A respeito da questão sobre se o liberalismo é melhor classificado na direita ou na esquerda, eu (na minha condição de esquerdista não-liberal) diria que é um pouco como a questão sobre se Lisboa fica a sul ou a norte; para mim fica a norte (e mesmo há uns dias, ouvi alguém dizer "lá para cima..." - referindo-se a Setúbal), mas já vi muita gente referindo-se a Lisboa como "o Sul" (há uns anos, o João Pereira Coutinho escreveu um artigo dizendo que uma das diferenças entre o Norte e o Sul era que no Porto bebia-se água da garrafa e em Lisboa da torneira; quando no Algarve até há pouco tempo era muito raro beber-se água da torneira - muito calcário, e com sabor) - no fundo, a classificação de Lisboa como estando "a norte" ou "a sul" depende de com o que a comparmos: está a norte de Portimão e a sul do Bombarral, p.ex.
Da mesma forma, a classificação do liberalismo como "esquerda" ou "direita" depende de com que tipo de sociedade ele for comparado.
Para já, algumas tentativas de definição:
"Esquerda" - Convicção que as desigualdades sociais são injustas e artificiais
"Direita" - Convicção que as desigualdades sociais são justas e naturais
"Liberalismo" - Convicção que a função do Estado deve ser limitada à protecção da liberdade pessoal e da propriedade legitimamente adquirida
Portanto, se o liberal viver numa sociedade em que a intervenção do Estado seja no sentido de aumentar as desigualdades, tenderá a ser de "esquerda" (ok, ele não achará que "as desigualdades sociais são injustas e artificiais", mas achará que "muitas das desigualdades sociais actualmente existentes são injustas e artificiais", conduzindo a um posicionamento para aí no centro-esquerda).
Por outro lado, se viver numa sociedade em que a intervenção do Estado for no sentido de reduzir as desigualdades, ele tenderá a ser de "direita".
Dando exemplos: numa sociedade em que o imperador cobre tributos aos camponeses e artesãos para sustentar o seu séquito de aristocratas e sacerdotes, o liberalismo ficará na esquerda, contra a direita "imperial-aristocratico-sacerdotista"; numa sociedade em que o Estado cobre impostos progressivos para sustentar serviços públicos universais e/ou subsídios aos "desfavorecidos", o liberalismo será de direita, e talvez até haja tentativas de criar um liberalismo imperial-aristocrático-sacerdotista ou um imperial-aristocrático-sacerdotismo liberal.
No geral, eu diria que se metêssemos um liberal numa máquina do tempo programada para um destino aleatório algures na história humana passada (atenção que não estou incluindo nem a pré-história nem a proto-história), o mais provável era que ele acabasse na esquerda, e muito provavelmente acabaria fazendo causa comum com algum socialista que também tivesse ido na viagem (da mesma forma que imagino que um liberal ou um socialista assistindo a filmes como Spartacus ou O Facho e a Flecha "torçam" sem problemas pelo mesmo lado); mas, no momento presente e no chamado "mundo ocidental", um liberal será provavelmente de direita.
Monday, August 13, 2012
Esquerda, direita e liberalismo
Publicada por Miguel Madeira em 01:09
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2 comments:
Com tanto 'analista' é bom haver alguém com boa capacidade de síntese.
Relativamente à definição de esquerda que apresentas, ela não exclui implicitamente a noção de propriedade privada?
Eu tenho dúvidas se o individual se pode posicionar no centro-esquerda ou se mantém um acordo mais ou menos tácito com a esquerda em períodos ou contextos em que tal o beneficiaria.
Mais questões que afirmações.
"Relativamente à definição de esquerda que apresentas, ela não exclui implicitamente a noção de propriedade privada?"
Não; imagine-se alguém que defende a abolição dos privilégios feudais e senhoriais; ou a abolição de monopólios comerciais outurgados a companhias priviligiadas pelo poder; ou alguém que ache que os grande latifundiários receberem, em ultima instâncias, as suas terras por concessão do estado, e portanto os camponeses sem terra têm o direito de as ocuparem e dividirem entre eles.
Nesses casos, é possivel ser-se simultaneamente um defensor da propriedade privada e achar que pelo menos parte das desigualdades são artificiais e injustas (no fundo, durante grande parte do século XIX, era mais ou menos isto o que significava "ser de esquerda").
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