Monday, February 27, 2006

George Orwell, social-democrata?

Por vezes leio textos do estilo "George Orwell era um esquerdista, mas desiludiu-se com a Guerra de Espanha". A última vez foi nos comentários a este post do Insurgente (blog que, aliás, assinala hoje um ano de actividade).

Ora, foi exactamente ao contrário: antes da Guerra de Espanha, Orwell tinha grandes objecções ao socialismo. Veja-se estas passagens de "O Vil Metal", publicado em 1936:

"Gordon e os amigos divertiam-se com a suas «ideias subversivas». Durante um ano inteiro, publicaram um folha mensal (...) denominada Bolshevik (...). Advogava o socialismo, o amor livre, o desmembramento do Império Britânico, a abolição do exército e marinha, e assim sucessivamente (...). Todos os rapazes de dezasseis anos inteligentes são socialistas. Nessa idade, não se descortina o anzol dissimulado no suculento isco" [bold meu]

Mais à frente (já com Gordon Comstock - o protagonista - adulto):

"- É altura de começar a ler Marx, Gordon - disse Ravelston
- Preferia ler Mr. Humphry Ward.
- Mas não vê que assume uma atitude irrazoável? Está sempre a lançar remoques contra o capitalismo e, por outro lado, recusa-se a aceitar a única alternativa posível. Não se podem endireitar as coisas num meio-termo. Ou se aceita o capitalismo ou o socialismo. Não há que fugir disso disto.
- Já disse que não quero perder tempo com o socialismo. A simples ideia provoca-me sono.
- Em que baseia a suas objecções?
- Só existe uma objecção ao socialismo: ninguém o quer.
- Que posição tão absurda!
- Isto é, ninguém que compreenda o seu verdadeiro significado.
- A que significado se refere?
- Bem, a uma espécie de Bravo Novo Mundo, de Aldous Huxley, mas menos divertido. Quatro horas por dia numa fábrica-modelo, a apertar a porca número seis mil e três. Rações servidas em papel-vegetal na cozinha comunal. Caminhadas comunitárias do Lar Marx ao Lar Leninn e regresso. Clínicas para prática livre do aborto em todos os cantos. tudo muito aceitável à sua maneira, claro. Só que nós não o queremos."

Claro que estas frases não são de Orwell, mas da sua criação "Gordon Comstock", mas é legitimo assumir que um autor imprime grande parte do seu próprio pensamento no pensamento do personagem principal (e a parte do anzol é do narrador, não de Gordon).

Agora, umas passagens de "Homenagem à Catalunha", livro publicado após a sua participação na Guerra Civil de Espanha (nas milicias do Partido Operário de Unificação Marxista):

"[A]té essa altura o sistema das milícias permaneceu intacto. o ponto essencial era a igualdade social entre oficiais e soldados. Todos, do general ao soldado raso, recebiam o mesmo soldo, comiam a mesma comida, vestiam a mesma roupa e relacionavam-se em termos de completa igualdade. Se um tipo resolvia dar uma palmada no ombro do general (...) e pedir-lhe um cigarro, podia fazê-lo à vontade, que ninguém estranhava. Teoricamente, pelo menos, cada milícia era uma democracia e não uma hierarquia (...). Claro que não existia perfeita igualdade, mas eu nunca vira nada que mais se lhe assemelhasse ou que me parecesse concebível em tempo de guerra".

"Admito, no entanto, que, à primeira vista, o estado de coisas na frente me horrorizou. como diabo se poderia ganhar uma guerra com um exército daquele tipo? (...) Na prática, o tipo democrático «revolucionário» de disciplina dá melhores resultados do que seria de esperar. num exército de trabalhadores, a disciplina é, teoricamente, voluntária (...), ao passo que a disciplina de um exército burguês (...) se baseia, em última análise, no medo. Nas milícias não se tolerariam nem por um instante as intimidações (...) correntes num exército comum (...). não se castigava imediatamente um homem quando ele se recusava a cumprir uma ordem; primeiro apelava-se para ele em nome da camaradagem. As pessoas cépticas (...) dirão, acto continuo, que tal método jamais pode «dar resultado», mas a verdade é que, bem vistas as coisas, «dá resultado»"

Uns capitulos depois:

"Por isso, quando os meus camaradas mais politizados me diziam (...) que a escolha tinha que se fazer entre a revolução e o fascismo, ria-me deles. De modo geral, aceitava o ponto de vista comunista, que se resumia mais ou menos nos seguinte: «Não podemos falar de revolução enquanto não ganharmos a guerra». E não aceitava o pnto de vista do POUM, que equivalia a dizer: «Temos de seguir para frente [com a revolução], pois de contrário voltaremos para trás». (...) [M]ais tarde, cheguei à conclusão que o POUM tinha razão, ou, pelo menos, tinha mais razão que os comunistas"

E também:

"Eu tinha ido parar, mais ou menos por acaso, à unica comunidade da Europa Ocidental onde a consciência politica e a descrença no capitalismo eram mais normais que o oposto. Ali, em Aragão, econtravamo-nos entre dezenas de milhares de pessoas (...) vivendo todas elas ao mesmo nível e lidando entre si em termos de igualdade. Em teoria, era uma igualdade perfeita, e até mesmo na prática não andava muito longe disso. Em certo sentido, seria verdade dizer que estávamos a ter um antegosto do socialismo (...). A comum divisão de classes também desaparecera (...): ali só estavam os camponeses e nós, e ninguém era patrão de ninguém (...). O efeito que tudo isso teve em mim foi tornar mais real, mais autêntico, o meu desejo de ver o socialismo implantado". [bold meu]

Depois de regressar de Espanha, Orwell (que até então não tinha pertencido a nenhum partido) ingressou no Independent Labour Party (o "partido irmão" do POUM), na altura um partido bastante à esquerda.

Ou seja, não me parece que Orwell se tenha "desiludido" com o socialismo em Espanha (muito pelo contrário). Deslidui-se (se é que alguma vez se chegou a iludir) com o PC, isso sim (nomeadamente, Orwell passou a considerar o PC e a URSS como uma "força contra-revolucionária").

Esse anti-Comunismo(-com-C-grande) foi a inspiração para as suas obras-primas (O Triunfo dos Porcos e 1984), mas não é por um socialista ser anti-URSS que passa a ser um "social-democrata": esses livros são, em larga medida, criticas pela esquerda ao regime de Moscovo. Uma analogia: há muitos liberais que acham que Bush é muito despesista; por acharem isso significam que passaram a ser "liberais-moderados"? Penso que não (muito pelo contrário).

Sunday, February 26, 2006

Dúvida técnica

Quando, no Blogger, temos um rascunho antigo, há alguma maneira de, quando finalmente o publicamos, ele ir para o topo do blog em vez de ficar lá "em baixo" (junto aos posts escritos na mesma altura se começou a fazer o rascunho)?

A imputabilidade criminal dos jovens

A respeito do homicidio de um transexual por adolescentes, já aparecem algumas vozes com a conversa de "aos 14 anos já sabem o que fazem" (ver comentários a este post de VPV), "deviam ser punidos como adultos", etc.

Ora, gostava de ver as pessoas que dizem isso defenderem que os adolescentes atingissem a maioridade aos 14 anos, com todos os direitos implicitos (votar, não estarem sujeitos à tutela dos pais, etc.). Afinal, a lógica é exactamente a mesma - se se considera que "já sabem o que fazem" para umas coisas, "já sabem o que fazem para tudo", não é?

Mas, curiosamente, dá-me a impressão que essas pessoas são exactamente as mesmas que fazem grandes discursos contra a "rebaldaria", que reclamam que "os pais e a escola já não têm mão nos jovens", que defendem os V-chips para os pais poderem controlar o que os filhos vêem na televisão, que são contra os jovens terem consultas de planeamento familiar sem autorização dos pais, etc. Afinal, em que é que ficamos?

