Samuel de Paiva Pires argumento que o socialismo é impossível epistologicamente:
Uma economia socialista, ao acabar com o sistema de preços, impossibilita o processo que permite tornar explícito o conhecimento prático disperso, visto que os preços incorporam um conhecimento holístico, sistémico, “desconhecido e incognoscível por qualquer um dos elementos do sistema do mercado, mas dado a todos estes através da operação do próprio mercado”. Não existe qualquer outra forma de organização da economia que consiga rivalizar com o mercado enquanto gerador de conhecimento, já que é o único mecanismo que consegue utilizar eficazmente o conhecimento prático disperso tornando-o holístico – e é este conhecimento que é destruído quando se tenta planear ou corrigir os processos de funcionamento do mercado.A respeito da parte do "acabar com o sistema de preços", creio que apenas duas ou três facções socialistas pretendem acabar com os preços (e substitui-los por um sistema de "racionamento igualitário para o que for escasso e «tira o que quiseres» para o que não for") - à primeira, só me ocorre os anarco-comunistas (atenção - não confundir com os anarco-colectivistas e os anarco-mutualistas) e e a facção do Socialist Party of Great Britain / Movimento Socialista Mundial; quase todas as outras, mesmo que não lhes chamem "preços" ou "dinheiro", acabam na prática por preconizar (pelo menos a curto/médio prazo) um sistema com preços e dinheiro. Imagino que o argumento do SPP seja a que ter preços sem um mercado para os estabelecer continua a ser, de certa forma, não ter um verdadeiro "sistema de preços" (note-se que há tendências socialistas que pretendem combinar a colectivização dos meios de produção com a manutenção do mercado, mas admito que entrar por aí seria muito um exercício de "splitting hairs").
Mas em contraponto, vou agora postar um texto do comunista de conselhos Helmut Wagner (ou, mais exactamente, um excerto de um texto - trata-se de passagens do O Anarquismo e a Revolução Espanhola, um texto de 1937 dedicado a criticar a politica dos anarquistas espanhóis a partir do ponto de vista conselhista; no entanto, as passagens que vou postar mal referem esse assunto):
Suponhamos que os operários das principais zonas industriais, por exemplo, da Europa, tomam o poder e esmagam, assim, praticamente, o poder militar da burguesia. A ameaça exterior mais grave para a revolução estaria assim afastada. Mas como deveriam os operários, enquanto proprietários colectivos das oficinas, recolocar a produção em marcha a fim de satisfazerem as necessidades da sociedade? Para isso, há necessidade de matérias-primas; mas donde vem elas? Uma vez o produto fabricado, para onde deve ser enviado? E quem tem dele necessidade?E onde é que eu quer chegar com esta citação? É que já temos aqui um exemplo de um sistema não-capitalista e não-mercantil que me parece mais ou menos capaz de unificar o "conhecimento prático disperso" - p.ex., quando as comissões de trabalhadores da pesca estimam o custo médio de produção de 1 kg de sardinhas (usando o seu conhecimento técnico sobre a sua indústria e mais a informação fornecida pelas comissões de trabalhadores dos estaleiros, dos combustíveis, etc., sobre o custo dos consumos intermédios) estão também a pegar em conhecimentos tácitos descentralizados e a traduzi-los num valor conhecível por toda a sociedade. E note-se que o sistema proposto aqui por Helmut Wagner é, com mais ou menos cambiantes, mais ou menos idêntico aos sistemas propostos por quase todos os críticos "pela esquerda" do comunismo soviético (todos eles andam à volta da "substituição do aparelho burocrático do Estado pela planificação democrática da economia pelos Conselhos Operários", mais coisa, menos coisa).
Não se poderia resolver nenhum desses problemas se cada fábrica funcionasse isoladamente. As matérias-primas destinadas às fábricas vêm de todas as partes do Mundo inteiro. Como irão os operários saber onde procurar as matérias-primas? Como encontrarão os consumidores para os seus produtos? Os produtos não podem ser fabricados ao acaso. Os operários não podem entregar produtos e matérias-primas sem saberem se ambos serão utilizados de modo apropriado. Para que a vida económica não pare imediatamente, é preciso utilizar um método para organizar a circulação das mercadorias.
É aí que reside a dificuldade. No capitalismo, esta tarefa é executada pelo mercado livre e através do dinheiro. No mercado, os capitalistas, enquanto que proprietários dos produtos, enfrentam-se; é aí que são determinadas as necessidades da sociedade: o dinheiro é a medida dessas necessidades. Os preços exprimem o valor aproximado dos produtos. No comunismo, essas formas económicas, que deveriam e estão ligadas à propriedade privada, desaparecerão. A questão que se coloca é pois: como se deve fixar, determinar sob o comunismo as necessidades da sociedade? (...)
É agora claro, que as necessidades reais das massas não podem ser determinadas por alguma espécie de aparelho burocrático, mas pelos próprios operários. A primeira pergunta que esta constatação levanta é, não a de saber se os operários são capazes de realizar esta tarefa, mas quem dispõe dos produtos da sociedade. Se se permite a um aparelho burocrático determinar as necessidades das massas, criar-se-á um novo instrumento de dominação da classe operária. Eis porque é essencial que os operários se unam em cooperativas de consumidores e criem assim o organismo que exprimirá as suas necessidades. O mesmo princípio vale para as fábricas; os operários, unidos nas organizações de fábrica, estabelecem a quantidade de matérias-primas de que têm necessidade para os produtos que devem fabricar. Não existe pois senão um meio, no comunismo, para estabelecer as necessidades das massas: a organização dos produtores e dos consumidores em conselhos de fábrica e conselhos de consumidores.
