Tuesday, January 24, 2006

Sessão de esclarecimento

Num comentário, a Sabine pergunta, a respeito do Bloco de Esquerda, "São favoráveis à democracia?"

A resposta mais simples seria dizer "sim", mas isso seria muito pouco explicativo - afinal, o que mais há para aí são sistemas politicos completamente opostos proclamando-se "democracias". Assim, o que vou fazer é tentar explicar o que as várias correntes de pensamento que confluem no BE defendem/defenderam e deixar aos leitores o direito de decidirem se isso é "democracia" ou não.

O BE resultou da reunião do então PSR, UDP e Politica XXI. A FER aderiu pouco depois. Também tem/teve a participação de alguns anarquistas, como a falecida Maria Magos Jorge (embora possa-se argumentar que um verdadeiro anarquista não deveria ser militante partidário). Actualmente, grande parte dos militantes são pessoas que antes "flutuavam" entre o PS e o PCP.

Que tipo de regime politico defende o PSR (a actual APSR)? O melhor é ler estes textos:

"On Workers Democracy", Ernest Mandel, 1968
"Marxist Theory of the State", Ernest Mandel, 1969
"The Dictatorship of the proletariat and socialist democracy", Congresso de 1985 da "IV Internacional"

O termo "dictatorship" assusta, mas é usado num sentido muito especial - "ditadura do proletariado" significa um "Estado" em que o "proletariado" será a "classe dominante" (da mesma forma que os marxistas chamam ao sistema actual "ditadura da burguesia"), não o sentido tradicional da palavra (censura, monopartidarismo, ausência de liberdades cívis, etc.). O melhor é mesmo ler o texto. As ideias que lá vêm parecem-me perfeitamente democráticas (ainda que muito centralizadas para o meu gosto).

A FER defende exactamento o mesmo que o PSR - as diferenças são de ordem táctica: nos anos 70, uma facção da "IV Internacional" defendia as guerrilhas da América Latina e outra era contra, preferindo as "lutas de massa" (considerando as guerrilhas uma estratégia elitista e "burguesa"). Com a revolução sandinista na Nicarágua, a ruptura consumou-se, e a ala que se opunha ao apoio às guerrilhas (e aos sandinistas) deu origem à tendéncia que é representada em Portugal pela FER (uma versão - a da FER - desse processo está aqui).

Quanto à UDP, era apoiante de Estaline e do regime albanês - dificilmente um modelo de democracia. No entanto, a UDP já fez a autocritica dessas posições - uma autocritica muito mais radical, p.ex., do que a do PC.

Quanto aos anarquistas que por lá há, no essencial, defendem o mesmo que os anarquistas "tradicionais", ainda que numa visão mais gradualista e menos revolucionária. Uma descrição de que sociedade os anarquistas defendem está aqui.

Já agora, outra corrente é a Plataforma por uma Democracia Socialista [.pdf] (que, nas duas ultimas convenções, funcionou como a oposição) - para conhecer as suas posições, é ler o texto.

Quanto à tal maioria de militantes e activistas não ligados a nenhuma facção, obviamente que cada individuo é um caso, mas o padrão é defenderem o "Estado Social" (o seu reforço ou, pelo menos, a sua não destruição), as tais "causas fracturantes" e a complementarização da "democracia representativa" com uns "pozinhos" de "democracia participativa" (em suma, a posição do Bloco como organização, que, no fundo, é o máximo denominador comum entre as várias tradições que lá confluiram).

Também é esta, mais ou menos, a orientação da Politica XXI (o melhor é ler a sua revista): este grupo tem origem nos militantes do PCP que sairam por ocasião do golpe de 1991 em Moscovo (a direcção apoiou os golpistas, eles apoiaram Gorbatchov). Um grupo foi para o PS (Pina Moura, José Luis Judas, etc.), e outro fundiu-se com o MDP/CDE, dando origem à PXXI.

Eu sei que isto é um bocado chato obrigar as pessoas a lerem um monte de links, mas é a melhor maneira de explicar o que as várias facções defendem e/ou defenderam.

4 comments:

Ricardo Alves said...

O que o primeiro texto diz explicitamente é que a «Ditadura do Proletariado» não é uma ditadura porque o «Proletariado» é a maioria. Ora, o que nós sabemos é que o operariado só chegou a ser a maioria durante parte do século 20 na Bélgica (no Reino Unido aproximou-se disso). Logo, está-se a falar, na realidade, de uma ditadura da minoria. Além disso, ditadura é ditadura. Mesmo quando é em nome da maioria.

Anonymous said...

o proletariado não são só os operarios, mas todos os assalariados.

a democracia é a ditadura da maioria, afinal quem decide é a maioria. o que diferencia a ditadura de uma democracia é o respeito pelas opiniões contrarias e por quem pensa de forma diferente, de resto toda a gente tem de se sujeitar a decisão da maioria.

Miguel Madeira said...

O Ricardo Alves está-se a referir mesmo ao primeiro texto ou ao terceiro?

Se for ao primeiro, penso que nem lá fala em "ditadura do proletariado".

Se for o terceiro não se limita a dizer que "a «Ditadura do Proletariado» não é uma ditadura porque o «Proletariado» é a maioria". P.ex.:

"To grant a single party or so-called "mass organisations" or "professional associations" (like writers’ associations) controlled by that single party, a monopoly of access to the printing presses, radio, television, and other mass media, to assembly halls, etc., would, in fact, restrict and not extend the democratic rights of the proletariat compared to those enjoyed under contemporary bourgeois democracy. The right of toilers, including those with dissenting views, to have access to the material means of exercising democratic freedoms (freedom of the press, of assembly, of demonstration, the right to strike, etc.) is essential, as is the independence of the trade unions from the state and from control by the ruling party or parties."

"Therefore, an extension of democratic rights for the toilers beyond those already enjoyed under conditions of advanced bourgeois democracy is incompatible with the restriction of the right to form political groupings, tendencies, or parties on programmatic or ideological grounds."

"Experience has, however, also shown that this mechanism of democratically centralised workers’ power through a system of workers’ councils cannot master all the social and economic contradictions of the building of socialism without the existence of instruments independent of the soviet state apparatus which act as a counterweight. Independent trade unions and a labour law guaranteeing the right to strike are essential in this sense to guarantee a defence of the needs of the workers and their standard of living against any decision taken by workers’ councils, particularly against any arbitrary and bureaucratic move of the management bodies. The Hungarian experience of 1956, the Czechoslovak experience of 1968 and the Polish experience since 1980 also confirm that this is a fundamental concern of the proletariat that has gone through the experience of bureaucratic dictatorship. Although in principle revolutionary Marxists recommend the organisation of the working class in a single democratic trade union, the right to trade union pluralism must not be challenged"

"All these endeavours, for which humanity possesses no blueprints, will give rise to momentous ideological and political debates and struggles. Different platforms on these issues will play a very important role. Any restriction of these debates and movements, under the pretext that this or that platform "objectively" reflects bourgeois or petty-bourgeois pressure and interests and "if logically carried out to the end", could "lead to the restoration of capitalism", can only hinder the emergence of a consensus around the most effective solutions from the point of view of building socialism, i.e. from the point of view of the overall class interests of the proletariat, as opposed to sectoral interest."

Liberdade de imprensa, pluripartidarismo, pluralismo sindical... não me parece uma "ditadura" no sentido usual da palavra.

sabine said...

Obrigado pela simpatia e pelo esclarecimento. :)