No seu artigo Pobreza?, Gabriel Mithá Ribeiro expõe (apresentando a sua experiência pessoal) a posição de que a probeza deriva mais de hábitos e comportamentos do que de as pessoas serem vítimas "do sistema" ou algo assim (pelo menos, foi assim que interpretei o seu texto).
É uma hipotese defendida por muita gente (com a qual, como já perceberam pelo que têm lido neste blogue nos últimos 9 anos, eu não concordo), mas não deixa de ser uma hipótese respeitável, e que terá certamente a sua parte de verdade (creio que o nosso destino é em parte determinado pelas nossas atitudes, e em parte pelo sistema social em que estamos inseridos, e agora é uma questão de medir qual das duas componentes é predominante).
O que já me parece mais discutível é a arrogância moral de GMR, pondo em causa que pessoas que não tenham sido pobres possam falar sobre a pobreza e defender posições políticas e sociais usando a luta contra a pobreza como argumento.
Só para percebermos como isso é absurdo, imagine-se a seguinte situação - será que um não-judeu não pode criticar o anti-semitismo? Será que um homem não pode criticar a opressão das mulheres nas culturas muçulmanas? Será que um europeu não pode criticar a forma como os israelitas tratam os palestinianos ou, já agora, a forma como os palestinianos tratam os israelitas? Será que um heterossexual não pode defender a atribuição de certos direitos legais aos homossexuais? Um homem livre não pode ser um ativista anti-escravatura? Que eu saiba, defender causas que não beneficam diretamente (ou até podem prejudicar) a pessoa que se envolve nessas causas até era suposto ser uma coisa meritória... Além da contradição em que GMR cai, considerando que "a pobreza jamais deveria ser politicamente instrumentalizada" e, depois, instrumentalizando a sua própria pobreza para proclamar uma espécie de superioridade para falar sobre o assunto.
Alguém pode dizer que "uma coisa é defender, outra é instrumentalizar politicamente", mas é a mesma coisa - é como aqueles verbos irregulares ("Eu tenho um espírito independente; tu és um excêntrico; ele é um lunático"): "Eu defendo o [grupo X]; ele instrumentaliza politicamente o [grupo X]".
Noto ainda que GMR, como é de bom tom, critica o "politicamente correto" (há coisa mais "politicamente correta" do que dizer mal do "politicamente correto"?), mas faz o mesmo que muita gente critica no "politicamente correto" (pelo menos, nos EUA): considerar que só a opinião das pessoas que pertencem a certos grupos (mulheres, "minorias", etc.) conta.
Já agora, vou relatar as minhas experiências de vida:
Nasci em Moçambique, na então Lourenço Marques, filho de uma professora primária, nascida em Paderne, e de um então electricista dos CTT (que estava a tirar o curso de engenheiro técnico), nascido em Loulé e crescido em Faro; a nossa família era mesmo daqueles que tinha negros que iam a casa servir (duas raparigas que acho que deviam ajudar a minha mãe em casa ou coisa assim - atenção que eu tinha um ano na altura, logo estou a falar de ouvir).
Quando da independência os meus pais regressaram ao Algarve, e o meu pai, depois de dar aulas um ano ou dois, voltou a arranjar emprego nos CTT, agora já como engenheiro técnico, em Portimão.
Tive uma vida confortável de classe média-alta, tendo boas notas na escola e beneficiando claramente de pertencer a uma família com muitos livros em casa; a prova que eu beneficiei disso - os meus professores diziam que eu tinha a mania de só fazer o que queria e que me apetecia e até que tinha um "comportamento de mim contra mim mesmo"; o facto de eu estudar pouco a matéria das aulas era compensado porque, como me fartava de ler os livros sobre animais e sobre história que os meus pais tinham em casa, tinha cultura geral suficiente para ter boas notas, ainda que sem o conhecimento detalhado necessário para ter mesmo notas muito altas (ou seja, se não tivesse esses livros em casa poderia ter sido uma desgraça na escola).
Muitos dos meus amigos de infância seriam possivelmente pobres ou, no máximo, classe média-baixa para os padrões portugueses, e alguns tiveram um percurso subsequente um pouco estranho, com insucesso escolar e mais tarde prisões ocasionais por posse de droga e coisas assim, mas, ao que sei, nenhum caiu naquela pobreza estilo RSI (quando tinha para aí 11 anos, um dos meus amigos - depois de ter reprovado no 1º ano do Ciclo teve esta conversa com a minha mãe: "Ele - Quero ser electricista; Ela - Mas não queres estudar mais?; Ele - quero estudar aquelas coisas que eu quero"; mas como posso eu criticá-lo por preferir aprender a mexer em equipamentos eléctricos do que a estudar a matéria do 1º ano do ciclo se eu também preferia ler "O ABC da Natureza" ou "A Guerra no Mundo desde 1945" a estudar a matéria do 2º ano do ciclo?)
Eu poderia vir com a conversa "a minha consciência social deriva de em criança ter brincado com miúdos desfavorecidos"; mas seria mentira - não me lembro de em momento algum ter tido algum pensamento do género "coitados dos meus amigos, que não têm muitas coisas que eu tenho"; o que eu pensava com essa idade era mais "o bairro deles é muito mais divertido que o meu".
Por essa altura (11 anos), os meus pais ofereceram-me um ZX Spectrum 48K pelo Natal (parece um pormenor irrelevante, mas não é - esperem um pouco).
Na adolescência nunca trabalhei nas férias, algo na altura normal no Algarve mesmo para jovens de classe média.
Andei na universidade em Lisboa, com os meus pais a pagarem o aluguer da casa e mais uma mesada mensal.
Após a universidade, finalmente uma fase da minha vida em que passei uma espécie de dificuldade: demorei cerca de 4 anos a conseguir arranjar um trabalho a sério (até lá andei tirando formações profissionais - financiadas pelo Fundo Social Europeu - ou dando aulas naquele esquema de 3 horas por semana); não é muito fácil alguém que é um caso marcado de personalidade INTP conseguir arranjar emprego quando quase todas as vagas para economistas são na área comercial (de novo, a questão: o problema está no comportamento individual - a minha personalidade - ou na estrutura social - o tipo de empregos disponíveis?). De qualquer forma, os meus pais sustentaram-me sempre enquanto não arranjei emprego.
Quando finalmente arranjei um emprego, a minha principal mais-valia foi sobretudo o saber programar computadores (nomeadamente fazer macros em VBA no Excel); ora, eu aprendi a programar... com o tal ZX Spectrum que os meus pais compraram (ou seja, se eles não tivessem comprado esse computador, hoje em dia eu provavelmente não teria emprego).
Concluindo - eu só sou o que sou atualmente graças aos privilégios que gozei durante os meus anos formativos.
Num mundo em que as discussões se regessem pela razão e pela lógica, isso seria um argumento que daria força às minhas posições esquerdistas: eu sou a prova viva de que a nossa posição social de origem pode contribuir decisivamente para o nosso percurso ao longo da vida.
Já num mundo em que as discussões se rejam por truques emocionais e argumentos ad hominen, é capaz de ter o efeito oposto ("Como é que este comedor de caviar pode vir falar de injustiças sociais quando ele sempre pertenceu às classes favorecidas? Hipócrita!!").