Contudo, não basta aos operários saber de que têm necessidade para a sua subsistência, nem às oficinas de conhecer a quantidade necessária de matérias-primas. As fábricas trocam os seus produtos; estes devem passar por diferentes fases, por várias fábricas, antes de entrarem na esfera do consumo. Para tornar possível esse processo, é necessário, não somente estabelecer quantidades, como também geri-las. Assim chegamos à segunda parte do mecanismo que deve substituir o mercado livre; quer dizer, a "contabilidade" social geral. Esta contabilidade deve incluir a situação de cada fábrica e conselho de consumidores, para dar um quadro claro que permita ter um conhecimento completo das necessidades e possibilidades da sociedade.
Se se não pode reunir e centralizar esses dados, então toda a produção será mergulhada no caos quando for abolida a propriedade privada e, como ela, o mercado livre. Apenas a organização da produção e da distribuição pelos conselhos de produtores e consumidores, e o estabelecimento de uma contabilidade centralizada permitirão abolir o mercado livre. (...)
O comunismo regula a produção segundo as necessidades das grandes massas. O problema do consumo individual e da repartição das matérias-primas e dos produtos semi-acabados entre as diversas empresas não pode ser resolvido graças ao dinheiro, como no sistema capitalista. O dinheiro é a expressão de certas relações de propriedade privada. O dinheiro assegura ao seu possuidor uma certa parte do produto social. Isto é tão válido para os indivíduos como para as empresas. Não existe propriedade privada dos meios de produção no comunismo; contudo cada indivíduo terá direito a uma certa parte da riqueza social para seu consumo, e cada fábrica deverá poder dispor das matérias primas e meios de produção necessários. Como deve isso ser feito? (...) Nós vemos aí um problema muito importante para a revolução proletária. Se os operários simplesmente se fiassem num "serviço estatístico" para determinarem a sua parte, criariam assim um poder que já não poderiam controlar.
Abordamos aqui a seguinte questão: como será possível unir ou acordar esses dois princípios que parecem à primeira vista contraditórios, a saber: todo o poder aos operários, o que implica um federalismo (concentrado) e a planificação da economia, que conduz a uma extrema centralização? Apenas poderemos resolver esse paradoxo se considerarmos os fundamentos reais da produção social na sua totalidade. Os trabalhadores apenas dão à sociedade a sua força de trabalho. Numa sociedade sem exploração, como a comunista, o único padrão para determinar o consumo individual será a força de trabalho fornecida por cada um à sociedade.
No processo de produção, as matérias primas estão convertidas em bens de consumo pela força de trabalho que se lhe acrescenta.
Um serviço estatístico seria completamente incapaz de determinar a quantidade de trabalho incorporada num dado produto. O produto passou por múltiplos estádios, isto é, um número imenso de máquinas, ferramentas, matérias-primas, e produtos semi-acabados serviram para sua fabricação. Se é possível a um serviço estatístico central reunir todos os dados necessários num quadro claro, compreendendo todos os níveis do processo de produção, as empresas ou as fábricas estão melhor colocadas para determinar a quantidade de trabalho cristalizado nos produtos acabados, calculando os tempos de trabalho incluídos nas matérias primas e o necessário à produção de novos produtos. A partir do momento em que todas as empresas estão ligadas entre si no processo produtivo, é fácil a uma delas determinar a quantidade total de tempo de trabalho necessário para um produto acabado, baseando-se nos dados disponíveis. Melhor ainda, é mais fácil calcular o tempo de trabalho social médio dividindo a quantidade de tempo de trabalho empregue pela quantidade de produtos. Esta média representa o factor final determinante para o consumidor. Para ter direito a um objecto de uso corrente, ele deverá simplesmente provar que deu à sociedade, sob uma forma diferente, a quantidade de tempo de trabalho cristalizado no objecto que deseja. Assim se encontra suprimida a exploração. Cada um recebe o que deu, cada um dá o que recebeu: isto é a mesma quantidade de tempo de trabalho social médio. Na sociedade comunista não há lugar para um serviço central de estatística, tendo o poder de estabelecer "a parte" atribuível às diferentes categorias de assalariados.
O consumo de cada trabalhador não é determinado "de cima"; cada um determina, pelo seu trabalho, quanto pode pedir à sociedade. Não há outra escolha na sociedade comunista, pelo menos durante o primeiro estádio. Os serviços estatísticos apenas podem servir para fins administrativos. Esses serviços podem, por exemplo, calcular os valores sociais médios de acordo com os dados obtidos nas fábricas; mas eles são empresas como as outras. Não detêm privilégios. É absurdo imaginar que uma sociedade comunista poderia tolerar um serviço central dotado de poder executivo; com efeito, em tais condições, apenas pode existir a exploração, opressão e capitalismo.
[Uma nota final - há uns anos, no contexto de uma discussão nos comentários d'O Insurgente, o BrainstormZ perguntou-me « como conseguem os “Conselhos Operários” fazer o cálculo económico dada a “propriedade estatal dos meios de produção”»; eu há muito que penso em fazer uma série de posts sobre o assunto - com a ressalva que as minhas simpatias, actualmente, vão mais para o lado dos anarquistas do que para o dos comunistas de conselhos, trotskystas e similares, logo seria em parte desenvolver argumentos que não são exactamente os meus; eu duvido que alguma vez ganhe energia para escrever essa série de posts, mas se alguma vez essa série vir a luz do dia, será uma espécie de versão revista e aumentada deste]
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]