Friday, June 30, 2006

A praia de Gaza

A respeito do alegado "massacre" de uma familia palestiniana pelo exército israelita numa praia da faixa de Gaza, Fernando C. Gabriel escreveu o post "Histeria":

"Perante o sólido e detalhado relatório apresentado pelas Forças Armadas israelitas, precisando o número e natureza das munições usadas na resposta a um dos inúmeros ataques palestinianos lançados a partir dos territórios de Gaza, a HRW reconhece a credibilidade do dito relatório. Ou seja: reconhece, tarde e a más horas, que participou activamente em mais uma operação de propaganda terrorista contra um Estado de direito."

O que a Humans Rights Watch disse acerca do relatório israelita:

"The Israel Defense Forces’ (IDF) investigation of the Gaza beach explosion that killed eight Palestinian civilians and wounded dozens is incomplete because it excludes important evidence"

(...)

"The meeting revealed that the IDF’s conclusion that it was not responsible for the deaths on the beach was based exclusively on information gathered by the IDF and excluded all evidence gathered by other sources"

(...)

"«An investigation that refuses to look at contradictory evidence can hardly be considered credible,» said Marc Garlasco, senior military analyst at Human Rights Watch."

Será a isto que FCG se refere com "reconheceu da credibilidade do dito relatório"?

Nunca houve uma guerra entre dois paises...

... democráticos / com MacDonalds / praticantes de golf / etc.

Há muitas teorias destas. Há dias, foi Rui Albuquerque do Blasfémias a repetir a tese que "permanece como uma das poucas leis universais das Relações Internacionais o facto de, até à data, não se ter registado nenhuma guerra entre dois países com restaurantes Mcdonald's".

Esta tese ("The Golden Arches Theory of Conflict Prevention") foi lançada em 1996 por Thomas Friedman - claro que a ideia não era de que os MacDonalds tornavam as pessoas pacificas: era que só era rentável para a MacDonalds abrir restaurantes em paises que tivessem um mínimo de desenvolvimento económico (e, sobretudo, uma classe média com algum poder de compra), e que era esse grau de desenvolvimento que tornava improvável uma guerra entre países desse tipo.

No entanto, 3 anos depois, em 1999, ocorreu o que foi considerada a primeira "McGuerra" - NATO vs. Sérvia (ainda que o McDonalds em Belgrado tenha fechado no 2º dia da guerra); nesse ano houve também uma espécie de guerra entra a India e o Paquistão, ambos com MacDonalds (embora deva ser referido que Friedman, quando elaborou essa teoria, excluiu explicitamente atritos fronteiriços do género que houve em Caxemira, que não chegarão a ser bem guerras).

Mas, mesmo em 1996, a teoria já tinha nascido falsa - o McDonalds está no Panamá desde 1971 (lembram-se disto?).

Outras dessas teorias também têm muitas excepções (note-se que os seus proponentes não dizem "é raro haver guerras entre dois paises que ...", dizem "nunca houve uma guerra entre dois paises que..."); meio a satirizar estes teorias, Matthew White diz que nunca houve uma guerra entre dois paises com mais de 160 automóveis por mil habitantes (avisando desde logo que, caso alguêm descubra alguma excepção, ele simplesmente sobe a fasquia até a observação estar certa) - no fundo, o que ele diz é que é díficil 2 paises ricos entrarem em guerra, já que têm muito a perder e pouco a ganhar.

Mas o meu ponto é que toda esta especulação interessa muito pouco - estar a dizer "nunca 2 paises que... entraram em guerra" significa quase nada, pelo simples facto que é bastante raro 2 paises (democráticos ou não, com ou sem Mcdonalds, com muitos ou poucos campos de golf, ricos ou pobres...) entrarem em guerra. Na verdade, as relações internacionais funcionam num "estado de natureza" muito pouco hobbesiano - as guerras entre estados são raras comparadas com as guerras civis, pelo que adianta pouco estar a discutir maneiras de evitar as guerras entre estados (o facto de as guerras civis serem mais frequentes que as guerras entre estados também indicia que criar um "Estado Mundial" talvez não seja um bom caminho para a "paz mundial"...).

Monday, June 26, 2006

Re: Comentários Finais

Dos Santos escreveu os seus comentários finais sobre esta discussão. Vamos lá ver se estes são os meus.

"As teorias anarco-socialistas andam às voltas para explicar que a propriedade é comunitária mas pode ser gerida individualmente. É importante referir que mesmo que isto fosse verdade, haveria uma entidade em representação da comunidade que estaria responsável por fazer a distribuição da propriedade. Isto é uma forma de governo. Não é uma anarquia. Sugerir que tudo pode ser resolvido em assembleia geral, para além de muito criativamente fértil e romântico, constitui uma forma de democracia e não uma anarquia."

(...)

"O Miguel diz que há "soluções propostas" para os casos de distribuição da propriedade mas acontece que numa sociedade anarquista não há "soluções" desse género, há processos descentralizados. As pessoas agem por si mesmas. Estar a querer inventar soluções para a distribuição de terrenos é o mesmo que ter uma agencia central (novamente, leiam os mais confusos qualquer palavra mais eufemística) a decidir quem tem direitos a explorar que terreno. Ao passo que num regime de propriedade privada há um reconhecimento mútuo feito pelas pessoas, nessa situação, essa agencia não tem legitimidade para fazer tal coisa a menos que seja reconhecida pelos envolvidos (o que é praticamente impossível)."

Aqui já dei um exemplo de como a propriedade comunitária pode ser gerida sem um autoridade centralizada.

Essas "soluções" (como a que referi acima, que não implica nenhuma "agência central") podem ser implementadas com base no "reconhecimento mútuo feito pelas pessoas". Se, quando Dos Santos diz que tal é "praticamente impossível", se está referir a ser impossivel todos os individuos envolvidos concordarem com isso, tem razão, mas o seu raciocionio pode ser virado ao contrário - também é praticamente impossível todos os individuos envolvidos concordarem com um dado sistema de propriedade privada.

P.ex., mesmo numa sociedade povoada exclusivamente por anarco-capitalistas, continua a haver questões como "O usucapião acontece ao fim de 25 ou de 50 anos? Para sobrevoar um terreno a menos de 2 Kms de altura, um avião tem que pedir autorização ao dono do terreno, ou apenas se for a menos de 100 metros? Quantos décibeis de ruido eu posso fazer na minha propriedade sem se considerar que estou a invadir a propriedade do meu vizinho? A propriedade intelectual não deve existir, deve durar 15 anos após a morte do autor, ou 50 anos? Que penas para quem infringir as regras fixadas para as questões anteriores (ou melhor dito, que compensação têm direito as vítimas dessas infracções)?" (o ancap David Friedman - filho do Milton - tem um texto em que, entre outras coisas, aborda algumas questões que podem surgir numa sociedade anarco-capitalista) e isso implica normas gerais, que só por milagre serão aceites por todos os individuos envolvidos.

Além disso, se, como diz o Dos Santos, a propriedade existe graças ao "reconhecimento mútuo", então sistemas de propriedade mais igualitários terão mais possibilidade de sobreviverem do que sistemas mais desigualitários: quanto mais desigualmente estiver distribuida a riqueza, menor é a probabilidade do tal "reconhecimento mútuo" (estilo "eu respeito a tua propriedade, e tu respeitas a minha") funcionar. Aliás, até anarco-capitalistas como Bruce Benson são da opinião que uma sociedade sem estado pode funcionar melhor se tiver alguns mecanismos de resdistribuição.

"O Miguel acha que o resultado final da "anarquia" é semelhante ao da democracia"

Não sou só eu - o Dos Santos também acha que "A sugestão de que numa sociedade sem Estado, o sistema de direitos de propriedade seria o reconhecido pela generalidade das pessoas nessa área é a correcta" (o que era a base da minha ideia de que a anarquia acabaria por ser parecida com uma democracia).