Saturday, February 25, 2006

O CDS e a biografia de Afonso Henriques

Ontem, na Assembleia da República, o deputado do CDS Nuno Melo, ao criticar a posição de Freitas do Amaral na questãos das caricaturas, disse que Freitas devia ter-se esquecido do livro que escreveu sobre Afonso Henriques, "aonde os mouros eram os vilões".

Claramente Nuno Melo não leu o livro. Por exemplo, no episódio referente à tomada de Lisboa, a descrição de Freitas é, basicamente, a dos portugueses e mouros a tentarem negociar uma saida pacífica e os cruzados (i.e., os estrangeiros aliados aos portugueses) a boicotarem as negociações.

Além disso, Freitas várias vezes argumenta que, quando Afonso Henriques foi demasiado guerreiro contra os mouros, isso enfraqueceu militarmente Portugal e pôs a independência em perigo (já que precisou de pedir ajuda ao rei de Leão).

Ou seja, o livro de Freitas (com um certo exagero meu, claro) até segue uma linha quase de defesa da "amizade luso-árabe".

Como já disse, acho o comunicado de Freitas uma parvoice, mas este género de crítica não faz qualquer sentido.

Uma nota final: se fossêmos fazer o exercício sem sentido de aplicar os conceitos actuais aos tempos de D. Afonso Henriques, se calhar os "mouros" seriam os "bons" e nós e os espanhóis os "agressores" - afinal, nós é que estávamos a "invadir" territórios que estavam há séculos na posse deles (bem, como penso que a maioria dos habitantes do "al-Andalous" era cristã, talvez se possa argumentar que era uma "guerra de libertação" dos "povos oprimidos").

Friday, February 24, 2006

Faz sentido haver "crimes de ódio"?

Acerca da polémica (ver aqui e aqui) se faz sentido o conceito de "crime de ódio" (ou seja, se crimes como assassinios, agressões, etc. devem ser agravados se forem por motivados por razões de racismo, orientação sexual, etc.), poderá haver um bom argumento a favor: uma pessoa que assassina alguém por, p.ex., não gostar de negros pode ser mais perigosa que outra que assassine, p.ex., para receber uma herança (note-se que não estou a fazer um juizo moral): à partida, é muito mais provável que a primeira repita o crime do que a segunda.

Ora, se assumirmos que as pessoas que matam/agridem/etc. motivadas apenas por "ódio" serão mais propensas a cometer esses crimes, faz sentido que tenham penas mais pesadas, por duas razões (ou uma e meia): em primeiro lugar, se a propensão dessas pessoas para o crime for maior, será necessário uma pena mais pesada para as dissuadir; em segundo lugar, há muita gente que justifica a prisão, não tanto como "punição", mas como "prevenção" ("enquanto lá está, não faz mal a ninguém") - ora, se aceitarmos a teoria "prevencionista" da prisão, fará sentido que os criminosos potencialmente mais perigosos fiquem mais tempo detidos.

Porque é que eu digo "uma razão e meia" em vez de "duas"? Porque eu, pessoalmente, tenho grandes dúvidas se devem existir prisões (e a segunda razão está dependente dum sistema punitivo assente na prisão), mas, existindo, poderá fazer sentido que os "criminosos de ódio" fiquem mais tempo presos.

Thursday, February 23, 2006

Reagan e a prosperidade americana

Luciano Amaral, no seu artigo no DN, "O cisma económico" (também citado aqui), repete a tese que a presente prosperidade norte-americana foi "inaugurada pelas reformas económicas de Reagan há 25 anos".

Olhe-se para este gráfico, extraido de uma publicação[pdf] do FED de Nova Iorque, representado a taxa de crescimento da produtividade nos EUA nas últimas décadas:


E eu pergunto, aonde é que Reagan (81-88) inaugurou alguma prosperidade por aí além? A taxa de crescimento da produtividade (a variável que, a longo prazo, determina a prosperidade de um país) não me parece ter sido significativamente maior no seu mandato no que no periodo anterior. Só nos anos 90 é que a produtividade começou a crescer de forma continuada (e o próprio Luciano Amaral implicitamente diz isso, quando fala "do crescimento da economia americana nos últimos dez a 15 anos"). Assim, se fossemos atribuir a "prosperidade americana" a um presidente, faria mais sentido a Clinton ou a Bush pai (ou, mais provavelmente, a circunstâncias alheias à politica).

Já agora, no seu artigo, Luciano Amaral comete o que penso ser uma incorrecção, quando argumenta que a poupança norte-americana não será tão baixa como parece, porque "a poupança na sociedade americana é muito significativa, só que feita de forma não convencional, através da aquisição de activos, como acções bolsistas ou casas novas"; ora, creio que nas estatisticas económicas a compra de habitação não é considerada "consumo" mas sim "investimento" (e tenho certeza quase absoluta que a compra de acções não é considerada "consumo"). Assim, como essas despesas (casas e acções) não são, estatisticamente, consideradas como "consumo", não faz sentido dizer que a poupança passa despercebida por ser feita "de forma não convencional" - essa poupança, apesar de "não convencional", já é contabilizada como "poupança", não como "consumo" (p.ex, se os habitantes de um país aplicassem 5% do seu rendimento em depósitos bancários, 10% em acções, 15% em compra de casa e gastassem 70%, as estatisticas já iriam revelar uma poupança de 30%, não de 5%).

Não que eu ache que a baixa poupança seja uma fragilidade da economia norte-americana, por duas razões: por um lado, um país com baixa poupança pode sempre recorrer à poupança estrangeira para financiar o seu investimento (p.ex., através de empréstimos); por outro, a importância da acumulação de capital (e, portanto, da poupança) para o crescimento económico é relativamente reduzido, comparado, p.ex., com o progresso técnico-cientifico ou o grau de qualificação da mão-de-obra.

Tuesday, February 21, 2006

Deverei entrar em pânico?

Hoje, ao sair do trabalho, vi um melro morto.

As "aulas de substituição"

A respeito da greve dos professores às aulas de substituição, ocorre-me que essas "aulas" são uma "loose-loose situation" (isto é, uma situação em que todos ficam a perder).

Para começar, convém explicar em que consistem essas "aulas" (se eu não conhecesse muitos professores, se calhar não sabia o que eram): ao contrário do que o nome indica, não são propriamente "aulas de substituição", isto é, não é uma situação em que quando, digamos, o professor de matemática falta, vai outro professor dar a aula em lugar dele. Não: o que se passa é que quando um professor falta, chama-se outro professor (de qualquer matéria - aliás, penso que os professores para a "substituição" já estão previamente escalados: cada professor já sabe que, a certa hora, está de plantão para "substituir" qualquer "furo" que apareça), de qualquer matéria, apenas para manter os alunos ocupados nessa hora (normalmente, inventando umas actividades quaisquer). No fundo, os professores vão desempenhar o mesmo papel que as "continuas" desempenhavam no tempo que a minha mãe andava no liceu: quando um professor faltava, as alunas iam para uma sala, aonde, durante essa hora, a "continua" ficava a tomar conta delas (cruzando os testemunhos da minha mãe com os do meu pai, acho que tal só acontecia nos liceus femininos).

Ora, isso é uma situação que só traz prejuizos para toda a gente: os professores ficam a perder, porque essas horas não são contadas como horário lectivo, logo passam a trabalhar mais pelo mesmo ordenado. E os alunos perdem essa hora de liberdade (os leitores na casa dos trinta devem lembrar-se do entusiasmo que havia quando soava o "segundo toque" sem o professor aparecer) sem qualquer beneficio em termos de aprenderem matéria.

