Saturday, March 04, 2006

Estado, "estado de natureza", paz e guerra

O argumento clássico para justificar o Estado (e, sobretudo, o "Estado forte") é que sem uma autoridade suprema, acabaremos todos a matar-nos uns aos outros (a "vida miserável e brutal" de Hobbes).

Frequentemente, essa análise faz uma distinção entre a ordem interna (aonde o "monópolio da violência" por parte do Estado assegura a paz e a tranquilidade) e a ordem internacional, funcionando em "estado de natureza", que seria um "lugar perigoso", aonde os paises defendem implacavelmente os seus objectivos e o recurso à guerra é "business as usual".

Mas, se formos ver, a autoridade do Estado não é garantia de paz: o que mais é por esse mundo fora são guerras civis. Há quem argumente que as guerras civis são o resultado da ausência de um Estado com poder efectivo, mas isso é confundir causa e efeito: quando as guerras civis começam, normalmente há um "Estado com poder efectivo" - não é a sua ausencia que causa a guerra, mas sim a guerra que (raras vezes, diga-se de passagens) destrói o poder efectivo do Estado.

O site "Correlates of War" tem uma lista das guerras desde 1816 até 1997, divididas em três categorias: "inter-state", "intra-state" e "extra-state". As guerras "inter-state" são as clássicas guerras entre Estados, as "intra-states" as guerras civis e as "extras-states" as guerras de Estados contra grupos locais (p.ex., a guerra colonial portuguesa) - embora a fronteira entre as guerras "intra-state" e "extra-state" me pareça um bocado duvidosa. Seja como fôr, no periodo em questão temos 213 guerras "intra-state", 108 guerras "extra-state" e 79 guerras "inter-state", isto é, temos muito mais guerras "dentro de um estado" (213+108) do que guerras "entre estados" (79).

Poder-se-á argumentar que essa contagem é um bocado duvidosa: p.ex., vários golpes militares são contados como guerras "intra-state" (apesar de só durarem alguns dias), algumas guerras "extra-state" poderiam ser contadas como guerras "inter-state" (não é muito claro se nas guerras coloniais do século XIX tinhamos o "Estado contra rebeldes" ou dois "Estados" em confronto); além disso, a guerra colonial portuguesa é contada como 3 guerras "extra-state" (Angola, Guiné e Moçambique), enquanto a II Guerra Mundial conta como só uma guerra "inter-state".

No entanto, mesmo com essas ressalvas, parece-me que, em termos quantitativos, as guerras civis (ou de "libertação") são muito mais frequente do que as guerras internacionais.

Se irmos, não pelo número de guerras, mas pela contagem dos mortos, temos cerca de 32 milhões de mortos nas guerras internacionais (metade na II Guerra Mundial). Nas guerras internas é dificil fazer a conta, já que há muitas guerras em que não há dados acerca do total de mortos (é o que quer dizer o "-999" nalgumas colunas"); no entanto, se assumirmos que, nas guerras em que não é conhecido o total de mortos, não morreu mais ninguém além dos mortos do lado do "Governo" (hipotese altamente improvável), teriamos cerca de 21 milhões de mortos nas guerras "intra" e "extra-state"; se (mais provavél) admitirmos que os "rebeldes" tiveram o mesmo número de mortos que o "governo" (na verdade, nas guerras "extra-state" com valores conhecidos, não são raros os rácios de 10 rebeldes mortos por cada soldado - afinal, essas são as guerras tipicas de sabres contra metralhadoras), as guerras "internas" teriam tido cerca de 32 milhões de mortos.

De uma forma ou de outra, estes dados parecem desmentir a ideia de que o Estado é fundamental para manter a paz civil - parece haver, pelo menos , tanta (senão mais) guerra dentro de Estados como nas relações entre Estados (a tal "anarquia internacional").

Outro dado que reforça esta análise: pode ser só impressão minha, mas parece-me que desde o fim da Guerra Fria, que levou os EUA ao estatuto de super-potencia única tem havido muitos mais conflitos internacionais (sobretudo involvendo os EUA) do que antes. Ou seja, há medida que a "comunidade internacional" se vai tornando mais parecida com um "Estado" (já que há um país que se começa a desenhar como uma quase-autoridade máxima), a conflitualidade global aumenta, em vez de diminuir.