Mas vendo as coisas de outra maneira (e volto a lembrar que não sou anarquista) talvez possamos considerar que o anarco-socialismo é, na realidade, uma micro-democracia (decisões tomadas democraticamemente à menor escala possível), o "nacional-anarquismo" (i.e., fascismo em versão "small is beutifall") será uma "microcracia" ("estados" geograficamente minúsculos, independentemente do seu regime interno), e o anarco-capitalismo uma forma de feudalismo (governo exercido pelos proprietários fundiários) - note-se que no anarco-capitalismo não pus nenhum "micro": nada impede uma propriedade "anarco-capitalista" de ser maior que um Estado actual.

"Quando disse, e digo, que as pessoas defendem naturalmente a propriedade privada não me refiro em termos políticos. O exemplo prático na política é sempre muito bonito de argumentar porque parece mostrar que as pessoas gostam de propriedade, mas bem regulada ou limitada, quando na realidade esta projecção idealizada se aplica quase exclusivamente sempre à propriedade alheia"

Irrelevante. Claro que a maior parte das pessoas preferiria ter poder absoluto sobre a sua propriedade e que a propriedade alheia fosse limitada. E depois? O facto de a maioria esmagadora das pessoas votarem em partidos marxistas, social-democratas, (ou mesmo democratas-cristãos), etc. indica que consideram que as vantagens de limitar a propriedade alheia são maiores que as desvantagens de ver a sua própria propriedade limitada, logo, se o Estado desaparecesse, continuaria a haver, pelo menos, um sistema de propriedade limitada (recorde-se que um dos poucos pontos em que houve acordo entre mim e Dos Santos foi que "o sistema de direitos de propriedade seria o reconhecido pela generalidade das pessoas numa determinada área").

"não sei porque foi dito na altura que «parece (...) implicito que há "sociedades sem estado" que "não reconhecem propriedade privada além dos bens de consumo imediatos", o que (...) corta pela raiz a tese que o anarco-socialismo é "impossivel" e "absurdo"» uma vez que nunca disse aqui que não poderiam existir bens geridos de forma voluntária colectivamente (comunidades, cooperativas, etc.)"

A propriedade colectiva existente nessas sociedades não é "voluntária" (no sentido de ser uma associação entre proprietários privados). P. ex. uma forma quase universal de propriedade comunitária é uma aldeia, de tantos em tantos anos, dividir a sua terra pelas familias; ora, num sistema desses, alguêm que, na nova distribuição fique com um lote mais pequeno do que tinha antes, não pode "voluntariamente" recusar a redistribuição.

Já agora, diga-se que os "voluntarly establish[ed] (...) mutual insurance arrangements" que Benson fala no texto que citei também são de "voluntariedade" muito duvidosa: afinal, se esses sistemas se mantêm atravês do ostracismo social dos não-contribuintes, e numa sociedade em que a segurança do individuo é garantida pelo apoio dos outros individuos, isso é quase a mesma coisa que ser obrigatório contribuir.

"Tanto os exemplos dados (de coisas completamente descabidas) como reclamar propriedade sobre um deserto ou sobre praias consideradas públicas dão-me a ideia de que o Miguel Madeira ou está muito confuso sobre o que é a propriedade privada ou simplesmente se lembra de uns exemplos bons e propagandísticos para confundir os seus leitores."

Os exemplos têm a ver com a questão da aquisição original da propriedade (que é a questão que está por detrás de todos os debates sobre a propriedade) - claro que os exemplos teriam de ser de coisas fora do usual: a "aquisição original" é algo raro, que só acontece em casos muito especiais. E o exemplo da lagoa no deserto não é meu - limitei-me a roubar o exemplo dado pelo liberal Kirzner.

"Não sei onde é que o Miguel conclui que a propriedade natural é proudhoniana em vez de capitalista. Retirar exemplos de animais, crianças (ou mesma a situação extrema de um naufrágio -- ler esta entrada que se aplica) para extrapolar posteriormente que assim é entre humanos adultos é um raciocínio indutivo, não dedutivo."

Em primeiro lugar, é curioso que, mais atrás, no 2ª parágrafo, Dos Santos tenha criticado o anarco-socialismo por estar destacado "do realismo e do empirismo" e depois criticar o meu raciocinio por ser "indutivo, não dedutivo" (creio que o empirismo pressupõe o raciocinio indutivo).

Os exemplos ideias são mesmo os de crianças e casos como naufrágios - a "propriedade natural" é aquela que emerge "naturalmente", ou seja, é aquela que os individuos estabelecem "instintivamente" quando colocados num estado pré-"sociedade organizada", em que ainda não há leis, propriedade atribuida, etc. Ora, os humanos adultos em situações "normais" vivem num mundo em que a propriedade já está atribuida, logo não podemos observá-los a estabelecerem direitos de propriedade. Quanto aos exemplos tirados dos animais, fazem todo o sentido - afinal, grande parte da nossa herança genética é pré-humana, logo, se queremos ver qual é o sistema de propriedade "instintivo", observar os animais é capaz de não ser má ideia.

Já agora, também não vejo aonde é que o Dos Santos foi buscar a ideia de que a propriedade natural é capitalista em vez de proudhoniana (bem, ele não disse isso, mas parece-me implicito): eu dei exemplos (talvez maus) da propriedade "proudhoniana" a estabelecer-se espontaneamente, mas ele não deu exemplos nenhuns da propriedade "clássica" a estabelecer-se espontaneamente.

"A propriedade proudhoniana refere um direito de ocupação proveniente do "uso regular", mas este uso regular está por definição dependente de um intervalo de tempo a ele associado que ninguém tem a legitimidade de definir arbitrariamente contra a vontade dos indivíduos que ocupam os locais em questão."

Mas é isso que está em questão (criticar a propriedade "proudhoniana" com o argumento de que esta é ilegitima à luz das regras da propriedade "clássica", realmente é andar às voltas numa rotunda...).

"O Miguel está constantemente a referir que eu não uso argumentos sobre a eficácia/eficiência ou apetibilidade do sistema para avaliar negativamente as formas de anarco-socialismo. Como não estou, por princípio, interessado em maximizar o "bem-estar" do colectivo (impossível de definir) em detrimento do bem-estar individual de cada elemento do colectivo, não vejo qual a relevância do assunto"

A razão porque eu estou constantemente a referir isso é porque a mim também não me apetece entrar nessa discussão (esta já dá pano para mangas, como se viu...), e portanto, era mesmo para centrar a discussão nos pontos que discutimos.

Sunday, June 25, 2006

A propriedade "natural"

Por vezes argumenta-se que a propriedade privada é algo que faz parte da natureza humana (p.ex., o Dos Santos nesta discussão com o agitador).

Mas o que é "espontâneo" e "natural" não é a propriedade "capitalista", é a propriedade "proudhoniana" (i.e., definida por "ocupação e uso", à maneira dos "anarquistas individualistas").

Para começar, olhemos para os animais - o território de caça de um gato, o ninho de um casal de cegonhas, a toca de um grupo de coelhos, etc. são "deles" enquanto eles os usarem regularmente. Se eles deixarem de os usar (por morte, por se mudarem para outra área, por deixarem de necessitar deles, etc.), em breve outro animal se apossará deles sem pedir autorização a ninguém.

Olhe-se também para a "propriedade" que surge espontaneamente entre as crianças - no recreio da escola ou na rua. É natural que cada grupo de crianças se estabeleça num dado território e por vezes até reaja com hostilidade se outro grupo ocupar o seu espaço de brincadeira (embora diga-se que as lutas violentas entre grupos de crianças - ou mesmo de jovens - normalmente são mais pela "diversão" do que motivadas por qualquer conflito real de territórios ou coisa assim...). Mas é outra vez a mesma coisa - o território só "é deles" enquanto eles ocuparem regularmente esse território: se eles mudarem para outra escola, ninguém lhes vai pedir autorização para brincar no seu antigo "território"; mais, até é provavel que a mesma área seje "propriedade" de um grupo no turno da manhã e de outro à tarde.