Aliás, é curioso que essa questão praticamante só tenha sido debatida na prespectiva dos professores (aquela conversa da componente lectiva, do horário, de como essas aulas devem ser pagas, etc.) e, que eu saiba, nenhum comentador tenha levantado a questão de essas aulas serem uma restrição inútil da capacidade de desenvolvimento da autonomia dos jovens sem se ganhar nada com isso a nível de aprendizagem.

Monday, February 20, 2006

"O vento levanta poeira"

Ainda a respeito das raízes culturais/civilizacionais da ciência, aproveito para citar algumas passagens do capitulo 18 ("O vento levanta poeira") do livro de Carl Sagan, "Um Mundo Infestado de Demónios" (um dia destes ainda sou preso por desrespeito a direitos de autor):

"Alan Cromer é um professor de física que (...) ficou surpreendido ao descobrir que tantos alunos eram incapazes de compreender os conceitos mais elementares. Na sua obra The Incommon Sense: the Heretical Nature of Science, Cromer sugere que a ciência é díficil por ser nova. Ele afirma que nós (...) só descobrimos o método cientifico há uns séculos (...)."

"Cromer sugere que, se não fosse uma série improvável de eventos históricos, nunca teriamos inventado a ciência"

(...)

"A civilização chinesa inventou os caracteres tipográficos móveis, a pólvora, a bússula magnética, o sismógrafo, (...) e as descrições do firmamento. Os matemáticos indianos inventaram o zero, a chave para a aritmética prática e, por conseguinte, a ciência quantitativa. A civilização asteca desenvolveu um calendário muito melhor que o da civilização europeia (...). Mas nenhuma destas civilizações, afirma Cromer, desenvolveu o método cientifico, investigador e exprimental. Tudo isto [para Cramer] veio da antiga Grécia:"

"«O desenvolvimento do pensamento objectivo por parte dos gregos parece ter exigido um certo número de factores culturais específicos. Em primeiro lugar, havia a assembleia, onde os homens começaram por aprender a persuadir-se uns aos outros por meio de um debate racional. Em segundo lugar, havia uma economia maritima que impedia o isolamento ou o provincianismo. Em terceiro lugar, havia um vasto mundo aonde o grego era falado que podia ser percorrido por viajantes e estudiosos; Em quarto lugar havia uma classe mercantil independente que podia contratar os seus próprios professores. Em quinto lugar, houva a Iliada e a Odisseia, obras -primas literárias que resumem o pensamento racional liberal. Em sexto ligar havia uma religião literária, não dominada poelos sacerdotes sacerdotes. E em sétimo lugar houve a permanencia destes factores durante 1000 anos. O facto de todos estes factores se terem reunido numa grande civilização é absolutamente fortuito e não se repetiu»"

"Estou de acordo com parte desta tese (...)"

"No entanto, julgo que existe uma forte prova em contrário (...), a chamar-nos de há muitos milénios..."

"O pequeno grupo de caçadores segue o trilho das marcas dos cascos e outras pistas. Param durante um momento junto a um renque de árvores. Acocorados, examina os indicios com mais atenção (...) Depressa se põem de acordo quanto aos animais que foram responsáveis, ao seu número, às idades e sexos, se há alguns feridos, à rapidez com que se deslocam, há quanto tempo passaram, (...) se o grupo conseguirá apanhar as presas e (...) quanto tempo levarão. (...) Apesar dos arcos e das flechas venenosas, continuam durante horas a um ritmo de maratona. Quase sempre decifram correctamente a mensagem no solo. Os gnus, antilopes ou ocapias estão onde pensavam e o seu número e estado correspondem ao que previram (...)"

"Esta descrição (...) tem a sua origem no povo !Kung San, do deserto do [Kalahari], n[o] Botswana e na Namibia (...). É possivel que os !Kung S sejam caracteristicos do modo de vida dos caçadores recolectores em que os seres humanos passaram a maior parte do tempo da sua existência (...) Eram tão hábeis a seguir trilhos que as suas proezas nesse dominio se tornaram lendárias e o exército sul-africano os recrutou para seguirem «presas humanas» (...)"

"Como conseguiam eles fazê-lo? Como eram capazes de dizer tanto a partir de um simples olhar? Afirmar que eram óptimos observadores não explica nada. Que faziam na realidade? Eis o que diz o antrópologo Richard Lee:"

"Eles examinavam a forma das depressões. As pegadas de um animal que se desloca rapidamente exibe uma simetria mail alongada. Um animal ligeiramente coxo protege a pata lesionada, assenta menos peso sobre ela e deixa uma pegada mais ténue. Um animal mais pesado deixa uma concavidade mais profunda e mais larga. Estas correlações estão na cabeça dos caçadores."

"Ao longo do dia, as pegadas vão-se tornando menos distintas. As paredes da depressão têm tendência a esboroar-se. A areia arrastada pelo vento acumula-se no fundo da concavidade. Talvez sejam soprados para dentro dela pedaços de folha, raminhos ou erva. Quanto mais se espera, maior é a erosão"

(...)

"Uma manada a galope detesta o calor do Sol. Os animais usarão toda a sombra que conseguirem encontrar. Alterarão a sua rota para aproveitarem a breve sombra de um renque de árvores. Mas o sítio aonde a sombra se encontra depende da hora do dia, pois o Sol desloca-se no céu (...) A partir das curvas que os trilhos descrevem é possível dizer há quanto tempo passaram os animais. Este cálculo será diferente em diferentes estações do ano (...)"

"Em minha opinião, todas estas formidáveis aptidões para seguir pistas são ciência em acção."

(...)

"Será isto realmente ciência? Cada caçador, durante o seu treino, ficará acocorado horas a acompanhar a lenta degradação de uma pegada de antilope? Quando o antropólogo faz esta pergunta, a resposta dada é que os caçadores sempre usaram estes métodos. Durante a sua aprendizagem, observaram os pais e outros caçadores experientes. Aprenderam por imitação. Os principios gerais foram passados de geração em geração. As variações locais - a velocidade do vento e a humidade do solo - são actualizados consoante as necessidades em cada geração, sazonalmente ou dia a dia."

"Mas os cientistas modernos fazem exactamente o mesmo. Cada vez que tentamos avaliar a idade de uma cratera na Lua (...) pelo seu grau de erosão, não realizamos o cálculo a partir do zero. Sacudimos a poeira de um certo artigo científico e lemos os números comprovados que foram postos no papel talvez por uma geração antes. Os físicos não deduzem a partir do zero as equações de Maxwell nem a mecãnica quântica. Tentam compreender os principios e a matemática, observam a sua utilidade, notam como a natureza segue essas leis e afeiçoam-se a estas ciências, fazendo-as suas."

"Porém, alguém teve de descobrir pela primeira vez toda esta técnica para seguir trilhos, talvez algum génio paleolitico ou, mais provavelmente, uma sucessão de génios em tempos e lugares muito distantes uns dos outros. Não existe nenhum vestigio de métodos mágicos na técnica de seguir trilhos dos !Kung - examinando as estrelas na noite anterior ou as entranhas de um animal, lançando dados ou interpretando sonhos (...). Eis uma pergunta especifica, bem definida: em que direcção seguiu a presa e quais as suas caracteristicas? É necessária uma resposta precisa que a magia e a adivinhação não fornecem - ou, pelo menos, não fornecem as vezes necessárias para matar a fome(...)."

"É quase certo que o pensamento cientifico nos acompanhou desde o início. Poemos vê-lo nos chimpanzés (...) quando preparam um junco para enfiar na termiteira a fim de extrair a modesta fonte de proteinas que necessitam."

(...)

"Para se conseguirem alimentos é preciso conhecer as propriedades de muitas plantas, que é indispensável saber distinguir umas das outras. Os botânicos e antropólogos descobriram, repetidas vezes que, por todo o mundo, povos caçadores-recolectores distiguiam as diversas espécies de plantas com a precisão de um taxonomista ocidental. Fizeram mapas mentais do seu território com a precisão de um cartógrafo. Mais uma vez, tudo isso é condição indispensável para a sobrevivência."

