Monday, December 03, 2007

Toda a gente? (II)

Lá abaixo, Filipe Abrantes comenta "o BE acusou os americanos de esconderem as facturas. Ou foi só para brilhar no parlamento?".

Imagino que Filipe Abrantes esteja a evocar o já clássico argumento "até o BE acreditiva nas armas de destruição maciça - se eles até diziam que eram os americanos que tinham a factura".

Vamos então ver o que foi dito a 4 de Fevereiro de 2003 (umas semanas antes do começo da guerra), na Assembleia da Republica (como lá chegar - ir aqui e procurar por "IX Legislatura", "1ª sessão legislativa" e diário nº 084; depois ir às páginas 3523 e 3524):

O Sr. Presidente: - Para uma declaração política, tem a palavra o Sr. Deputado João Teixeira Lopes.

O Sr. João Teixeira Lopes (BE): - Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Assistimos ontem a um dos episódios mais confrangedores da história das relações internacionais.
Conversas vagas entre guardas-republicanos, acusações sem qualquer base material, mistura de factos passados com factos presentes, fotografias inconclusivas e acusações desmentidas pelos próprios serviços secretos americanos e britânicos ainda antes mesmo de serem feitas. Para acusar um país de intenções belicistas em larga escala, convenhamos que é muito pouco. Para quem procurava um arsenal de armas de destruição massiva, deve ser frustrante não encontrar nem um exemplar, nada que dê o mínimo de credibilidade às acusações feitas. De resto, Colin Powell nada sabia. O que tinham a dizer ao mundo era nada.
Mas Colin Powell merece ser elogiado: conseguiu mostrar as "poderosas" provas dos Estados Unidos sem nunca se rir. Merece aplauso! Uma coisa é certa: na história da manipulação de informação, nunca se viu trabalho tão desajeitado.

O Sr. Luís Fazenda (BE): - Muito bem!

O Orador: - Os Estados Unidos estão, definitivamente, a perder qualidades.

Portugal não pode ter nada a ver com esta encenação, até porque ela foi de tal forma desastrosa que não deu espaço de manobra a nenhum dos aliados dos Estados Unidos para recuar um centímetro que fosse nas suas posições. Os Estados Unidos não conseguiram o apoio de ninguém, a não ser do sempre diligente Reino Unido. A posição do Governo português está, assim, ao lado de uma minoria isolada e extremista. As ditas provas não mereceram sequer comentários dos diplomatas nas Nações Unidas.

Aznar, ontem, e Blair, antes de ontem, tiveram dificuldades em explicar o inexplicável nos seus parlamentos nacionais: para quê, afinal, esta guerra?

Já discutimos aqui o facto de o Primeiro-Ministro português ter assinado um texto de opinião, da autoria de Blair e Aznar, sobre a guerra, oficializando a posição de Portugal sobre o assunto. O método desta autêntica declaração de guerra está errado: esquece o Presidente da República e o Parlament; institui que, hoje, a guerra, por aqui, se decide pelo telefone entre amigos. Bastou ver o Primeiro-Ministro esta semana a levar pancadas amigas do Sr. Berlusconi e a rir-se em conjunto de piadas de mau gosto sobre outros dirigentes europeus para se perceber a dimensão do disparate. Mas o método é só a menor parte da asneira, o problema está na substância: a guerra é um erro e a opinião pública de todo o Mundo tem sido clara em condená-la. O manifesto dava como adquirida a existência de armas de destruição massiva, por isso o mínimo que se pode dizer é houve uma manobra de prestidigitação.

Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: O Sr. Primeiro-Ministro acusou todos os que estão contra a guerra de serem "advogados de Saddam", como Nelson Mandela, o Papa, o Parlamento Europeu, Schröeder, Mário Soares, Freitas do Amaral, quarenta prémios Nobel, centenas de escritores, dezenas de bispos. Se assim fosse, Sr.as e Srs. Deputados, Saddam teria o maior escritório de advogados do mundo!... Mas não é!!

Saddam é um ditador e um sanguinário; é-o agora como era no tempo em que os Estados Unidos o armavam contra os curdos e contra os iranianos. Não ficou nem melhor nem pior, apenas deixou de servir.

Saddam era um ditador quando Portugal lhe vendeu urânio e armas para que melhor matasse os seus opositores. Nós, a quem o Sr. Primeiro-Ministro chama de advogados de Saddam, manifestávamo-nos contra ele e pelo povo curdo. Onde estavam, então, todos os que eram coniventes com a chacina? E onde estão hoje? Onde estão hoje quando o povo curdo é reprimido pelo aliado turco? Onde estão os sentimentos humanitários neste caso? Terão os princípios fronteiras e bandeiras de conveniência? Para nós não!! Entre o Rei Fahd, da Arábia Saudita, e Saddam Hussein, do Iraque, não escolhemos; entre Saddam e Musharraf, do Paquistão, não escolhemos;…

O Sr. Luís Fazenda (BE): - Muito bem!

