Monday, March 15, 2010

A "ética argumentativa" de Hans-Hermann Hoppe

Em parte em resposta a estes meus posts, Rui Botelho Rodrigues escreve "Uma reformulação do Direito Natural".

RBR baseia-se muito na "ética argumentativa" de Hans Hermann Hoppe, um economista anarco-capitalista. Basicamente, a tese de Hoppe é que o simples acto de alguém argumentar por uma dada posição (p.ex., contra a propriedade privada) implica reconhecer a propriedade privada: para argumentar, é necessário ter controlo exclusivo sob o recursos necessários para argumentar, a começar pelo próprio corpo (p.ex., sob as suas cordas vocais), logo a argumentação implica a propriedade privada ("Propositions are not free-floating entities. They require a proposition maker who in order to produce any validity-claiming proposition whatsoever must have exclusive control (property) over some scarce means defined in objective terms and appropriated (brought under control) at definite points in time through homesteading action."). - esta minha descrição é um bocado simplificada, o melhor mesmo é ler o post do RBR.

Acho que um óptimo argumento contra esta posição é o simples facto de eu estar a publicar este post num computador que não é meu (na verdade, o post já estava escrito há dias, mas só o publiquei agora para poder dizer isto) - ou seja, argumentar não implica deter a propriedade dos "meios de argumentação".

Outro exemplo - em termos de facto, Hans-Hermann Hoppe não detém a plena propriedade do seu corpo: ele está sujeito à legislação dos EUA e tudo o que ele produza com o seu corpo está sujeito aos impostos norte-americanos (e antes aos alemães); no entanto, ele argumenta em favor da sua "ética argumentativa" (e de mais uma carrada de coisas). Assim, se é possivel argumentar sem dispor da propriedade de sí próprio, isso quer dizer que o acto de argumentar não implica forçosamente estabelecer um direito de propriedade sob si próprio.

Mas podemos ir mais longe - mesmo que admitamos que para argumentar é necessário ser proprietário de si mesmo, daí não decorre necessariamente adoptar a tese hoppesiana/rothbardiana sobre a aquisição original de propriedade (através da ocupação original de recursos em "estado de natureza").

Na verdade, o principio da "ocupação original de recursos em estado de natureza" implicaria, não a auto-propriedade, mas que os filhos fossem propriedade dos pais (ou mais provavelmente dos avós, já que os pais também seriam provavelmente propriedade dos pais deles) - afinal, eu fui produzido, não a partir de recursos em "estado de natureza", mas de recursos que eram originalmente propriedade dos meus pais; e, de qualquer maneira, os meus pais "misturaram trabalho" em mim antes de eu existir propriamente (logo serão eles os "ocupantes originais").

Mas, mesmo deixando isso de lado, vamos comparar a teoria Rothbard/Hoppe (penso que pudemos juntar os dois) com outras teorias da aquisição de propriedade:

- a "teoria Locke", que é quase igual, apenas com a nuance que a aquisição original só é legitima se se deixar o suficiente para os outros. Aplicando este visão à propriedade de si mesmo, teríamos que eu posso reclamar a propriedade do meu corpo mas não posso começar a reclamar a propriedade dos corpos das outros pessoas, já que assim iria haver alguém que não poderia possuir o seu próprio corpo; na prática, em nada alteraria face à posição Rothbard/Hoppe

- a "teoria Proudhom/Tucker/Carson", segundo a qual os recursos naturais devem ser propriedade (ou um nome parecido) de quem os "ocupa e usa" actualmente (em vez de do ocupante original ou a quem este tenha transferido a propriedade) - a regra de "a terra a quem a trabalha, a mina aos mineiros". Aplicando este raciocínio à propriedade de si mesmo, significaria que eu apenas poderia possuir o meu corpo enquanto eu habitasse o meu corpo, e que a propriedade absentista de corpos alheios seria considerada não-válida

- a "teoria Henry George" segundo a  qual toda a gente tem igual direito à propriedade dos recursos naturais; aplicando isso à propriedade de corpos, em principio significaria que cada um tem o direito a possuir 1 corpo, nem mais nem menos