Imagine-se agora um grupo de naúfragos que chega a uma ilha deserta. Claro que ninguém faz ideia do que eles farão exactamente, mas há certas hipoteses mais prováveis que outras.

P.ex, se um dos naufragos chegar morto à costa, e se tiver objectos úteis (digamos, um canivete) de certeza que os outros, mesmo que conheçam a familia do morto, vão utilizar esses objectos sem se preocuparem minimamente com a vontade do proprietário. Porque é que eu faço a referência a "mesmo que conheçam a familia do morto"? Porque, muitas vezes, os liberais/ancaps tentam contornar esta questão respondendo "bens de propriedade desconhecida podem ser livremente apropriados" - ora, se conhecerem os familiares, o proprietário não é "desconhecido": os naúfragos sabem quem são os herdeiros do morto. Até é provável que, se regressarem à civilização, devolvam os seus objectos pessoais à familia, mas de certeza que não lhe irão pagar uma renda, ou uma indemnização por "uso indevido de propriedade".

Continuando a seguir os nossos naúfragos, como é que eles irão gerir os recursos da ilha? O mais provável é que, para os bens abundantes, usem a regra do "cada um serve-se à vontade", e para bens raros adoptem uma divisão igualitária entre os interessados (note-se que estou apenas a falar dos bens pre-existentes - não estou a dizer que eles irão repartir igualitáriamente o peixe que pesquem). De certeza que, para bens escassos, não irão adoptar a regra de "o primeiro a usá-los passa a ser o dono" (que é a regra que os liberais - pelo menos os mais preocupados com questões de principio - defendem).

Se eles se dedicarem à agricultura, é natural que reconheçam o terreno que cada um cultiva como sua propriedade, mas quase que apostava que se um dos naúfragos decidisse, todos os anos, cultivar um terreno diferente do que havia cultivado no ano anterior, apenas lhe seria reconhecida a propriedade do terreno que cultivava em cada momento (ou seja, é duvidoso que alguêm fosse reconhecido como proprietário de quase toda a ilha através desse expediente).

Ora, todos estes actos, que parecem simples bom-senso, mais não são que a propriedade proudhoniana ("o dono é quem usa regularmente o bem em questão" - ou qualquer coisa como "possession is ten tenths of the law") a funcionar.

Claro que o facto de a propriedade "proudhoniana" ser natural e espontânea e a "capitalista" artificial não significa que o sistema proudhoniano seja "bom" por isso (eu até acho um sistema que pode ser muito complicado na prática, sobretudo numa sociedade em que a economia assente bastante nos "bens produzidos", em vez de em recursos naturais) - afinal, há muitas coisas artificias boas (computadores, óculos, vacinas, guarda-chuvas, etc.). Mas a questão é que quem está constantemente a invocar o argumento "o nosso sistema é que é natural" são os defensores da propriedade "capitalista".

A polémica Carson-Reisman

Pelos vistos, há uma acesa polémica entre Kevin Carson e George Reisman acerca do mutualismo:

George Reisman's Double Standard, de Carson,
Mutualism's Support for Exploitation of Labour and State Coercion, de Reisman, 23/06/2006
There He Goes Again, de Carson, 20/06/2006
Mutualism, a Philosophy for Thieves, de Reisman, 18/06/2006

Espero que ainda tenham paciência para me aturarem com este assunto...

No seu post "No comunismo não há voluntários", Dos Santos escreve:

"Numa sociedade livre, as pessoas podem fazer valer os seus direitos quando bem entenderem enquanto numa sociedade anarco-comunista ninguém pode fazer nada porque é forçado a "partilhar" por defeito. Deixa de ser uma sociedade livre onde as coisas são partilhadas por necessidade ou vontade própria para se tornar numa em que nem se pode dizer que haja realmente partilha, mas sim uma obrigação de manter a sua propriedade como colectiva ou comunitária. Não tem outro nome senão o de totalitarismo."

Naquilo a que Dos Santos chama "sociedades livres", as pessoas também não "podem fazer valer os seus direitos quando bem entenderem". Como Dos Santos considera que o exemplo que dei da praia é infeliz, vou dar um exemplo da autoria de um liberal, o economista Israel Kirzner:

"Consider . . . the case . . . of the unheld sole water hole in the desert (which everyone in a group of travellers knows about), which one of the travellers, by racing ahead of the others, succeeds in appropriating . . . We notice that the energetic traveller who appropriated all the water was not doing anything which ... the other travellers were not equally free to do."["Entrepreneurship, Entitlement, and Economic Justice", citação extraída daqui]

Segundo Kirzner, o primeiro membro de um grupo de viajantes no deserto que chegue a um lago de água pode legitimamente proclamar-se seu proprietário (imagino que isso requeira alguma forma de uso, como beber água). Ora, isto significa que, no que Kirzner (e se calhar também Dos Santos) considera uma "sociedade livre", os outros viajantes não "podem fazer valer os seus direitos quando bem entendem" - eles só podem beber água se o novo proprietário autorizar (os liberais - sobretudo os ancaps - tentarão contornar este ponto argumentando que os outros viajantes não têm nenhum direito a beber água, mas isso é um raciocinio totalmente circular).

Dos Santos argumenta que a implementação de um regime anarco-socialista só seria legítima se tivesse a concordãncia de 100% dos individuos afectados por essa implementação. Mas, por essa ordem de ideias, a proclamação de um determidado bem como propriedade privada também só seria legitima se tivesse a concordãncia de 100% dos individuos afectados por essa proclamação (o que inclui não apenas o individuo que faz essa proclamação, mas todos os individuos das redondezas - no exemplo, todos os viajantes são potencialmente afectados pela proclamação da lagoa como propriedade privada).

Já agora, diga-se que na vida real (e sobretudo numa sociedade em que o Estado estivesse ausente - como, aliás, é o mais provável no meio do deserto) esta apropriação de propriedade dificilmente ocorreria: quando o primeiro viajante dissesse "Esta lagoa é minha!", os outros provavelmente pensariam "Já apanhou Sol de mais." e iriam à mesma beber água. E, caso o proprietário imaginário tentasse fazer algo para obrigar os outros respeitar a sua propriedade imaginária, provavelmente iria (parafraseando Salvador) levar uma valente chapada na tromba. Não hando juízes nem notários o que aconteceria a essa pessoa era apanhar uma grande malha, para nunca mais se lembrar de vir aplicar o conceito de propriedade quando ele não faz sentido. Porque é assim que funcionam os humanos.

Saturday, June 24, 2006

Continuando...

Dos Santos:

"Não creio ter dito que o anarco-comunismo era «impossível»"

Eu tinha ficado com essa impressão. Nesse caso, vamos pôr a questão de outra maneira - o Dos Santos acha que é possivel uma sociedade que seja, simultaneamente:

a) uma sociedade sem Estado, isto é, sem uma entidade centralizada que reclame o monopólio da violência legítimo num dado território?

b) uma sociedade em que a propriedade (ou parte substancial dela) seja comunitária (eventualmente com usufruto privado)?

Se a resposta fôr "sim", era esse o meu ponto principal com esta série de posts (claro que, se a resposta fôr "sim", não me parece fazer grande sentido Dos Santos continuar a falar em "pseudo-anarquistas").

"Preocupante mesmo é que os exemplos com que o Miguel tenta refutar a necessidade da propriedade privada sejam de sociedades classificadas como primitivas. Talvez fosse boa ideia ter-se isso em consideração."

O objectivo do exemplo não era refutar a necessidade de propriedade privada; era refutar a necessidade de um Estado para impedir o aparecimento de propriedade privada (ou seja, provar que, mesmo sem Estado, pode haver sociedades em que os principais recursos sejam propriedade comunitária).