"Por conseguinte, é disparatada a afirmação de que (...) o desenvolvimento intelectual dos povos «primitivos» não lhes permite entender a ciência e a tecnologia. Este vestigio de racismo e colonialismo é desmentido pelas actividades quotidianas das pessoas que vivem sem domicio fixo e quase sem bens pessoais, os raros caçadores-recoletores que restam - os guardiões do nosso passado distante."

"Dos critérios de Cromer para o «pensamento objectivo» podemos (...) encontrar nos caçadores-recolectores um debate vigoroso e fundamental, a democracia directa participativa, viagens até paragens distantes, a ausencia de sacerdotes e a persistência destes factores, não durante 1000 anos, mas durante 300 000 ou mais. Segundo estes critérios, os caçadores-recolectores tinham necessariamente de ter ciência. Eu creio que a têm. Ou, antes, que a tinham."

(...)

"Não penso que a ciência seja díficil de ensinar por os homens não estarem preparados para ela, porque surgiu só por acaso, ou porque não temos a capacidade intelectual de a entender. Em vez disso, o enorme entusiasmo com a ciência que vejo em alunos que começam a estudá-la e a lição dos caçadores-recolectores que restam são eloquentes: uma propensão para a ciência está profundamente enraizada dentro de nós, em todas as épocas, lugares e culturas".

Diga-se que eu citar este texto não significa que concorde a 100%. P.ex., se considerássemos que "ciência" implica a procura do "conhecimento apenas pelo conhecimento" (como aprendi em Filosofia, no 10º ano), as técnicas dos caçadores-recolectores não seriam ciência (já que estavam viradas para a aplicação prática). A inexistência de sacerdotes entre os caçadores-recolectores também é duvidosa (haverá grande diferença entre um sacerdote e um xamã ou pajé?). Mas concordo a 98%, para aí.

Já agora, uma citação de T.H. Huxley (o primeiro Huxley famoso), logo no principio do capitulo: "Cada vez que um selvagem segue a presa que vai caçar faz uso de uma memória e de uma exactidão de raciocinio indutivo que, aplicadas a outros domínios, lhe garantiriam um certo renome como homem de ciência... A actividade intelectual de «um bom caçador ou guerreiro» ultrapassa consideravelmente a de um inglês vulgar" (Darwiniana: Essays).

Sunday, February 19, 2006

Bem visto

"Renegade", no Spectrum:

"O facto de um empresário da construção civil ter tentado corromper de maneira tão simples e directa um vereador da CML, é a prova mais que clara que este tipo de coisas são e sempre foram moeda corrente por todo o lado"

Já agora, vamos à ciência

Outro exemplo que demonstra que os "ocidentalócentricos" e os "relativistas culturais" estão errados. Muitos falam da ciência "ocidental" (uns usam o adjectivo para elogiar, outros para denegrir). Ora, a maior partes das ciências, hoje em dia, dependem fortemente da matemática (a quintessencia das "ciências duras" e apresentada por alguns como o extremo da "lógica ocidental").

Agora, alguém tente fazer uma conta relativamente complicada usando a numeração romana ou grega...

Se os indianos não tivessem inventado o sistema de numeração decimal e os árabes não o tivessem trazido para a Europa, queria ver alguém fazer uma conta, p.ex., 3683*12/52. Quanto tempo levaria um romano a fazer essa conta? Bem, com uma máquina de calcular ou uma folha de cálculo até seria rápido, mas aposto que, com uma numeração romana, também teria sido muito mais díficil conceber os algoritmos necessários para uma máquina conseguir fazer contas.

Saturday, February 18, 2006

Será que a palavra "liberdade" só há no "Ocidente"?

No seu texto desta semana do Expresso/Actual, João Carlos Espada defende a tese que a ideia de "liberdade" não será um produto do Iluminismo mas sim uma ideia há muito "distintiva da civilização ocidental". Eu até nem sou dessas pessoas que acham que o mundo só apareceu no século XVIII, pelo que nem discordo muito.

No entanto, já tenho sérias dúvidas face à tese de JCE e de David Hackett Fisher (autor a que ele faz referência) de que "a maior parte das linguas não ocidentais não tinham uma palavra para liberdade" (o que, provavelmente, tem implicita a ideia de que não tinham o conceito de "liberdade"). E há logo uma coisa que me faz duvidar: é referido que a lingua inglesa têm, não uma, mas duas palavras para "liberdade": "liberty" (de origem latina) e "freedom" (de origem germânica). Ora, se o latim e os dialectos germânicos, evoluindo separadamente (e falados por povos que, na altura, tinham pouca ligação entre si) criaram ambos uma palavra para o conceito de "liberdade", seria uma coincidência muito grande que só essas povos tenham criado essa palavra. Por outras palavras, se as linguas que deram origem às modernas linguas ocidentais já tinham a palavra "liberdade" antes sequer de existir uma "civilização ocidental" (que ligação havia entre o Império Romano e as tribos "bárbaras" da Germânia e da Escandinávia?), parece-me muito improvável que só esses povos (e mais um ou outro) tenham criada a palavra (e o conceito). É que se tivesse sido só um povo a inventar a palavra, e a partir daí passado para as outras linguas, sempre se poderia aceitar que era uma especificidade desse povo, mas assim parece-me muito improvável (só existirem duas "culturas" que, separadamente, "criaram" o conceito de "liberdade", e essas duas "culturas" estarem ambas no espaço físico a que, hoje, chamamos "Europa" - não é coincidência a mais?)

Outro exemplo: a palavra russa para "liberdade" ("svoboda") não tem grande semelhança com as palavras latinas ou germãnicas equivalentes, o que quer dizer que a palavra surgiu autonomamente entre os Eslavos. Não é uma coincidência cada vez mais improvável que Latinos, Germanos e Eslavos tenham, separadamente, criado o conceito de "liberdade" e os outros povos não o tenham?

Claro que é dificil verificar se eles estão certos ou errados, porque:

a) Mesmo que eu tivesse meios de ver se as outras linguas têm uma palavra para "liberdade" (e, actuamente, as principais devem ter), é possível que a palavra só tenha surgido por "contágio" ocidental (no entanto, em principio, se a palavra for muito diferente de "freedom" ou "liberdade", é sinal que surgiu por si mesma)

b) É dificil determinar se uma palavra, usada noutro contexto social e politico, significa exactamente o mesmo que uma palavra ocidental. Por exemplo, será que a palavra tuaregue "Imashaghen" significa "livre" ou, antes, significará "senhor" (o argumento de D. H. Fischer e JCE é que na maior parte das culturas não ocidentais, o oposto de "escravo" não era "livre": era o equivalente a "master" ou "senhor ou dono de escravos")?

c) Quase todos os dicionários on-line (como este) , no que respeita a linguas não ocidentais, dão o resultado na ortografia local, o que torna impossível a um leigo ver qual a palavra árabe ou chinesa para "liberdade" - aparece-nos um monte de caracteres incompreensiveis.

No entanto, em árabe, liberdade diz-se "hurriyah" (embora possa ser importada do turco); já a palavra "democratico" ("dimuqrati") soa claramente a "importada".

Em curdo "liberdade" diz-se "azad", em iraniano "azadi". Pelo menos num dialecto afegão também existe a palavra "azadi" (como nesta canção da Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão).

Em turco pode ser "uzrluk" ou "hurriyat" (como "hurriyah" também se usa em árabe, não faço ideia quem importou de quem).

Em filipino (penso que o nome correcto é "tagalo"), liberdade diz-se "kalayaan".

Em cingalês, liberdade diz-se "nidahas".

Em bahasa indonésio, "merdaka".

