patria, nem amos, nem "reconhecimento", apenas "o meu gozo pessoal". o EU inteiramente MEU.

amor egoista e individualismo.

ele tambem escreve algo interessante com que concordo, em que diz que lhe (homem) é natural amar os homens (numa critica aos humanistas). a realidade é que a maior parte da historia da humanidade passou pela cooperação, e graças a ela estamos aqui hoje.

uma vez li que se o inventor da world wide web a tivesse patenteado demorariam mais 20 anos até a internet chegar ao estado está hoje.

portanto, e escolhendo uma das suas opções, poderia chamar-lhe o "desejo incorrupto".

Joao Galamba said...

Depois de Schopenhauer, Baudelaire e companhia esse lado romantico mais inocente perdeu credibilidade. Mas ok.

Anonymous said...

lá por ter perdido credibilidade, não significa que tenha morrido.

alias, requerem muitos anos de educação e pressão sistematica para as pessoas se tornarem "aptas para a sociedade" ou como dizem "enfrentar os desafios da vida lá fora", e é isso que as escolas fazem, são um mero reflexo e continuação da mentalidade reinante da sociedade.
sempre foram, em qualquer momento historico.

Joao Galamba said...

Sem qualquer tipo de socializacao nao me parece que o individuo possa ser um individuo. Mas como nao conheco nenhum individuo nao social isto implica que tu nao podes simplesmente dizer nao! e com isso rejeitar todas as formas. Viver com outros implica sempre uma certa normalizacao (qual o seu conteudo e' outra questao)e com isso sacrificar alguma dessa liberdade abstracta que pareces querer defender. A propria linguagem so e' possivel se existirem regras.

O problema e' que a liberdade absoluta e' necessariamente destrutiva (e nao determina nada positivamente)pois para nao comprometer o seu absolutismo tem que anular todas as formas que lhe dao alguma determinacao e conteudo.

Anonymous said...

caro joão galamba,

se calhar expliquei-me mal, mas em que parte eu falei do individuo não social?
liberdade abstracta, liberdade absoluta? hummmmmmmm

a questão fulcral é que temos visões diferentes do que é a liberdade.

liberdade abstracta, para mim, é a liberal.

Joao Galamba said...

a liberal e' bastante concreta e determinada, eles e' que tentam universaliza-la e manipular o conceito...

Anonymous said...

está no seu direito de achar que eles "manipulam o conceito".
se quiser saber como pensam os anarquistas sobre liberdade basta ler textos anarquistas.

de resto, são formas de ver o mundo, filosofias diferentes.

Miguel Madeira said...

João Galamba:

só para esclarecimento - com "eles", imagino que se esteja a referir aos chamados "neoliberais"?

Joao Galamba said...

Podemos dizer que todos "manipulamos o conceito" pois o significado da palavra liberdade e' ele proprio parte do combate/debate politico. O que os neoliberais (os marxistas mais radicais tambem) tentam fazer e' absolutizar ou universalizar a sua interpretacao do termo (muitas vezes apresentado-na como algo livre de interpretacao ideologica, como se fosse um facto natural ou algo auto-evidente).