Saturday, March 06, 2010

Re: Propriedade privada e anarco-comunismo (II)

[Continuando a responder a Rui Botelho Rodrigues]

Passado o Estado original através de apropriação, o controlo exclusivo desse recurso pode ser transferido de duas formas: o produtor original pode voluntariamente trocá-lo ou ser expropriado: seja por um bando de criminosos, por um Estado ou por uma comunidade anarquista-socialista. É isto que Rothbard quer dizer com «a impossibilidade de socialismo sem Estado»: é que a única forma de impedir o advento da propriedade privada é através da sua apropriação por um grupo a que o produtor não consentiu qualquer autoridade para o governar e expropriar (seja esse grupo o Estado ou a comunidade anarquista como um todo). Eis porque a propriedade comunitária numa sociedade sem Estado não pode impedir a formação de propriedade privada sem se transformar numa espécie de Estado, que da mesma forma exerce autoridade ilegítima sobre indivíduos que não a consentiram.
Dá-me a ideia que RBR define "Estado" de uma maneira que fará de qualquer "agência de protecção" que aplique um código legal diferente do que ele considerar a "lei justa" um "Estado" ou quase.

Não deixa de haver uma certa lógica nessa posição - afinal, para um mulher muçulmana que tenha sexo pré-matrimonial não deve fazer grande diferença ser executada pelo Estado na Arábia Saudita ou pelo pai e os irmãos nalguma aldeia curda. Da mesma forma, faz sentido que um ancap considere que tanto faz as suas casas serem nacionalizadas ou ocupadas numa "ocupação selvagem", ou que um ansoc ache que tanto faz um grupo de operários revoltados serem metralhados pela policia ou por um grupo paramilitar.

No entanto, isso tem certas implicações:

Mesmo se nos limitarmos ao anarco-capitalismo, há montes de divergências sobre quais as leis e/ou os direitos de propriedade "justos" . Alguns exemplos:

1 - Há os que consideram que a reserva bancária fracional é uma fraude e outros que não (mesmo que eventualmente a considerem um mau modelo de negócio)

2 - Há os que são a favor da propriedade intelectual e os que são contra

3 - Há os que defendem que após a abolição do Estado toda a propriedade privada deve ser respeitada, e os que defendem que a propriedade de entidades "privadas" ligadas ao Estado pode e/ou deve ser confiscada

4 - Qual o rácio de restituição para a punição de crimes como roubo? A resposta rothbardiana clássica é "roubaste 100 euros, tens que pagar 200", mas, além de não ser partilhada por todos os ancaps, costuma vir sempre acompanhada de "e mais qualquer coisa para os custos de captura, e mais uma compensação pela insegurança a que a vitima esteve submetida", o que significa que na prática poderá haver diferenças significativas entre o que vários ancaps acharão a "restituição justa"

5 - Os contratos de escravatura serão válidos?

Etc.

Onde é que eu quero chegar com esta conversa toda? Que, se alguma vez for implementada uma sociedade anarco-capitalista, estas diferenças puramente teóricas tornarão-se relevantes, porque algumas agências de protecção irão optar por uma posição e outras pela posição oposta; o que quer dizer que algumas agências de protecção irão fazer coisas que outras pessoas considerarão "agressão" e "ataque aos direitos de propriedade".

Provavelmente numa dada área geográfica as várias AP's a operar lá acabarão por aceitar um código legal comum (tal como os vários browser da internet leiem todos HTML, Javascript e CSS ), mas de qualquer forma esse código legal comum irá ter disposições que muitas pessoas considerarão "agressivas" (p.ex., se chegarem a um acordo de "um livro terá um copyright de 5 anos", todos os inimigos da propriedade intelectual e todos os adeptos de propriedade intelectual perpétua considerarão isso um roubo).

Ou seja, se considerarmos como um "Estado" ou "uma espécie de Estado" todas as entidades que façam sistematicamente algo que nós consideramos uma "agressão," provavelmente haverá sempre "Estados".

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