Mas o que é que interessa esta conversa toda?, poder-se-á perguntar. É que serve para ilustrar um ponto que é partilhado por "ocidentalócentricos", por um lado, e "relativistas culturais", por outro: ambos têm tendência a considerar que certos valores são específicos da "civilização ocidental". P.ex., ambos tendem a achar que a ciencia, a liberdade, etc. são especificamente "ocidentais", e completamente estranhos às outras culturas/civilizações. No fundo, partilham o mesmo "juizo de facto", apenas mudando no "juizo de valor": uns concluem que a "civilização ocidental" é intrinsicamente "superior", enquanto outros concluem que não há valores universais (discordando de ambos, a mim parece-me que a posição relativista é mais coerente).

A minha posição é a oposta: que a Humanidade é, fundamentalmente, a mesma em toda a parte.

Friday, February 17, 2006

Islamitas-marxistas-leninistas (II)?

Continuando a crítica ao texto de Henrique Raposo:

"Esta componente marxista-leninista reforça a condição revolucionária do islamismo. Há que distinguir o qutbista revolucionário do wahhabita. O wahhabita tem "somente" uma agenda social. Pretende dominar apenas a sociedade. É um purista. O verdadeiro fundamentalista. Este, sim, vive na Idade Média. O wahhabismo não é uma religião política. E aqui está a diferença: o islamismo qutbista é precisamente isso: uma religião política. Tal como o leninista, o islamita é senhor de uma doutrina armada, uma ideologia preparada para destruir qualquer oposição à sua verdade. Segue à risca uma máxima de Lenine: «aniquilação impiedosa do inimigo». E quer Estados..."

O wahhabismo não é uma religião politica!? A primeira ou segunda coisa que o pregador Abd'al-Wahhab (o fundador do wahhabismo) fez foi aliar-se ao xeque beduino Mohammed Ibn Saud e dedicar-se a conquistar a Arábia. Uma citação do volume "1774-1812" da "História do Mundo" das Selecções do Readers Digest:

"Abd al-Wahhab refugia-se em Dariyah (perto de Riade), junto do guerreiro Mohammed Ibn Saud. Este chefe tribal ambicioso, sente que chegou a hora de fundar um verdadeiro Estado, congregando a energia belicosa dos beduínos da Peninsula Arábica à volta de um objectivo religioso."

"Em 1745, o guerreiro e o pregador selam uma aliança indefectível. É então proclamada a jihad (...), pedra angular da nova doutrina, contra todos os sunitas «frouxos» e contra os heréticos xiitas, enquanto o movimento, disposto a tudo, inicia eficazmente as suas tropas no manejo das armas de fogo."

(...)

"[A] chefia tribal dos Saud (...) ganha pouco a pouco contornos de monarquia. O poder transmite-se de pai para filho, enquanto Abd al-Wahhab e os seus descendentes desempenham o papel de conselheiros"

(...)

"A morte de Ibn Saud, em 1765, e depois, em 1792, a de Abd al-Wahhab, não travam o movimento: a jihad está lançada (...). O filho de Mohamed Ibn Saud, Abd al-Aziz - que reina de 1765 a 1803 - , conduz com mão de ferro o apostolado wahhabita e a conquista militar. Mau grado uma resistência feroz, a provincia de Hassa sucumbe aos ataques sauditas. Pouco depois, o Qatar depôs as armas (...). Com Saude, dito al-Kabir, «o Grande», as conquistas estendem-se para lá do Nejd. Antes mesmo da morte do pai, este chefe ambicioso consegue várias vitórias de peso: o Hedjaz, o Iémen, o deserto da Síria e o Iraque Meridional submentem-se. Em 1801, Karbala (no Iraque), uma cidade xiita, é pilhada e os seus lugares santos destruídos, enquanto um grande número dos seus habitantes é chachinado. por outro lado, o acesso a Meca - em poder dos Saud desde 1803 - é vedado aos peregrinos vindos da Síria e do Egipto, acusados de não respeitarem os costumes islâmicos durante a pregrinação. De resto, os Wahhabitas não hesitam em depurar as cidades santas, Meca e Medina, de tudo o que não esteja conforme à sua doutrina: as mesquitas são devastadas; os mausoléus, relíquias, decorações murais, tapeçarias, tudo é mutilado, destruídop e queimado. Quanto às pessoas suspeitas de se entregarem à droga ou à bebida, à magia, aos jogos de azar ou à prostituição, são executadas".

Isto não é uma "religião politica"? Não é "uma ideologia preparada para destruir qualquer oposição à sua vontade"?

Se o moderno terrorismo islâmico é muito mais produto do Qutbismo do que do Wahhabismo, será coincidência que a maior parte dos terroristas do 11 de Setembro fossem sauditas (o país de maior influência wahhabita)? Que Bin Laden seja saudita? Que, no Magrebe, os ex-imigrantes na Arábia Saudita sejam dos maiores apoiantes do islamismo radical?

E quanto a Qutb e a "Irmandade Muçulmana" terem-se inspirado no leninismo, consta que também se inspiraram nas tácticas sauditas, e que as milicias que Abd al-Aziz III Ibn Saud (em 1932, primeiro rei da Árabia Saudita) foram o verdadeiro modelo para a "Irmandade " (inclusive no nome: as milicias sauditas eram chamadas "ikhwans" - "falanges","irmandades" - que é também o nome árabe na Irmandade Muçulmana*)

*aliás, há quem prefira traduzir "Ikhwan al-Muslam" (nota: eu não sei se é mesmo assim que se escreve) por "Falanges Muçulmanas" do que por "Irmandade Muçulmana"

Thursday, February 16, 2006

Islamitas-marxistas-leninistas (I)?

Henrique Raposo regressa à sua tese da influência marxista-leninista sobre o fundamentalismo islâmico.

O Aspirina B já refutou grande parte da sua argumentação, mas vou acrescentar mais alguma coisa.

"Nos pontos de contacto entre a antiga URSS e as regiões islâmicas, os métodos revolucionários do comunismo fascinaram intelectuais e líderes muçulmanos. Espantados? Porquê? Se os intelectuais de todo o mundo tinham como meta o esquerdismo radical, por que razão haveria de ser diferente com os intelectuais muçulmanos? (ou, neste ponto, o Orientalismo já interessa? Ou aqui os muçulmanos já são uns burrinhos que não entendem a complexidade do marxismo? Mas por que razão os muçulmanos seriam indiferentes ao marxismo quando todas as elites - sul-americanas, africanas, asiáticas, europeias, etc. - sucumbiram aos encantos da coisa?)"

Ninguém negou tal coisa. Ninguém negou que o marxismo influenciou a FLN argelina, a "União das Forças Populares" em Marrocos, o Movimento dos Nacionalistas Árabes, a "ala esquerda" do Baath sírio, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina, os Mujahedeem do Povo do Irão, a "Revolução de Saur" no Afeganistão, as guerrilhas Mukti Bahimi no Bangladesh, intelectuais avulsos como Samir Amim, Tariq Ali ou até Salman Rushdie, etc. O que se está a discutir é se o fundamentalismo islâmico foi influenciado pelo marxismo, não se a intelectualidade do mundo muçulmano foi influenciada pelo marxismo (uma analogia: os intelectuais portugueses dos anos 60 eram esmagadoramente marxistas - isso implicará que o Movimento Jovem Portugal era de inspiração marxista?!). Há de se reparar que o fundamentalismo islâmico só se tornou um movimento de massas nos anos 80, exactamente quando o marxismo passou de moda (no fundo os fundamentalistas são contemporaneos dos então jovens portugueses que andavam com os autocolantes do Freitas do Amaral - alguma ligação tinha de haver!).

O caso do Irão é significativo, já que havia (e há) efectivamente um movimento "muçulmano de esquerda" (à maneira dos nossos "católicos progressistas"), os Mujahedden do Povo, que, após uma colaboração inicial, foi violentamente reprimido pelo regime de Khomeini (melhor prova do carácter conservador do "khomeinismo"?)

