[o post em si de "RadGeek" não me interessa muito - é esta passagem que me desperta a atenção]
Há algum tempo que eu pensava em escrever algo sobre isto (e fiz uma pequena abordagem ao tema
neste comentário no
Portugal Contemporâneo e
nos comentários a
este post do
CN na
Causa Liberal).
Acho que o "liberalismo-conservadorismo" assenta muito nesta confusão, que associa "liberdade" com "ordem social não planeada", mas são duas coisas distintas. Podemos ter:
Ordens espontâneas e voluntárias. Exemplos: a língua e ortografia inglesas; a linguagem SMS; talvez a
"lei mercantil".
Neste caso, trata-se de instituições que não são impostas (a maior centro difusor da língua inglesa actualmente é um país que nem sequer tem o inglês - ou outra qualquer - como língua oficial) e que evoluem de forma não-planeada.
Ordens espontâneas e impostas. Exemplos: o mapa da Europa; a "common law" inglesa; a autoridade dos pais sobre os filhos menores.
Estas instituições desenvolveram-se de forma não planeada, mas coerciva: as fronteiras europeias são o resultado de uma série de acidentes históricos, durante séculos e, ao mesmo tempo foram impostas e são mantidas pela força; a "common law" baseia-se nos precedentes (e não num código legal com 500 artigos) e é feita cumprir pela autoridade do Estado; a autoridade paternal também deve ter aparecido de forma espontânea e, em ultima instância, também é mantida pela força (se um menor fugir de casa, a policia pode ir buscá-lo).
Grande parte dos chamados "hábitos bárbaros" - escravatura, canibalismo não-consentido, crimes de honra, excisão feminina, casamentos à força, "direito de pernada" (se alguma vez tiver existido), sacrifício das raparigas da aldeia no vulcão (idem), etc. - pertencem a esta categoria.
E,
se considerarmos o Estado como uma instituição espontânea, pertencerá também a esta categoria.
Ordens construidas e voluntárias. Exemplos: os standards da Internet; a terminologia cientifica (grande parte); as regras do futebol federado; o esperanto; moedas locais como o
"hour".
Aqui temos normas, instituições, etc. que são criadas de propósito (não emergem por acaso) mas que ninguém (isto é, além das pessoas que as criam voluntariamente) é obrigado a seguir: os standards da net são definidos por organizações como o
W3C, mas ninguém é obrigado a usar esses standards; muita terminologia cientifica é decidida por organizações internacionais de cientistas (penso que os anidridos carbónico e sulfúrico não passaram a dióxido de carbono e trióxido de enxofre nem o OH2 passou a H2O por "evolução natural e espontânea", mas porque a sociedade internacional de química assim decidiu), mas acho que essas organizações não têm poder para obrigar terceiros a usar a sua nomenclatura; as regras do futebol são decididas pelas federações, mas ninguém é obrigado a seguir essas regras num jogo na praia; o esperanto é uma língua totalmente construida, mas ninguém é obrigado a usá-la (muito pelo contrário - houve muitas perseguições aos esperantistas); as "moedas locais",
LETS e afins (e as suas regras de funcionamento) são criados de forma intencional e planeada, mas o seu uso é voluntário.
Creio que as "ordens construidas voluntárias" tendem a ser mais bem sucedidas em situações em que há
economias de rede, isto é, em que cada individuo tem interesse em fazer o mesmo que os outros - usar a mesma terminologia, software compatível, a mesma moeda, etc. (isso não quer dizer que sejam necessariamente bem-sucedidas nessas situações: veja-se o fracasso do esperanto); como há interesse de cada um em fazer o que os outros fazem, as decisões de uma associações voluntária que sejam aceites pela maioria dos envolvidos acabam por ser seguidas por quase toda a gente; e, ao contrário das "ordens espontâneas voluntárias", tem menos problemas de "dependência de caminho" (situações em que grande parte dos indivíduos até quereriam adoptar uma nova regra, mas nenhum faz isso... porque os outros também não fazem).
[Acho que a maior parte dos exemplos de "
livre entendimento" dados por Kropotkine n'
A Conquista do Pão pertencem a esta categoria]
Ordens construidas e coercivas. Exemplos: papel-moeda estatal; ortografia portuguesa (tanto a de 1911 como a do Acordo Ortográfico)
Aqui temos um plano racionalmente construido e imposto pela força.
Reparo agora que gastei muito mais espaço a expor as ordens "espontânea coerciva" e "construida voluntária" do que as "espontânea voluntária" e "construida coerciva"; possivelmente porque haveria pouco a dizer destas últimas, já que a dicotomia "ordem espontânea voluntária" vs "ordem construida coerciva" já foi discutida "n" vezes, e, de qualquer forma, o objectivo deste post é, exactamente, criticar essa dicotomia (propondo uma tetratomia no seu lugar).
Pois, mas qual é o interesse desta divagação "filosófica"? Além de, pura e simplesmente, me ter apetecido, acho que há uma grande tendência para misturar a questão "espontâneo vs. construido" com a questão "voluntário vs. coercivo"; nomeadamente (limitando-me à blogosfera), dá-me a impressão que nas posições de
Luis Pedro Machado sobre
o acordo ortográfico, de
João Miranda sobre
a hora de verão ou do CN (entre muitos) sobre
o padrão-ouro há algo dessa tendência para associar "construido" a "coercivo" e "espontâneo" a "livre" (quando, em minha opinião, é tão coercivo o estado impor os "construidos" Acordo Ortográfico, a hora de verão ou o papel-moeda como é/seria impor a ortografia de 1911, uma hora que não mudasse ou o padrão-ouro).