Claro que o exemplo teria que ser de sociedades primitivas - não há outros exemplos de "sociedades sem Estado".

Ou melhor, há o exemplo da "anarquia internacional", que até me parece mais parecido com o anarco-socialismo do que com o anarco-capitalismo (embora seja, acima de tudo, uma "anarquia sem adjectivos") Porquê? Porque normalmente considera-se que os "soberanos legítimos" de um país são os seus habitantes (o que corresponde ao conceito anarquista clássico de "ocupação e uso"), não quem tenha adquirido adquirido esse pais no mercado (como seria de acordo com os principios anarco-capitalistas).

Friday, June 23, 2006

O iPod, a China, etc.

O Arrastão e o Blasfêmias estão em polêmica por causa das condições de trabalho na China.

A linha da argumentação é conhecida: no Arrastão fala-se da exploração a que as multinacionais submetem os trabalhadores na China; no Blasfêmias argumenta-se que, sem essas multinacionais, os chineses estariam muito pior.

Provavelmente, têm ambos razão. Mas vamos ver outra questão? Imagine-se um boicote nos paises desenvolvidos às empresas que não respeitam um determinado padrão minimo de direitos laborais (como aconteceu, p.ex., no caso da Nike). Isso será bom ou mau para os trabalhadores dos paises pobres? Pode ser bom ou mau, já que pode ter três efeitos : pode levar a empresa a fechar as suas fábricas lá (efeito mau); pode levá-la a aumentar os direitos laborais (efeito bom); ou pode, pura e somplesmente, não ter efeito nenhum e ninguêm ligar a esses boicotes.

O diferencial de ordenados entre abrir uma fábrica nesses paises ou no "Primeiro Mundo" é tal, que mesmo aumentando os direitos dos trabalhadores, provavelmente continuará a ser rentável manter lá as fábricas (mas pode haver excepções). Há uma situação em que eu não tenho dúvidas que os boicotes são uma estratégia legítima - quando são feitos em ligação com activistas sindicais locais (como acontecia no caso da Nike): afinal, se as próprias pessoas que trabalham nessas empresas apoiam os boicotes, isso quer dizer que elas próprias acham que a possibilidade de terem melhores condições de trabalho (se as coisas correrem bem) compensa o risco de a empresa se ir embora (se as coisas correrem mal).

No caso da China, é verdade, não parece ser esse o caso, já que penso que não há lá nada comparável a sindicatos independentes, mesmo que clandestinos (como havia, p.ex., na Indónesia de Suharto), logo não podemos ter uma ideia (mesmo que aproximada) se os trabalhadores chineses são contra ou a favor desse gênero de boicotes (ou seja, a decisão de alguêm deixar ou não de comprar um iPod por causa da situação dos trabalhadores chineses é mesmo uma decisão que tem que se tomar "às cegas", sem fazer a mínima ideia do que as pessoas que pretendemos ajudar acham disso).

Thursday, June 22, 2006

Acerca de Ayn Rand

O Helder Ferreira escreveu um post no Insurgente acerca deste meu comentário:

"Quanto à Ayn Rand, das duas uma: ou ela iria ser contra o software livre, ou contra o software proprietário, e, em qualquer caso, arranjar uma racionalização qualquer para demonstrar que o sistema que ela embirrasse era "moralmente preverso" (duvido que ela achasse ambos moralmente aceitáveis)."

Em primeiro lugar, uma coisa é verdade: penso que nunca li nada da Ayn Rand (e nunca tive oportunidade de ver a "Vontade Indómita" na televisão), e li muita pouca coisa dos seus discipulos mais ortodoxos; quase todos o que sei dela e do seu movimento foi de fontes mais ou menos criticas (ou de esquerda, ou "rothbardianas") - se tal deriva de um acto deliberado da minha parte, sinceramente, não sei: talvez seja apenas consequência de nas minhas "fontes de leitura" habituais ser mais frequente aparecerem textos críticos de Rand do que a favor.

Portanto, realmente, talvez fosse mais correcto, em vez de "Quanto à Ayn Rand, das duas uma", eu ter escrito "Quanto à Ayn Rand, penso que das duas uma" - afinal, isto não passa de um palpite de alguêm que é tudo menos uma autoridade no assunto.

"Rand tem dois artigos publicados no livro Capitalism: the unknown ideal intitulados The property status of airwaves e Patents and Copyrights"

Quando me referia ao que poderia ser a posição de Rand face aos software livre vs. proprietário, não me estava a referir à sua posição legal (a única coisa que eu sei da posição de Rand nesse assunto é que ela achava que as patentes não deveriam ser perpétuas). Eu estava referindo-me à sua posição moral- creio que, no seu movimento, era frequente serem feitos juizos de valor sobre questões como fumar ou não fumar, ou sobre preferir Rachmaninoff ou Beethoven, etc. em que ter o gosto "errado" era prova de ter uma mentalidade "evasiva", "contrária à vida", "colectivista", etc. (nada, aliás, que não tenha sido também - ou ainda mais - usual do meu lado da barricada politica...). Ora, se nestas questões havia uma linha "correcta" e a "errada", de certeza que numa questão que até tem muito mais relevância social, também iria haver de certeza uma linha "correcta" e a "errada", e um dos dois tipos de software haveria de ser considerado "colectivista" e condenado moralmente. Quanto à minha referência ao "arranjar uma racionalização", há quem argumente que era isso que ela fazia quanto defendia que se devia fumar, ou que não se devia gostar de Beethoven (mas também é verdade que na questão do software talvez não fosse assim, já que é um assunto em que é efectivamente possivel ter uma posição racional sem recorrer a "racionalizações", ao contrário da arte).

Já agora, nem sei se a questão do software livre vs. proprietário terá muito a ver com a questão das patentes: por um lado, o software livre pode ser patenteado (penso que muito é patenteado de acordo com licenças próprias para o assunto); inversamente, não sei se um software não-patenteado mas que seja distribuido só com os ".exe", sem possibilidade de acesso ao código não será à mesma "software proprietário.

Continuando com a discussão sobre o anarquismo

Tenho aqui uma questão para os anarquistas (creio que há pelo menos 2) que lêem este blog:

Imagine-se uma revolução anarquista - o aparelho militar e burocrático do Estado desaparece, os trabalhadores ocupam as empresas e terras, etc.

Então, no meio desse processo, os trabalhadores de uma dada empresa decidem, em plenário, não ocupar a empresa e continuar a aceitar o patrão como... patrão. Este cenário é perfeitamente possível - afinal, se há pessoas que frequentam a Igreja Católica ou se filiam no PCP, é natural que também haja pessoas que prefiram continuar a obedecer à cadeia hierárquica em vez de entrar em autogestão (já agora, podemos tambem lembrar o caso dos camponeses do século XIX, que, muitas vezes, continuaram a pagar os antigos direitos feudais mesmo depois de estes serem legalmente abolidos).

Na vossa opinião, qual devia ser a atitude da sociedade anarquista em redor face a essa empresa?

Wednesday, June 21, 2006

Ainda a questão de quem decide do uso da propriedade comunitária

A respeito da questão, a que Dos Santos faz referência, de quem decide (ou regula...) acerca do uso da propriedade comunitária, creio que um bom ponto de partida poderá ser a imaginada por Neno Vasco no seu livro "Concepção Anarquista do Sindicalismo" (Neno Vasco fala no contexto do anarquismo comunista, mas creio que as suas ideias podem ser aplicadas a outras versões do socialismo anarquista).

"A revolução deve desde logo socializar (...) todos os ramos da produção, transportes e distribuição indispensáveis ao funcionamento de uma sociedade moderna. E como orgãos ao mesmo tempo gerentes e executores desses serviços, não vemos senão as respectivas associações de trabalhadores"

(...)

"A garantia última e decisiva é o direito que (...) todos têm de entrar em cada uma das associações produtoras e de se servir dos instrumentos de trabalho que ela maneja (...)"