Henrique Raposo refere também que os fundamentalistas foram influenciados pelos métodos de organização leninistas, pela ideia de "vanguarda", etc. Bem, a ser verdade, seriam uma espécie de "leninismo sem marxismo" (o método de organização sem a ideologia). Mas, por essa ordem de ideias até a John Birch Society seria "marxista-leninista", já que há quem diga que a sua organização foi copiada da dos comunistas.

E, indo mais longe, pode-se argumentar que a teoria da organização de Lenin foi, ela própria, inspirada na organização das fábricas "capitalistas". Trotsky, num texto da sua fase anti-leninista, "As nossas tarefas politicas" (que ele - se calhar, infelizmente - viria mais tarde a renegar) defendia essa tese. Logo, seguindo esse raciocinio, o fundamentalismo islâmico seria neto do capitalismo (os métodos de organização capitalista teriam influenciado os métodos de organização leninistas, que teriam influenciado os métodos de organização islamitas...).

Seja como for, pelo que se diz da al-Qaeda, a sua organização parece tudo menos leninista - consta que uma das grandes dificuldades para a combater é, exactamente, que não é uma organização... organizada (passe o pleonasmo), à maneira leninista, mas mais uma rede de contactos informais entre grupos dispersos.

Quanto ao argumento de que não se conhecem actos de terrorismo islâmico anteriores aos anos 70, embora não seja integralmente verdadeiro (os Irmãos Muçulmanos do Egipto há muito que estavam ligados a atentados contra politicos egipcios), não tem nada de especial: como eu disse, o fundamentalismo só se tornou uma força relevante nos anos 80.

Finalmente, basta ler textos escritos por esquerdistas em países islâmicos, narrando acontecimentos, p.ex. dos anos 60 ou 70, para ver que, tradicionalmente, esquerdistas e "islamitas" eram inimigos mortais. Um exemplo é o livro de Salman Rushdie, "Os Filhos da Meia-Noite", em que, na "parte paquistanesa", faz frequentemente referência ao papel conservador do Islão (até há uma cena em que o protagonista diz "o olfacto permitiu-me compreender a oposição fundamental entre o Islão e o Socialismo"). Outro exemplo é este texto de um grupo maoista afegão (a "Organização de Libertação do Afeganistão"), em que fala dos confrontos, nos liceus e universidades, entre "marxistas" e "islamitas", nos anos 70.

Manias

Em resposta à aLaíde Costa, algumas manias minhas:

1 - Estou sempre a brincar com os cordões dos sapatos (ou, então com os elásticos que tenho na secretária). Estão a ver o Humphrey Bogart nos "Revoltados do Caine" (em que os outros concluiram que ele era paranóico por estar sempre a brincar com os rolamentos)? É mais ou menos assim;

2 - Só me consigo deixar dormir se os lençóis e as mantas estarem todos simétricos na cama (às vezes tenho que me levantar às 3 da manhã para ajeitar os lençóis);

3 - Nos meus textos, tenho tendência a enchê-los de parenteses, notas de rodapé, etc. (estão a ver, não estão)?

4 - Tal como a aL, também tenho a obsessão do lado direito do banco detrás;

5 - Costumo ler os livros nas livrarias (uma vez, na Bertrand de Lisboa, o senhor do atendimente chegou ao pé de mim com uma cadeira e disse: "não se quer sentar para ler melhor?"; ainda hoje, não sei se era uma manobra de marketing para agradar o cliente ou uma indirecta para me mandar embora);

"Cada bloguista participante tem de enumerar cinco manias suas, hábitos muito pessoais que os diferenciem do comum dos mortais. E além de dar ao público conhecimento dessas particularidades, tem de escolher cinco outros bloguistas para entrarem, igualmente, no jogo, não se esquecendo de deixar nos respectivos blogues aviso do "recrutamento". Além disso, cada participante deve reproduzir este "regulamento" no seu blogue."

Agora, a passagem de testemunho (é complicado, porque quase toda gente já respondeu):

Sadik Habib (se o blog dele ainda não tiver sido cancelado)

São só quatro, mas não me ocorre mais ninguem que eu conheça (real ou virtualmente) e em que este "jogo" me pareça minimamente compatível com a filosofia do blog.

Adenda: para compensar o ter menos um "continuador", vou dar mais uma mania, que me lembrei agora, ao procurar uma coisa no bolso do meu blusão.

mania 6 - Tenho o hábito de acumular nos bolsos todos os papéis e papelinhos recebidos/escritos dos últimos anos (p.ex. talões de multibanco de 2004). Nomeadamente, quando mudo de calças, costuma transferir tudo dos bolsos de umas para as outras.

Tuesday, February 14, 2006

Versão traduzida

Estive a ver a tradução inglesa do blogue (aparentemente, alguém no Missouri, USA foi parar cá e, em vez de se ir embora, esteve a ler o blogue no Babel Fish).

Tem algumas coisas curiosas: p.ex., O Insurgente e O Rebelde (dois blogs praticamente opostos) são ambos renomeados para "The Rebel".

Monday, February 13, 2006

Afinal, sempre está ai a Santa Aliança

Há uns dias, dizia que "[d]esta vez, a aliança integrista não parece fácil de restaurar, já que, hoje em dia, os cristãos conservadores são fortemente anti-islâmicos".

Afinal, cá está ela - além do Vaticano e do Ministro para a Promoção da Fé Abrahamica e Eliminação da Licenciosidade, temos também João César das Neves: "os [fanáticos] laicos violam os seu próprio dogma da tolerância. Estes, para quem a liberdade é mais sagrada que Deus, estão dispostos a incendiar o mundo pelo direito à caricatura".

Também no Diário de Noticias (mas não on-line), na mesma página (e registo), temos uma carta de Fernanda Leitão, do Canadá (Fernanda Leitão é uma católica monárquica, antiga directora do jornal "O Templário"). Estou a citar de memória, mas a conversa é mais ou menos assim: "Sempre me disseram para não falar de religião e politica, porque são temas que podem ofender outras pessoas. Eu só discuto religião ou politica com pessoas que conheço bem. Esta reacção é o resultado da ofensa à religião muçulmana. O que é lamentável é que os católicos não reajam nas muitas vezes em que a nossa religião é ofendida" (as palavras não são bem estas, mas ideia é).

Sunday, February 12, 2006

O regresso dos S.D.S

Os "Students for a Democratic Society", a famosa organização estudantil dos anos 60 dos EUA, estão de volta.

Finalmente!

Religiões e Organogramas

Por mais repugnante que o fundamentalismo religioso possa ser, há uma observação que me ocorreu: são exactamente as religiões sem uma autoridade suprema ou uma "hierarquia de comando" formal, como o islamismo (pelo menos o sunita) ou o cristianismo protestante que conseguem obter dos seús fiéis maior "dedicação à causa" e mais capacidade de mobilização colectiva para causas comuns (por mais execráveis que possam ser essas causas). Pelo contrário, a hierarquizada Igreja Católica dificilmente consegue mobilizar os seus milhões de fiéis (a acreditarmos nas estatísticas) para seja o que fôr.

Revelador, não é?

Nova Moda?

Antes, muita gente chegava a este blog pesquisando "prostitutas em Portugal". Agora, a nova moda é chegarem cá pesquisando "cartoons de Maomé".

Novos links

Adicionei uma carrada de links novos (coisa que, claro, ninguém perceberia sem este post...).

Thursday, February 09, 2006

Sou eu que estou a ler mal...

Ou Pacheco Pereira, Helena Matos, o Acidental e o Insurgente ainda não disseram nada sobre a posição dos EUA ou da Igreja Católica sobre a questão do momento?