A minha explicação: nas relações entre Estados (ou, p.ex., entre clãs numa sociedade pré-estatal) ambas as partes podem perder algo (nomeadamente a sua soberania) se recorrerem à violência, logo tendem a pensar duas vezes antes de recorrerem a meios militares em vez de à diplomacia. Pelo contrária, na relação entre um governo (nomeadamente um governo autoritário e/ou colonial) e os seus súbditos (ou parte destes), ambos os lados têm menos a perder em recorrerem à violência: o Estado porque, em principio, ganha; os súbditos porque, estando já numa posição subordinada, têm menos a perder do que teria, digamos, um governo de um Estado rival.

Generalizando, concluo que quanto maior a diferença de poder entre duas facções rivais, maior o perigo de uma guerra: se ambos os lados tiverem a mesma força, pensam "é melhor tomar cuidado, que não sabemos o que uma guerra vai dar, e ainda ficamos pior do que estamos"; se haver uma parte muito forte e outra muito fraca, ambos os lados podem ter um incentivo à guerra: o lado forte porque o perigo de perder é pequeno; o lado fraco porque, de qualquer maneira, tem pouco a perder e muito a ganhar.

Corolários desta generalização:

- É mais natural haver guerras dentro de um Estado do que guerras entre Estados
- É mais natural haver guerras numa sociedade com Estado do que numa sociedade "anárquica" (o corolário anterior é um caso particular deste)
- É mais natural haver guerras entre Estados fortes e fracos do que entre Estados de força equivalente
- É mais natural haver guerras civis em ditaduras, colónias, etc. do que em democracias
- É mais natural haver guerras civis em paises com grandes diferenças ricos/pobres do que em países de classe média
- É mais natural haver um bom relacionamento entre pessoas em pé de igualdade do que numa hierarquia (os outros corolários são casos particulares deste).

Claro que a maior parte deste "corolários" são óbvios (sobretudo o 4º e o 5º) e quase toda a gente concordará com eles. O que eu queria mais marcar é mesmo os pontos 1º e 2º, que, esse sim, desafiam o que é considerado o "senso comum" (e também o ultimo ponto, que penso que muitas pessoas concordarão, mas também muitas dicordarão).

4 comments:

Anonymous said...

concordo,

e tal como frisou no texto, o estado tem o monopolio da violencia e da coerção.
seja qual for o estado democratico ou não reflete sempre os ditames preconceitos e filosofias da sua época.

muita gente diz que o estado é necessário para proteger-nos quer dos outros quer de nós proprios. o que ele sempre protegeu, protege e sempre protegerá (enquanto existir) é a mentalidade dominante e a classe que é previligiada pela "ordem moral".

só há uma coisa que não compreendo por parte dos liberais, para eles tudo são serviços, então porque razão o estado tem o monopolio da segurança (força)?
quero dizer, os medicos tem regras deontologicas e éticas(?!), porque razão não pode acontecer isso com a segurança.
afinal é mais um serviço como outro qualquer, se eles acrecitam no que debitam, é uma questão de coerencia.

seria giro...

Miguel Madeira said...

Há alguns liberais que, realmente, defendem a privatização da segurança, justiça, etc. (p.ex. Carlos Novais da Causa Liberal).

No entanto, acho que o que eles defendem seriam um "Estado com outro nome": se o Estado fosse nominalmente abolido e continuasse a existir propriedade privada de grande dimensão, essas propriedades seriam indestinguiveis de um "Estado" governado pelo proprietário (veja-se aquelas industrias que têm a fabrica e os bairros aonde os trabalhadores vivem; num regime desse género, a fábrica e os bairros tornariam-se uma espécie de "principato", governado pelo industrial)

Anonymous said...

pois... é a selvajaria, o retorno do feudalismo.

Anonymous said...

isso não vai contra os direitos humanos?... em que a justiça, etc; são direitos que os individuos devem usufruir e os outros individuos tem o dever de apoiar sem "insterests"?