"Sob pena de não estarem socializados os meios de produção, nem abolida a autoridade, o sindicato, o grupo profissional do futuro tem de ser aberto e de não possuir exclusivamente os meios de produção. Cada um, se quiser, deve poder mudar de profissão ou até pôr-se a produzir individualmente. Quando, por exemplo, a união local tiver ultrapassado o ponto optimum (...) os que assim o entederem devem poder construir ao seu lado outra federação ou comuna"

Pegando nas ideias de Neno Vasco, e "trabalhando-as" um pouco , podermos ter um sistema simples e descentralizado de gestão da propriedade colectiva:

  • Os bens da comunidade seriam geridos - em democracia directa - pelas associações de produtores (ou de utilizadores)
  • Qualquer pessoa poderia aderir a essas associações
  • Um grupo de membros de uma associação (provavelmente, a partir de uma certa dimensão) poderia constituir-se numa associação autónoma, passando a gerir uma fracção (mais ou menos proporcional) dos bens originalmente geridos pela associação de origem.

Assim, temos todas as condições para o funcionamento de uma sociedade anarco-socialista:

  • não há uma autoridade centralizada: haveria montes de associações, e ainda por cima com possibilidade de se cindirem - só com uma grande elasticidade conceptual se poderia considerar essas associações como "Estados"
  • os bens, em ultima instancia, pertencem a todos (já que todos podem entrar nas associações)
  • e, em caso de disputas em várias pessoas querem utilizar bens em quantidade limitada e não conseguem chegar a um acordo, há uma entidade (a associação que gere os bens em causa) que pode determinar regras para resolver esses casos
Claro que se pode argumentar que continua a haver a possibilidade de não haver entendimento aquando da cisão de uma associação para a divisão dos "seus" bens, mas penso que essas dispitas seriam facilmente solucionáveis (p.ex., poderiam recorrer ao sistema de "um parte e o outro escolhe").

Assim, creio ter demonstrado que uma sociedade sem Estado e com propriedade colectiva pode funcionar, ou seja, que o anarco-socialismo não é conceptualmente absurdo (claro que poderá haver quem diga que o anarco-socialismo é indesejável, injusto, economicamente ineficiente, etc., mas volto a recordar que ponto central do argumento de Dos Santos era que o anarco-socialismo era absurdo e, para funcionar, implicaria um "Estado").

Tuesday, June 20, 2006

Anarquismos - 3º Round - Parte VIII

Finalizando a resposta ao Dos Santos (que já é hora de me ir deitar):

"Não foi argumentado que para que o anarco-comunismo funcionasse 100% dos membros teriam de estar de acordo mas sim que para que fosse válido (no sentido de legítimo), esta condição teria de ser verificada"

Um socialista ou um georgista podem dizer a mesma coisa do capitalismo.

"Acontece que, por natureza, a maior parte das pessoas defende os direitos de propriedade privada. Muitas vezes poderão até dizer o contrário mas é interessante testar os seus instintos e a verdade é que se vivermos sozinhos e a meio da noite ouvirmos alguém a dar passos sorrateiros na sala, não assumimos que seja um anarco-socialista que se sentiu sozinho do outro lado da cidade e decidiu partilhar connosco a nossa propriedade para discutir a exploração laboral até às 4 da manhã mas sim alguém que invadiu a casa e a pretende roubar ou por em causa a nossa integridade física"

O que a maior parte das pessoas defende é "os direitos de propriedade privada fortemente limitados pela intervenção estatal" - olhe-se para as eleições: partidos como os Libertarians norte-americanos ou mesmo o FDP alemão não são propriemente maioritários. Apesar de tudo, suponho que haja mais anarco-socialistas do que anarco-capitalistas.

"Tirando esta minoria, a restante humanidade vive à base do reconhecimento da propriedade privada e assim tem sido desde que nos conhecemos como espécie."

Montes de sociedades o que têm (ou tiveram) é (pelo menos no que respeita à terra) propriedade comunitária (frequentemente conjugada com usufruto privado, através de redistribuições periódicas, etc.)

"A anarquia (estou a falar de uma verdadeira anarquia com privatização da lei e tudo) nunca poderia produzir resultados semelhantes a uma democracia porque não seria regulada pelos interesses da maioria mas sim pelo interesse individual de cada um dos habitantes de um determinado local"

O produto final de cada um desses "interesse individual de cada um dos habitantes de um determinado local" é mais ou menos a mesma coisa que "o interesse da maioria" (pelo menos dos habitantes desse local)

Anarquismos - 3º Round - Parte VII

Dos Santos:

"Uma analogia recorrente poderá ser a de pensar no planeta Terra como um sistema onde diversos estados se organizam de forma anárquica e cada um decide como funcionará. Assim, existem países mais normais e outros menos normais."

A "anarquia mundial" não é equivalente ao anarco-capitalismo. Pela lógica anarco-capitalista, só seriam aceites paises que surgissem com a concordancia da anterior "potencia administrante" do território e governos que subissem ao poder respeitando a "constituição" pré-estabelecida.

Porque é que eu digo isto? Porque a lógica ancap é a de que o proprietário legitimo de algo é o que adquiriu esse algo ao anterior proprietário legitimo. Logo, aplicado isso a países, significa que o "governo legitimo" é aquele que subiu ao poder com o consentimento do (ou de acordo com as regras em vigor no tempo do) anterior "governo legitimo".

Ora, desde sempre que os países e regimes se reconhecem uns aos outros mesmo que tenham subido ao poder em ruptura com a ordem anterior.

Por outro lado, até há uma tendência para aceitar (pelo menos em teoria) o "meta-sistema ansoc" como critério de legitimidade internacional - pelo menos em teoria, é frequente considerar-se que o critério para determinar a legitimidade de um governo ou de um estado é a opinião do povo do território em questão, o que seria a conclusão lógica, à escala de um país/teritório do velha lema anarco-socialista "A terra aos camponeses, as fábricas aos operários, as minas aos mineiros".

Já agora, diga-se que é errado dizer que os anarco-socialistas não toleram outras formas de organização social. Quem ler alguns textos anarco-socialistas, verá que, face à questão "o que fazer se, nalguma zona, os trabalhadores não se revoltam contra os patrões e não ocupam as empresas?", a resposta costuma ser algo do genêro "devemos tentar convertê-los pelo exemplo, mas não nos cabe a nós ir libertá-los contra a vontade deles" - ou seja, os anarco-socialistas toleram a existência de enclaves capitalistas se for claramente essa a vontade expressa do povo desses "enclaves".

Anarquismos - 3º Round - Parte VI

Dos Santos escreve:

"Por exemplo, tem-se estado aqui a dizer que a pessoa poderia trabalhar por conta própria com os meios de produção possuídos pela sociedade e assim produziria para si própria. Imagine-se que gere um pomar e produz laranjas. Mas serão as laranjas para consumo próprio e garantia de subsistência ou um meio de produção? É que essa pessoa pode usá-las para fazer umas tartes de laranja e começar a vendê-las. Ou pegar em linho e algodão e fazer roupas para si, e talvez abrir um negócio pessoal de pronto-a-vestir".

E...?

Qual é a relevância de se saber se as laranjas são um bem de consumo ou de produção? Não vejo qual é.

Anarquismos - 3º Round - Parte V

Continua o debate com Dos Santos.

"Não vejo que seja muito relevante falar de conflitos de propriedade como se fosse algo meramente pertencente a um sistema que reconheça a propriedade privada"

Sinceramente, não me lembro aonde é que disse que os "conflitos de propriedade" são algo que pertence meramente a um sistema de propriedade privada.

"É a comunidade quem define que "propriedade" fica à guarda de uma determinada pessoa? E se essa pessoa preferir gerir a "propriedade" do vizinho? Efectivamente, os conflitos deste género até se tornam mais interessantes num regime que não reconheça a propriedade"

(...)