Wednesday, February 08, 2006

Proibido queixar-se!

(via Mutualist Blogspot)

German firm bans office whingers


Mr Kuwatsch works for an IT company called "Nutzwerk", which is based in Leipzig.

It is a small firm, which employs 16 people. But there is something that distinguishes Nutzwerk from other companies.

Employees can be fired if they are caught complaining in the office.

It may sound absurd, but employees have a clause in their contracts which states: "moaning and whinging at Nutzwerk is forbidden... except when accompanied with a constructive suggestion as to how to improve the situation".

Cartoons e cartoons, censuras e censuras

No Aspirina B, Daniel Oliveira refere que "[u]ma organização judaica holandesa apresentou queixa contra a Liga Árabe Europeia, por esta, em resposta aos cartoons sobre Maomé, ter publicado cartoons antisemitas que faziam paródias com o Holocausto".

Em resposta, Miguel Noronha, no Insurgente, argumenta que uma queixa judicial não têm nada a ver com violência popular.

Será que não tem? Nos protestos islâmicos, podemos distinguir dois tipos de protesto: os pacíficos (manifestações, queimas de bandeiras, boicotes comerciais) e os violentos (p.ex., destruição de embaixadas).

Quanto ao protestos pacíficos, a mim parecem-me um método de acção menos mau do que uma queixa judicial.

Quanto aos protestos violentos (suponho que seja a estes que Miguel N. se refere), a sua lógica será tão diferente da de uma queixa judicial? Se o que está em causa é a liberdade de expressão, o principio é o mesmo: ambas as partes estão a tentar, por meios coercivos, silenciar "expressões" com que não concordam - uns usando a sua própria violência, outros apelando para a violência do Estado. Será que um acto (a censura) passa de "mau"a "bom" só porque quem o pratica usa uma toga ou uma farda?

Será que a repressão das mulheres é "má" se for estilo "crimes de honra" (como na Jordãnia ou no Paquistão), mas já é "boa" se for ordenada por tribunais (como na Arábia Saudita ou no Irão)?

Será que a discriminação racial no Sul dos EUA era "má" quando praticada pelo Ku Klux Klan, mas já era "boa" quando praticada pelo Estado do Alabama ou pelo Municipio de Birminghan?

Será que os pogroms praticados por bandos anti-semitas da Rússia czarista eram "maus", mas a perseguição oficial aos judeus na Alemanha nazi já era "boa"?

Se a resposta é "não", será que há uma diferença tão grande entre usar a "nossa" violência contra quem discordamos ou querer que o Estado use a "sua" violência?

O Comunicado do M.N.E e a liberdade de expressão

Intervenção de Fernando Rosas na Assembleia da República:

"O comunicado emitido ontem pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, a propósito da situação criada pela publicação de caricaturas num jornal dinamarquês, é de uma extrema gravidade política que não pode deixar de ser considerada por esta Assembleia."

"Em primeiro lugar, o ministro Freitas do Amaral vem negar explicitamente o direito à livre expressão do pensamento. Compreendo que, perante as caricaturas publicadas num jornal dinamarquês, haja pessoas que se sintam ofendidas nas suas convicções religiosas, e respeito a sua indignação. Também nós as consideramos uma inútil provocação xenófoba(...)."

"Mas, o que irremediavelmente nos separa do M.N.E do governo do partido socialista, é que entendemos que essas discordâncias e esse protesto, inteiramente legítimos, se devem manifestar no quadro do mais intransigente respeito pela liberdade de expressão. Quem discorde e se sente ofendido deve exprimi-lo através do livre direito de resposta, através do direito à manifestação pacífica, através do recurso aos tribunais se entender que existe matéria crime, mas sempre, sempre através da LIBERDADE. Essa é a intransponível fronteira em democracia. Porque no dia em que quisermos limitar a liberdade de expressão por razões religiosas, ou quaisquer outras, abriremos a porta ao seu esvaziamento total pelas razões de quem, em cada momento histórico, tenha a força para impor qualquer razão. "

Tuesday, February 07, 2006

Liberdade, Segurança e Estado

No seu post "Liberdade de Expressão, Tolerância e Segurança", RAF escreve:

"Hoje, quando circulava na marginal da Foz, dois «transeuntes» que se passeavam acompanhados por cães de «elevado calibre» - um rottweiler e um boxer - cruzaram-se. Em vez de seguir em frente, fazendo uso da minha liberdade de circulação, optei pela solução mais segura: atravessei a rua."

"Certamente que os cidadãos que se fazem acompanhar de cães perigosos não deveriam circular ao domingo numa zona de grande afluência; e, óbvio, teria todo o direito de seguir em frente. Só que fiz um juízo de valor e, dadas as circunstâncias, pareceu-me que o momento não seria o mais oportuno para fazer uma dissertação sobre «liberdades básicas»."

Qual é o grande problema na "questão dos cartoons"? É que, ao contrário da "questão dos rottweilers", não há escolha totalmente individual, faça-se o que se fizer.

Por, exemplo, se eu decidir seguir em frente e arriscar-me a levar uma dentada, faço-o por minha conta e risco: quem toma a decisão sou eu, e quem se arrisca a levar a dentada sou eu. Mas, na questão dos cartoons, os seus autores são (como todos os cidadãos) protegidos pelo Estado dinamarquês, logo o risco que correram acaba por recair sobre o povo dinamarquês como um todo (mesmo sobre os individuos que não querem correr esse risco).

O exemplo oposto: se eu decidir ser "cobarde" e mudar de rua, é problema meu. Mas, se um Estado decidir ser "cobarde" e evitar atitudes "insultuosas", isso, quer queiramos, quer não, implica alguma censura (que atinge também os individuos que não se incomodam de correr os riscos associados a "insultos").

Tal situação só poderia ser resolvida plenamente de uma maneira: se, em vez de haver "Estado", a protecção dos individuos fosse assegurada por associações voluntárias. Assim, poderiamos ter associações que fornecessem "serviços de segurança" aos seus associados, mesmo que eles ofendessem o Islão ou seja quem for, e outras associações que tivessem como regra que os sócios devessem evitar "comportamentos ofensivos". Desta forma, resolvia-se o problema: uns inscreviam-se numa associação e outros noutra.

Mas, no mundo "real" (em que existe "Estado" e não "associações voluntárias"), a posição de o Estado defender a liberdade de expressão sem transigências parece-me o mal menor (qualquer outra atitude seria entregar um poder tremendo ao Estado).

Comentário (II)

Será que o meu comentário para o Choque Ideológico foi catalogado como "linguagem insultuosa, difamatória ou caluniosa"?

Sunday, February 05, 2006

Nos longínquos anos oitenta

1988

Reception of Scorcese's film The Last Temptation of Christ


The Last Temptation of Christ, the controversial film of Martin Scorsese from 1988, with its peculiar mix of traditional and new elements, all given very realistically and in historical context, provoked a vehement reaction from conservative American Christians, who had tried to save the souls of their brothers and sisters waiting for hours in line for tickets; they tried not only verbal and physical persuasion, but also put bombs in theaters or made bomb threats. There was even talk of Jewish conspiracy, and the distribution of the film came into question.

1989

Editados os Versiculos Satánicos de Salman Rushdie. Paises como a India, que proibiram o filme, proibiram também o livro. Em Portugal, o jornal "O Dia" publicava artigos em "solidariedade com os muçulmanos", dizendo coisas como "recentemente, nós, cristãos, também vimos a nossa religião atacada" (referindo-se ao filme). A Igreja Católica condenava o livro...

Desta vez, a aliança integrista não parece fácil de restaurar, já que, hoje em dia, os cristãos conservadores são fortemente anti-islâmicos, mas vamos ver.