O Orador: - … entre as ditaduras pró-americanas e as ditaduras antiamericanas, não escolhemos. Condenamos todas elas, sem qualquer dúvida. Possam todos dizer o mesmo!

Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Esta guerra, sejamos claros, é um crime. Ao associar-se a ela, Portugal será cúmplice de um crime. Não podemos assistir parados a este seguidismo sem critério, que contraria a posição largamente maioritária da opinião portuguesa. Os assuntos da guerra e da paz são os mais importantes em qualquer Estado. Não assistiremos, sem reacção, à participação de Portugal nesta guerra injusta.

Por isso mesmo, no exacto dia em que o Governo português decidir participar em acções militares ou de ocupação - insisto, ou de ocupação - contra o Iraque, o Bloco de Esquerda apresentará aqui, no Parlamento, uma moção de censura ao Governo.

Risos do PSD e do CDS-PP.

A gravidade da participação de um país numa guerra exige uma reacção da mesma dimensão. A moção de censura é a única figura institucional que pode transmitir a nossa indignação e a nossa oposição frontal a este seguidismo cego. Traremos para este Parlamento a indignação que, em todo o País, se opõe a esta guerra. Participaremos tanto aqui como nos movimentos populares num larguíssimo movimento de opinião pela paz.

E de nada valem os argumentos do Governo português: um a um vão sendo desmentidos pelos factos. O que era seguro ontem, já todos sabemos que não o é hoje. Para o Primeiro-Ministro português era "indesmentível" a ligação entre o Iraque e a Al-Qaeda. Pois bem, esta ligação foi desmentida pelas próprias agências de informação americanas e britânicas.

O Sr. Diogo Feio (CDS-PP): - Quando?!

O Orador: - As provas de existência de armas de destruição massiva eram indiscutíveis. Como se pôde ver ontem, elas, pura e simplesmente, não existem!!...

Sabemos que, quando chove em Washington, o Governo português abre o guarda-chuva, mas não seria má ideia arrepiar caminho. O mundo é feito de cidadãos e cidadãs, e boa parte deles estão contra esta guerra. Os portugueses não são excepção. Saiba este Governo compreender os sinais, porque nós saberemos fazer o protesto.

Aplausos do BE.

O que concluimos daqui? Que, a 04/02/2003, a opinião do Bloco de Esquerda (ou, pelo menos, de João Teixeira Lopes) era que não havia provas da existência das AMDs. Sim, ele também diz que os EUA venderam urãnio e armas ao Iraque (durante a guerra Irão-Iraque), mas ninguém contesta que, até à primeira guerra do Golfo, o Iraque tinha um program de desenvolvimento de AMDs (e usou-as) - o que estava em discussão era se o Iraque tinha AMDs em 2003 (e, aí, parece-me que J.T. Lopes não acreditava nelas).

Agora, a respeito das declarações de Louçã acerca do "ele tem a factura" - eu não tenho nem o livro onde ele (junto com o meu ex-vizinho Jorge Costa) escreve isso, nem consigo encontrar a sessão da AR onde isso foi dito (embora me lembre de ter visto na televisão). Assim, não sei se ele acreditava na existência de AMDs em 2002/2003, ou se essa conversa se referia às tais AMDs dos anos 80 (as tais que toda a gente concorda que existiram). A única coisa que posso dizer é que, pelo menos o João Teixeira Lopes (e muito provavelmente o Luis Fazenda, pelos aplausos), em Fevereiro de 2003, não estava convencido da existência das armas.

Filipe Abrantes: "A prova da destruição das mesmas armas seria útil. Mas como provar a destruição de armas?? Que debate mais parvo."

Volto a repetir que o que eu estou a discutir não é a questão "o Iraque tinha AMDs" vs "o Iraque não tinha AMDs"; é a questão "antes da guerra, estava toda a gente convencida que o Iraque tinha AMDs" vs "antes da guerra, havia muita controvérsia sobre se o Iraque teria AMDs" - o Iraque ter ou não, realmente, AMDs é irrelevante para o ponto que estou a levantar.

1 comment:

Anonymous said...

Se a sua questão é a segunda (saber se estava toda a gente convencida em 2003) então tem razão. É irrelevante saber, para isso, se o iraque tinha as armas ou não nessa data.

Aliás, nem eu pretendi dizer que "até o BE" acreditava nisso. Pelo que eu ouvi na altura, percebi que JTLopes e FLouçã acreditavam que o iraque as já tinha tido, mas que as teriam usado e posteriormente destruído. O ponto (para mim) é que não se percebe o convencimento do BE de que o iraque as teria destruído? Baseados em quê?? Em "inspecções" irregulares (e necessariamente, sempre, não exaustivas) da ONU a um país com a dimensão do iraque?? É um debate irrealista. Não se podia saber se as tinham ou não destruído. Esse é o meu ponto.

Daí toda a gente (creio) ter percebido que foi um motivo de fachada (e formalista/legal) usado pela Adm.Bush na altura para justificar a libertação/invasão do iraque.