"Por sua vez, no sistema proposto, cada um poderá realmente argumentar que a propriedade é de todos e por isso mesmo ambos preferem aquela parcela, não se chegando a uma resolução lógica."

"O Miguel diz que numa sociedade anarco-socialista em que a propriedade está definida comunitariamente, a comunidade está encarregue de regular os meios de produção. A menos que o Miguel julgue que a comunidade estaria em peso a tomar as decisões (centenas, talvez milhares de pessoas) e não escolhesse uma forma de "representatividade democrática", não se consegue dissociar esta concepção da de um Estado"

No fundo, o que o Dos Santos está a levantar é a questão de como será feita a afectação da propriedade comunitária pelos diversos individuos (ou mesmo sub-comunidades) que a queiram utilizar. Há várias soluções propostas para isso (nomeadamente, ei-de escrever um post sobre a solução proposta por Neno Vasco em "Concepção Anarquista do Sindicalismo"), mas, regra geral, poderemos dizer que será feita segundo regras estabelecidas por acordo entre os interessados. Claro, e se os interessados no "lote de terreno A" não conseguirem chegar a acordo unânime sobre o uso do lote, e também não conseguem escolher alguêm para servir de árbitro? Bem, ai o que provavelmente aconteceria é que as regras aceites pela maioria dos interessados (se não fossem totalmente gravosas para a minoria) acabariam por ser seguidas pela minoria (pelo raciocinio "mais vale estas más regras do que nenhumas").

Aliás, temos exemplos no mundo real: nenhum país é obrigado a tornar-se membro da União Internacional de Telecomunicações, mas os países aceitam a distribuição das frequências hertzianas por paises feita por esta organização internacional.

Ora (excluindo justamente casos globais, como a das frequências), na maior parte dos casos tal não implica uma decisão tomada por um número gigantesco de pessoas - em principio quem decide do uso de uma dado recurso são as pessoas que querem usar esse recurso (ou, quando muito, as quem querem usar esse típo genérico de recurso), não a comunidade inteira.

Poder-se-á argumentar que isso acaba por ser uma especie de rede de micro-estados, em que várias "associações de utilizadores de recursos" acabariam por funcionar como "governos" na sua área de competência. Talvez sim, mas o mesmo se poderá dizer dos outros "anarquismos" ("anarco-capitalismo", "nacional-anarquismo", etc.). Aliás, no anarco-capitalismo, em principio, nada garante que esses "estados" sejam "micro" (desde que sejam adquiridos no mercado, os ancaps não se opõem a que haja "private estates" maiores do que os actuais Estados - o uso do inglês é mesmo para evidenciar a semelhança entre os conceitos)

Anarquismos - 3º Round - Parte IV

Ainda a resposta a Dos Santos.

"Num regime de anarquismo social - em que a propriedade privada não é reconhecida - não se pode sequer abrir e gerir individualmente uma mercearia, o que inclui a impossibilidade de estabelecer relações laborais"

Pode-se abrir e gerir individualmente uma mercearia em regime de anarquismo social (mas efectivamente, não se pode estabelecer «relações laborais»: se contratar empregados, os seus direitos de usufruto sobre a mercearia passam para os seus empregados).

"A ter em conta, também, que para abolir a propriedade privada é necessário literalmente expropriar os proprietários e não apenas sugerir essas utopias de que a propriedade só é defendida pelo Estado. Para impedir as pessoas de fazer valer os seus direitos de propriedade é necessário recorrer à força contra o próprio proprietário"

Excluindo objectos que estejam na posse directa do proprietário (p.ex., o seu relógio), só é necessário recorrer à força contra o próprio proprietário se ele próprio tomar a iniciativa de recorrer à força para restabelecer a sua propriedade. Um exemplo - os trabalhadores de uma empresa podem ocupá-la sem recorrer à violência física contra o proprietário (que até pode nem estar fisicamente lá) - só necessitam de recorrer à força se o proprietário chamar a policia de choque ou os seus "seguranças".

Anarquismos - 3º Round - Parte III

Ainda a resposta a Dos Santos:

"A resposta é bastante simples: a pergunta deveria estar feita ao contrário. Porque não haveria alguém de desejar trabalhar para outra pessoa?"

A partida, parece-me pouco provável que alguêm queira trabalhar sobre as ordens de outra pessoa se poder trabalhar, em circunstancias semelhantes, mas sem estar sobre as ordens de ninguém (ou, no caso de tratar de uma unidade de produção com vários trabalhadores, digamos, 20, é melhor ter 1/20 de poder que zero).

"Para além de nem todas as relações laborais se estabelecerem na indústria e na agro-pecuária (que é onde a generalidade dos exemplos propostos costuma estar enclausurada), existe o conhecimento ou a técnica necessários para utilizar esses meios da produção de algo. Não parece difícil de imaginar que devido à subjectividade de valor que os tipos de pagamento têm, um determinado empregador poderia oferecer maior benefício (a forma e a quantidade de pagamento) a um potencial empregado do que a comunidade como um todo"

Se percebo bem, o Dos Santos está-se a referir à situação em que alguêm prefere trabalhar sobre a autoridade de outra pessoa devido à sua competência técnica, capacidade de liderança, etc. No fundo, parece-me um caso similar ao que referi de "[c]laro que é perfeitamente possível que num grupo de trabalho, possa surgir alguêm que, por carisma pessoal, competência técnica, etc. acabe por funcionar como "líder" do grupo, mas não acho que isso seja uma relação patrão-empregado" . Admito que podem surgir casos em que o individuo em questão diga "só trabalho com vocês se me obedecerem incondicionalmente; não aceito esse esquema de ser 'consultor técnico' em que vocês só seguem as minhas instruções se quiserem"; talvez aí possamos falar de uma "relação patrão-empregado", mas mesmo assim duvido; só se a) essa regra da obediência estivesse contratualizada; b) esteja contratualizando que, em caso de ruptura desse contrato, seriam os "subalternos" a ter que mudar de trabalho (se assim não fosse, os "subalternos" poderiam sempre despedir o "chefe"); e c) que esse contrato seja legalmente reconhecido na sociedade em questão (caso contrário, é como se não houvesse contrato nenhum). Creio que basta uma dessas alíneas faltar para não podermos falar de relação patrão-empregado.

Quanto ao facto de "nem todas as relações laborais se estabelecerem na indústria e na agro-pecuária" não percebo qual a relevância.

Anarquismos - 3º Round - Parte II

Continuando a responder a Dos Santos.

"O exemplo dessa aldeia é muito interessante. Como seria de esperar, desde que seja essa a vontade dos proprietários, neste caso, a comunidade, tudo parece ser aceitável. Contudo, é também interessante a referência à existência de um governo (é colocado misteriosamente entre aspas...). No texto - e apesar de parecer ter sido escrito propositadamente como forma de panfletário - esta espécie de "governo" da aldeia é eleita pelo povo, não se diz se por via democrática. Mesmo que seja uma via democrática, seria interessante saber se há ou não unanimidade no voto. Como se pode sugerir este exemplo como experiência anarquista, se o anarquismo se opõe a toda a forma de poder político?"

A razão porque eu refiri a aldeia de Aivados foi essencialmente para demonstrar que é possível combinar a propriedade comunitária com a posse individual - nomeadamente, o ponto de os membros da comunidade poderem explorar uma parcela individual da terra colectiva, renunciando à sua parte nos proveitos da exploração colectiva (no texto não faz referencia a isso, mas fala-se disso na tese de mestrado referida, que chegou a estar on-line).

Não foi minha intenção (talvez fosse a do A-Infos) apresentar Aivados como "anarquista" (politicamente imagino - até porque conheço a filha do sr. António Ventura - que sejam predominantemente pró-PS).