Posições politicas e atitudes face aos cartoons

É interessante verificar (nos blogs mas não só) que a atitude face à questão dos cartoons é facilmente previsivel, se soubermos a posição politica do comentador:

- Se for claramente de direita, vai falar na intolerância islâmica e que "não nos podemos render"

- Se for claramente de esquerda, vai dar exemplos de intolerância por parte dos cristãos (o que não é difícil de arranjar)

- Se for mais ou menos ao centro, vai vir com a tal conversa do equilibrio entre a "liberdade de expressão" e a "responsabilidade"

Nisto, parece-me que tanto a esquerda como a direita estão correctas.

Comentário

Como nesse blog os comentários são moderados e (provavelmente devido a ser fim-de-semana) estão a demorar a publicar o comentário que fiz, vou deixá-lo aqui, para não perder a actualidade:

«É tão peculiar ver os contestatários do costume tornarem a liberdade uma questão de gosto e de sensibilidade!»

Não me parece que sejam os "contestatários do costume". Parece-me que quem está mais a vir com a conversa do "a liberdade de expressão tem que ser usada com cuidado e bom-senso" até são os "moderados", não os "contestatários do costume".

Não me lembro exactamente do que escrevi, mas o conteúdo era este (pode haver alguma diferença nos tempos verbais e na construção da frase).

Saturday, February 04, 2006

Outra vez os cartoons

N' O Acidental, Henrique Raposo faz uma comparação como o caso Rushdie:

"Em 1989, quando um senhor de turbante lançou a Fatwa sobre Rushdie, o Ocidente inteiro uniu-se contra essa afronta. Hoje, passados 17 anos, tudo mudou. Hoje, haveria ambiguidade em relação a Rushdie. Como houve ambiguidade em relação ao assassínio de Van Gogh no ano passado. Como há ambiguidade e “boa educação” politicamente correcta neste caso dos cartoons"

(...)

"Em 17 anos muita coisa mudou. Sobretudo à esquerda (...). [A] esquerda é hoje a guardiã da velha culpabilidade ocidental. A culpa é sempre nossa. (...) Por isso, os cartoonistas são os culpados. E a intolerência sai, mais uma vez, com o cadastro limpo."

Mas aonde é que HRaposo viu a "esquerda" a "desculpabilizar" o "fundamentalismo" e a dizer que a culpa é dos cartoonistas? Na verdade, a maior parte dos discursos do género "a liberdade de expressão tem que ser usada com cuidado e bom-senso" até me parece ter vindo mais de pessoas de "direita" (ex: JMF no Público, o editorial de hoje no Expresso, o Departamento de Estado dos EUA, etc.).

Diga-se de passagem que a comparação com Rushdie também não é correcta (mas já o seria comparar Van Gogh com Rushdie): creio que os cartoonistas e jornalistas não têm uma ameaça de morte em cima.

Friday, February 03, 2006

Alguns comentários sobre os cartoons de Maomé

Um jornal tem todo o direito de publicar os cartoons que quiser.

Os muçulmanos têm todo o direito de ficarem ofendidos com os cartoons (e de queimarem e espezinharem bandeiras).


Não fazem sentido comentários do género "se eu fosse dinamarquês, estava orgulhoso" - só devemos sentir orgulho nos nossos actos pessoais (ou quando muito, nos actos de entidades a que nos associamos voluntariamente): quem poderá sentir orgulho são as pessoas que publicaram os cartoons (sobretudo os editores em paises islâmicos que os publicaram).

O despedimento de jornalistas que publicaram os cartoons é censura (e censurável).

Thursday, February 02, 2006

A questão da poligamia

A respeito do casamento homossexual, alguns "conservadores" tentam fazer uma "redução ao absurdo", e argumentam "se é assim, porque não legalizar também a poligamia?".

Mas, pensando bem, porque não? Se fôr voluntariamente consentida (sem casamentos arranjados de meninas de 12 anos e coisas assim), que mal tem a poligamia?

Bem, na verdade, talvez haja um bom argumento contra: há fortes razões para pensar que os homens têm uma maior propensão genética para quererem ter várias mulheres do que o oposto (para uma análise critica dessa teoria, ver aqui), logo, se a poligamia fôr institucionalizada, talvez houvesse mais casamentos poligâmicos homem-mulheres do que mulher-homens (é um facto que são muito raras as sociedades poliandricas). Ora, como há aproximadamente tantas mulheres como homens, e se houvesse mais casamentos poliginicos do que poliandricos, há quem argumente que isso poderia provocar desiquilibrios sociais devido a "escassez de mulheres" (realmente, se mesmo agora eu não arranjo nenhuma mulher que me queira...). Aliás, até há quem defenda a tese de que o "terrorismo islâmico" tem origem na poligamia (raciocinio que não faz grande sentido: por essa ordem de ideias, porque não há terrorismo na Suazilandia?).

No entanto, talvez esse problema não fosse grave: não devem ser muitas as mulheres que estivessem dispostas a entrar em casamentos poliginicos (se formos ver, esses casamentos costumam ocorrer em sociedades em que as mulheres não têm escolha), logo, em termos de equilibrio entre os sexos, se calhar, não seriam mais graves do que, p.ex., as diferentes mortalidades por sexo em acidentes de motorizada. Além disso, eventualmente, a poligamia talvez seja menos socialmente nociva do que, por exemplo, a infidelidade conjugal (afinal, a "infidelidade" acaba por ter todos os defeitos apontados à poligamia e pode ter problemas adicionais, nomeadamente sobre o equilibrio psicológico dos envolvidos).

No fim disto tudo, falei muito e não disse nada: acabei por não emitir nenhuma opinião definitiva sobre se a poligamia deve ser consagrada legalmente ou não.

Wednesday, February 01, 2006

O casamento faz sentido?

A respeito da primeira tentativa (ainda não sabemos se bem sucedida) de um casamento homossexual em Portugal, ocorre-me uma questão: o casamento (homo ou hetero) faz sentido?

Afinal, porque é que uma relação entre duas pessoas precisa de ser sancionada pela autoridade do Estado? Creio ter lido algures que o casamento só se generalizou no fim da Idade Média, e que, até então, a regra entre a maioria das pessoas era a "união de facto" (não sei se isso é verdade, se é mais um dos mitos sobre a Idade Média; aliás, aparentemante contraditório - ou talvez não - com outro suposto mito: o do jus primae noctis).

No entanto, contra os meus preconceitos de longa data, tenho que admitir que, no mundo actual, há duas boas razões para a instituição "casamento":

Em primeiro lugar, o sistema fiscal: a partir do momento em que temos um sistema fiscal progressivo, faz sentido existir o "casamento"; caso contrário, teriamos pessoas com um nível de vida semelhante pagando impostos diferentes - um casal em que um dos conjugues ganhe 300 e outro 100 terá um nível de vida equivalente a outro que ganhe 200+200; mas, com um sistema fiscal progressivo que ignore o conceito de "casal" e tribute as pessoas pelos rendimentos individuais, o primeiro iria pagar mais impostos que o segundo.

Em segundo lugar, questões laborais, como férias, transferências de local de trabalho, etc. Aí, é aceitável que os "casados" tenham uma certa preferência, para reduzir o incómodo de ter que coordenar a agenda de duas pessoas.

Ora, estas duas razões parecem-me válidas tanto para casais "hetero" como para "homo" (e talvez mesmo para entidades poligamicas), logo, existindo "casamento", faz sentido que haja tanto para "hetero" como para "homo".

o argumento que o casamento heterossexual tem um papel especial - a geração e educação de crianças (os outros argumentos de JCN - amparo emocional, apoio a idosos - parecem-me disparatados, já que são válidos para outros tipos de casamento); mas, em matéria fiscal e de direitos laborais, já há beneficios próprios para os casais com filhos (se são os suficientes é discutível), logo um casal heterossexual com filhos nunca será tratado da mesma maneira que um casal homossexual sem filhos.