- finalmente, a teoria de que os recursos naturais são um free-for-all que toda a gente tem o direito de usar (podendo, se assim o entenderem, estabelecerem acordos do género "tu não mexes no terreno onde eu plantei rabanetes, e eu não mexo no terreno onde tu vais fazer corta-mato", mas que apenas obrigam a quem os assinou); se expandirmos essa regra para os corpos, nesse caso, efectivamente não há a tal propriedade de sí próprio (embora possa haver acordos voluntários dizendo "os signatários comprometem-se mutuamente a não se agredirem, matarem, etc."), mas eu continuo a poder usar o meu corpo para argumentar, já não numa base "o corpo é meu, logo eu posso argumentar com ele", mas numa base "o corpo não é de ninguém, logo ninguém me pode impedir de argumentar com ele"

Em termos  mais vastos, estes diferentes versões da aquisição original tem implicações bastante distintas, mas todas elas (talvez com algumas reservas face ao georgismo) são compatíveis com a ideia de um individuo usar as suas cordas vocais, dedos, etc. para argumentar; logo, é possivel argumentar a favor de qualquer uma delas (e de muitas outras, diga-se) sem entrar em contradição.

Em resumo:

a) O acto de argumentar não implica a propriedade de sí próprio (é possível argumentar sem ser proprietário de si mesmo)

e

b) A propriedade de sí próprio não implica a teoria Hoppe/Rothbard da aquisição original (há outras teorias da aquisição original compatíveis com a propriedade de sí próprio)

Ainda a esse respeito, recomendo o artigo Hans-Hermann Hoppe’s Argumentation Ethic: A Critique, por dois outros ancaps, Bob Murphy e Gene Callahan, publicado pelo Anti-State.com (o capítulo HOPPE CONFLATES USE WITH OWNERSHIP acaba por ser parecido com os meus 3º e 4º parágrafos).

Atualizado a 13/07/2016: Entretanto o Anti-State.com parece ter ido à vida, mas o Mises Institute também tem uma versão do artigo de Murphy e Callahan.

5 comments:

rui fonseca said...

Nunca me senti motivado a comentar estas suas deambulações filosóficas acerca do direito de propriedade por as sentir muito afastadas das preocupações que o mesmo tema me suscita.

Se me atrevo hoje a comentar este seu post não é por que tenha mudado de perspectiva mas porque gostaria de o convidar a debater o assunto num plano mais concreto.

Repare em Lisboa: Com milhares de prédios abandonados, a cair aos bocados, até nas avenidas mais centrais. Repare em Cascais, em Sintra, para falar apenas da região mais rica (?) do país?

Repare no país: nos campos abandonados entregues aos silvados.

Porque é que isto acontece?

Que direito de propriedade sustenta o absentismo e a expectância sem limites?

Que direito de propriedade justifica o crescimento das periferias e o abandono do centro obrigando à entrada de milhares de carros que se arrumam em cima de quase todos os passeios de Lisboa?

Não me alongo mais.

Fiz-me entender?

Rafael Hotz said...

Miguel, o argumento de Hoppe é apenas normativo e diz que não é possível argumentar contra ele sem cair em contradição performativa...

Não existe algo como uma regra "self-enforcing", qualquer regra no mundo físico deve ser conhecida e respeitada pelos agentes para se fazer valer...

João Marcos T. Theodoro said...

O artigo interpreta incorretamente a ética hoppeana. O seguinte texto, em português, traz a interpretação correta e refuta algumas críticas: http://criticidadevoraz.blogspot.com.br/2013/10/etica-argumentativa-autopropriedade-e.html

Anonymous said...

Ei cara, olha lá, é a sua cabeça voando quilômetros após ser decapitado pela Guilhotina de Hume...kkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Quando você diz que um sujeito não pode ser deontologicamente (afinal estamos falando de uma proposição ética) dono de si mesmo porque há um estado que, positivamente, o força a cobrar impostos, você está derivando uma proposição normativa de uma positiva, o que fere um postulado lógico conhecido como Guilhotina de Hume, a saber, que você não pode derivar uma proposição normativa de uma proposição positiva.

Parei de ler nesse ponto, já que o Hoppe é sempre muito claro em afirmar a divisão da categorias normativas e positivas, de onde ele mesmo deriva a diferença enorme entre direitos de propriedade (apropriação original para resolução de conflitos de escassez) e autopropriedade como fenômeno.

Passar bem

Miguel Madeira said...

Mas não é Hoppe que começa logo à partida por misturar os dois planos, quando deriva a defesa normativa do direito de propriedade da observação positiva de que, alegadamente, seria necessário ser proprietário do seu corpo para poder defender uma opinião?