A principal objecção que tenho a considerá-la como um caso de "anarquismo" é mesmo por haver uma "comissão" e não ser tudo decidido em assembleia geral. Quanto às decisões não serem tomadas por unanimidade, se houver a tal possibilidade de explorar uma parcela individual (renunciando aos rendimentos da exploração colectiva), isso não é problema: quem esteja descontente com as linhas de gestão adoptadas pela maioria poderá sempre recorrer a essa opção. Além disso, seguindo a lógica de Dos Santos, qualquer herdade alentejana (seja propriedade comunitária, individual ou empresarial) seria um "governo" (posição que até teria uma certa lógica)

Anarquismos - 3º Round - Parte I

Dos Santos responde aos meus últimos posts.

"Estejamos a falar de anarquismo individualista ou de anarquismo social (anarco-sindicalismo/comunismo, etc.), ambos rejeitam o capitalismo. O Miguel diz também que esta rejeição é feita com base no já referido sentido 3, mas é um igualmente um facto que apesar de nomenclaturas simpáticas e visão parcial dada pela crítica marxista implícita nessa definição, o capitalismo não pode existir sem que exista a margem de liberdade (o que não significa que se concretize) para gerar um lucro e criar emprego. Desta forma, estes "anarquistas" poderão rejeitar a "definição" 3 de "capitalismo" mas terão necessariamente de rejeitar 1 que é aliás, exactamente o que fazem os socialistas clássicos (marxismo, por exemplo)"

O anarquismo individualista (sobretudo o norte-americano - Josiah Warren, William Green, Lysander Spooner, Benjamin Tucker, etc.) não rejeita a "definição 1" ("mercado livre") de capitalismo: a base do anarquismo individualista é a de que o "capitalismo" (i.e. o trabalho assalariado e a divisão patrão-empregado) não poderia subsistir num "mercado livre" (Keith Preston, um pensador próximo do anarquismo individualista, até tem um texto intitulado "Capitalism versus Free Enterprise"), já que, segundo eles, são as intervenções do Estado a nivel de "propriedade intelectual", monopólio da emissão de moeda, subsidios às empresas e atribuição da propriedade da terra que tornam possível o "capitalismo".

Uma nota deve ser feita a respeito da propriedade da terra: a maior parte dos anarquistas individualistas (mas não todos) têm uma sobre ela uma opinião muito diferente da dos liberais. Para muitos deles, o direito de propriedade sobre a terra depende da ocupação e uso dessa terra pelo proprietário - ou seja, um proprietário que não trabalhe pessoalmente a sua terra, recorrendo a rendeiros ou assalariados, perde a propriedade da terra. Poder-se-á dizer "isso é totalmente anti-mercado livre", mas acho que não: isso tem a ver com uma questão que precede o "mercado" (livre ou não) - a aquisição original dos direitos de propriedade. Esses anarquistas, tal qual os liberais, acham que o individuo pode transacionar livremente os direitos que possui sobre um determinado bem. Aonde diferem é na questão de que "direitos" o individuo possui à partida sobre esse bem (ou seja, sobre que "direitos" foram estabelecidos no momento da aquisição original da propriedade).

Agora, um aparte: o anarquismo individualista até acaba por ser, nas suas conclusões (apesar do raciocinio para lá chegar ser diferente), parecido (ainda que mais radical) com uma variante do anarco-capitalismo, o "agorismo". Os "agoristas" (como Samuel E. Konkin ou Brad Spengler) defendem frequentemente a ideia que as micro-empresas e os trabalhadores independentes são mais eficientes que as grandes empresas (SEK terá dito que a ineficiência começa quanto há um supervisor recebendo ordens de outro supervisor) e, portanto, só não são a forma predominante de organização económica porque algumas grandes empresas gozam de favores governamentais - o raciocinio deles é mais ou menos este: "o mercado é mais eficiente que a planificação central; quanto maior uma empresa, maior a componente de planificação; logo, quanto maior uma empresa, menos eficiente será".

Aliás, hoje em dia, a fronteira entre "agoristas" e "anarquistas individualistas" é muito ténue, funcionando em "frente unida", p.ex., na Blogosphere of the Libertarian Left.

Na minha opinião, tantos os anarquistas individualistas como os agoristas tendem a ignorar as vantagens "naturais" das grandes organizações, nomeadamente a de conseguirem, frequentemente, comprar por preços mais baratos.

Monday, June 19, 2006

Afinal ainda vou escrever mais qualquer coisa

Apesar de ter falado em "aparte final", ainda vou fazer mais um comentário à tese de Dos Santos sobre o anarquismo.

O seu ponto era que o anarco-socialismo era "absurdo", que para funcionar "necessita de um Estado para impor a sua visão (...) de como deve ser a sociedade". Ou seja, ele não se limitou a dizer que o anarco-socialismo era "ineficiente", "imoral" ou "indesejável" - argumentou que era impossível.

Há uns dias, a Causa Liberal divulgou um paper de um economista da Universidade de West Virginia, "Efficiente Anarchy"[pdf], sobre as situações em que uma "sociedade sem estado" poderia ser mais "eficiente" que uma "sociedade com estado" - ele argumenta que há duas instancias de "sociedade sem estado": muitas "sociedades primitivas", por um lado, e a "comunidade internacional", por outro .

Não é pelas as conclusões que ele tira que eu refiro este estudo, é apenas por um detalhe: ao explicar as razões porque, para as "sociedades primitivas" pode não ser "eficiente" ter um "Estado", o autor escreve (pag.14): "[i]ndividuals in primitive societies often have very similar endowments. Because they are frequently egalitarian and do not often recognize private ownership beyond the level of direct consumables..." (para se perceber o contexto em que ele escreve isto, convém ler o texto todo).

Aonde é que eu quero chegar com isto? É que, pelo texto, parece-me implicito que há "sociedades sem estado" que "não reconhecem propriedade privada além dos bens de consumo imediatos", o que creio cortar pela raiz a tese que o anarco-socialismo é "impossivel" e "absurdo" (note-se que, neste post, estou apenas a questão da "possibilidade" do anarco-socialismo, não a questão da sua "eficiência", "justiça" ou "desejabilidade", já que me pareceu ser o ponto central do argumento de Dos Santos).

Sunday, June 18, 2006

Acerca das quotas

Por norma, os maiores defensores das quotas (de 1/3 para cada sexo) nas listas eleitorais são os maiores opositores das quotas (de 50% para cada sexo) nos casamentos e vice-versa.

Saturday, June 17, 2006

Re: Re: O anarco-comunismo é absurdo? - Um aparte final

O Pedro, em resposta ao Luis Pedro, escreveu:

"O "desrespeito pelos direitos de propriedade" de que o luispedro diz que teria lugar num sistema anarquista existe de maneira muito mais explícita no seu sistema capitalismo, pois o Estado Capitalista reprime violentamente e sistematicamente todos aqueles que exigem o direito de propriedade de algo, menos aquele - o proprietário "legítimo" - que protege, invariavelmente o mais poderoso social e economicamente entre aqueles em contenda"

Dos Santos responde:

"a sugestão, provavelmente por influência da luta de classes marxista, de que o capitalismo protege a propriedade dos mais poderosos é uma concepção errada. O capitalismo não faz julgamentos morais acerca de quem tem mais ou menos poder, mais ou menos recursos monetários e o direito de propriedade deve ser respeitado independentemente de quem o reclama"

Ora é dificil de desmentir que "Estado Capitalista" (ou seja, o Estado) protege a propriedade dos mais poderosos. Se assiuirmos que:

a) O Estado protege a propriedade

e

b) Quem tem mais propriedades é mais poderoso (pelo menos economicamente)

Então, quase por dedução lógica, o "Estado Capitalista" protege os que são mais poderosos (já que são os que auferem mais da protecção da propriedade pelo Estado).

