Dá-me a ideia que muitas das discussões sobre o "bullying" (ver as que têm ocorrido no Jugular) encravam logo num problema de definir o que é e o que não é bullying.
A Shyznogod põe a questão como "bullying e acto violento não são sinónimos. O bullyng pressupõe violência - física e/ou psicológica - reiterada."
Eu acrescentaria, ao reiterada, assimétrica (como escrevo aqui, "na escola primária nós tinhamos por vezes lutas bastante violentas com a turma do andar de baixo (às vezes alguém chegava a ir parar ao hospital), mas eu não considero isso bullying. Agora, se em vez de ser o "grupo A" contra o "grupo B", fosse o "grupo A" contra o "individuo C", já consideraria."), mas penso que isso não altera o fundamental.
E é desse carácter bi (ou tri)-dimensional do bullying que vêem muitos problemas de definição.
Umas pessoas concentram-se na questão da violência e tendem a associar o bullying a um contexto como indisciplina, roubos, lutas de gangs, etc. (o conjunto A); para outras o fundamental é sobretudo, não a intensidade da violência, mas o seu carácter persistente, de algumas crianças serem mais ou menos escolhidas como "vítimas" e importunadas sistematicamente, mesmo que essa perseguição por vezes seja mais psicológica do que física (o conjunto B); outras serão mais restritivas e classificarão como bullying só a intersecção dos conjuntos.
Um exemplo cinematográfico/literário - compare-se as lutas que ocorrem em Rumble Fish com as humilhações que, em Regresso ao Futuro, Biff Tannen inflige a George McFly (imagino que a maior parte dos leitores tenham vistos os filmes, e/ou - no primeiro caso - lido o livro). No primeiro caso há violência intensa, inclusive com armas brancas, mas nada de vitimização persistente; em compensação, no segundo, há sobretudo sujeição psicológica, com violência física mínima. Será que podemos falar de bullying em alguns destes casos? No caso de Rumble Fish, duvido que muita gente classifique o que lá se passa como bullying, mas talvez alguns dos que identificam bullying com violência o façam; o caso "Regresso ao Futuro" - descontando o irrealismo do filme, penso que é exactamente nas situações tipo Biff Tannen/George McFly (importunio persistente de baixa intensidade aparente) que surge a polémica "o bullying sempre existiu / andei na escola há 50 anos e nunca vi bullying".
E muitas das sub-polémicas vêm daí, como a questão sobre se o bullying está associado a escolas públicas, "bairros problemáticos", etc. Basicamente, o que a presença de alunos de "bairros problemáticos" faz é deslocar para cima o gráfico que eu arranjei, aumentando a quantidade e intensidade da violência; para quem considere o grau de violência fundamental para distinguir bullying de não-bullying, isso evidentemente que aumenta o bullying; se se considerar que, a partir do momento em que alguém é constantemente vitimizado, a diferença entre tortura psicológica e violência física não é tão grande como todo isso, então talvez não haja diferenças significativa entre escolas "classe média" e "problemáticas".
Até podemos imaginar uma situação paradoxal - imagine-se que um aluno repetente de um "bairro problemático" é colocado numa turma "razoável" e, por qualquer razão (talvez por uma lógica de inimigo comum?) decide tomar sob a sua protecção o "cromo" da turma, chegando a agredir quem se meta com ele? Nesse caso, termos um aumento de violência, mas provavelmente uma redução do bullying (dependendo talvez da definição adoptada) - ou seja, uma deslocação para "noroeste" no meu gráfico. Antes que alguém me diga que este cenário é absurdo, eu já assisti a situações muito semelhantes.
Mas agora há aqui certas implicações:
Até é provável que o carácter de persistência seja realmente mais grave do que propriamente o grau de violência física, que seja muito mais traumatizante a sensação de "submissão" do que propriamente a dor física (até por razões evolucionarias -é muito provável que, durante o paleolítico, os indivíduos que suportavam o frio e a dor mas não aceitavam ter um papel subalterno no clã tenham tido muitos mais descendentes que o caso oposto, logo evoluímos no sentido de preferir o respeito e o orgulho ao conforto físico; ou talvez eu já esteja a divagar...).
Mas é exactamente por isso que muitas estratégias de combate ao fenómeno dificilmente terão grande sucesso; p.ex.. tentar que as vitimas que se queixasse e denunciem os agressores - se o principal problema de ser "bulliado" for mais a humilhação do que a dor física, então muitas poucas vítimas se queixarão; afinal, em termos de humilhação deixar de ser "o que leva dos outros" para passar a ser "o que os professores e contínuos têm que proteger para não levar dos outros " é mais ou menos igual ao litro (se não for pior); provavelmente é por essa razão que normalmente as vítimas não se queixam (e não tanto pelo tão falado "medo das represálias").
Por outro lado, propostas (como penso que o CDS/PP tem) de combater o bullying pela via criminal também são má ideia - afinal, se grandes parte dos casos de bullying consistem numa sucessão prologando no tempo de episódios que, tomados individualmente, nem seriam particularmente graves, seria muito difícil prová-los em tribunal, p.ex.; na verdade, se calhar por vezes seriam as vítimas a serem acusadas, já que estas, quando reagem, frequentemente reagem "à bruta" e de forma muito mais visível perante terceiros que o bullying original (p.ex., o Joaquim lança farinha para cima da cabeça do Fernando e o Fernando espeta com um compasso no braço do Joaquim; quem será que iria parar ao tribunal de menores?)
Bem, e qual é a solução? Sinceramente não sei; palpita-me que turmas mais pequenas e menos alunos por m2 de recreio talvez reduzissem o problema, mas é apenas um palpite sem grande suporte (por outro lado, se deixasse de haver escola, o bullying na escola desapareceria por si mesmo)
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