Re: Re: O anarco-comunismo é absurdo? - III

Dos Santos escreve:

"Outra questão que surge é - quem dá o direito aos que adoptem um sistema, como o de instalar comunas, de o impor, definir a forma de produção das comunidades alheias e dos seus elementos mesmo contra a sua vontade?"


Essa objecção pode ser aplicada a qualquer sistema de propriedade - em qualquer sistema de direitos de propriedade (seja ele capitalista, feudal, distributista, georgista, tuckerista, estato-socialista, anarco-socialista, etc.) toda a gente que vive numa dada comunidade geográfica é obrigada a respeitá-lo, quer queira quer não (na realidade, se cada individuo fosse livre de escolher que sistema de direito de propriedade iria respeitar, isso significaria a abolição pura e simples da propriedade).

"O comentário do Miguel assume implicitamente uma visão da propriedade como algo não natural, sendo apenas um resultado final da lei imposta pelo Estado. Acontece que esta visão dos factos não representa a realidade e aí reside toda a confusão sobre a ideia de que o anarco-conumismo é válido ao idealizar um sistema em que o conceito de propriedade é distinto de qualquer ideologia que defenda a liberdade. Claro que poderemos imaginar que 100% das pessoas desejariam ter um regime anarco-comunista - caso em que este seria válido - mas isso é totalmente ingénuo, como eu sugeria na entrada anterior. Assume-se que ninguém estaria a favor de um reconhecimento (mesmo que mínimo) da propriedade privada, o que é totalmente contra a natureza humana e todo o panorama oferecido pela história da humanidade que, na verdade, não pode ser dissociada da anterior"

Quanto ao argumento de que, para funcionar, o “anarco-comunismo” implicaria que 100% das pessoas estivessem de acordo em não estabelecer propriedade, quase que diria que é exactamente ao contrário – se não existisse qualquer espécie de coacção, o estabelecimento de direitos de propriedade é que implicaria que 100% das pessoas concordassem com ele (e nos termos propostos). Se algum individuo não concordasse com a existência de propriedade (ou concordasse em abstracto, mas discordasse com o direitos de propriedade instituídos em concretos), poderia desrespeitá-la à vontade, e se alguém lhe dissesse “Não mexas ai que isso é meu!” ele poderia argumentar “Como é que é seu? Eu não assinei nenhum acordo reconhecendo-o como proprietário deste bem (ou aceitando como válido o processo que usou para estabelecer o seu título de propriedade sobre este bem). Se as outras pessoas o reconhecem como dono deste bem, isso é lá com elas, que eu não o reconheço e acabou!”.

Claro que isto é um exagero da minha parte – não é nem 100% para uma coisa, nem 100% para outra. Numa sociedade sem Estado, o sistema de direitos de propriedade em vigor numa determinada área acabaria, na prática, por ser o sistema aceite como válido pela generalidade das pessoas nessa área.

Regressemos ao exemplo da praia: imaginemos que eu me proclamo – usando uma qualquer justificação - proprietário de um pedaço da praia e digo que só pode lá entrar quem me pagar; alguém recusa-se a pagar-me e entra na praia à mesma (caso eu tenha feito uma vedação, corta-a). Eu recorro a uma “agência de protecção” para “expulsar os invasores”; as pessoas que querem ir à praia recorrem a uma “agência de protecção” (ou uma “associação de protecção”) para os “proteger dos gangues armados que semeiam o terror na praia” (i.e., da minha AP). O que aconteceria?

Claro que é difícil prever o desfecho de uma situação destas, mas é legitimo supôr que uma AP que se predispussesse a defender "direitos de propriedade" que muita gente achasse "ilegitimos" iria envolver-se muito frequentemente em situações de conflito, logo teria custos mais elevados, e em pouco tempo, ou iria à falência (se funcionasse como uma empresa comercial), ou ficaria sem associados (se funcionasse como uma associação de protecção mútua). Assim, o comportamento racional para as APs seria protegerem e respeitarem o sistema de direitos de propriedade que, numa dada área geográfica, fosse aceite pela maior parte das pessoas (tentar fazer cumprir um sistema de aceitação minoritário seria muito caro), tornando rarissimos conflitos do género acima descrito.

Ou seja, numa região aonde o sentimento predominante fosse a de que as praias devem ser públicas, dificilmente apareceria uma AP que aceitasse proteger o "privatizador" da praia. Pelo contrário, numa região aonde o sentimento predominante fosse a de que as praias podem ser privadas (e se o tal "privatizador" tivesse estabelecido a sua propriedade pelas formas socialmente aceites), dificilmente apareceria uma AP que aceitasse proteger os "anti-privatizadores" (não me perguntem exactamente a partir de que grau de aceitação um sentimento passa a ser "predominante").

O "anarco-capitalista" Wolf DeVoon até tem uma expressão interessante: "Your title deed exists only in the sense that your neighbors consent to that privilege".

[Aliás, uma das razões porque eu não me considero anarquista é porque acho que, se funcionar, a anarquia produzirá resultados muito parecidos com uma democracia (embora mais "directa" e "descentralizada"), logo não há grande utilidade em fazer finca-pé no anarquismo]

Friday, June 16, 2006

Re: Re: O anarco-comunismo é absurdo? - II

Continuando a responder ao Dos Santos.

"É impossível abolir a propriedade sem abolir implicitamente o comércio livre. O comércio poderá existir, é claro, mas não por isso será livre já que os indivíduos não teriam direito a deter a propriedade sobre nenhum dos meios de produção. Como pode ser isto considerado livre?"

Para falar a verdade, eu também não sei se poderemos falar em "comércio livre" no contexto do anarco-socialismo (no fundo, o que eu queria dizer, era que o "comércio livre" não seria abolido por si, mas que talvez morresse de "morte natural", por deixar de existir muita da sua base), mas apesar de tudo, talvez sim. Uma analogia: imagine-se que eu compro um bilhete para ir ao cinema; até começar o filme, eu posso perfeitamente vender o bilhete a outra pessoa (para falar a verdade, não sei se isso é legal, mas, mesmo que seja ilegal, é quase impossível impedir isso); no entanto, não posso vender a alguém o "direito permanente" aquele lugar. Será que isso é um limite ao "comércio livre"? Em principio, não: eu não tinha o direito permanente a me sentar naquele lugar, apenas tinha o direito a me sentar lá naquela sessão, logo, posso transacionar livremente aquilo que tenho.

Da mesma maneira, numa sociedade anarco-socialista, os individuos não possuem "propriedade", apenas direitos de "usufruto", e podem fazer entre si trocas com o que têm (os tais direitos de usufruto).

"E se o anarco-comunismo, como foi dito acima, «reconhece o direito de um individuo não pertencer a nenhuma comuna nem a nenhum "colectivo de trabalhadores" e ir trabalhar por conta própria», como é que pode, em simultâneo, abolir a propriedade privada e consecutivamente impedir que este indivíduo trabalhe por conta própria?"

O individuo pode trabalhar por conta própria usando a propriedade da comunidade. Volto a lembrar que a propriedade comunitária em anarco-socialismo não é estilo "empresa pública", em que a "comunidade" decide o que fazer com ela; é mais estilo "rua pública", que está à disposição dos individuos para estes a usarem - individual ou colectivamente - de acordo com os seus desejos/necessidades, limitando-se a "comunidade" a regular o seu uso de forma a que os individuos não se incomodem uns ao outros no uso que fazem da rua (a "comunidade" está entre aspas, porque, actualmente, quem gere as empresas públicas e regula as ruas públicas é o Estado).

Re: Re: O anarco-comunismo é absurdo?

Dos Santos responde ao meu post sobre o "anarco-comunismo":

"Se é proposto que um indivíduo tenha o direito de não pertencer a nenhuma comunidade em específico e não tenha forçosamente de fazer parte de um colectivo de trabalhadores, como se impede - sem coerção, atenção - que a sociedade se fragmente e crie uma economia capitalista, por sua conta, em que a propriedade possa ser definida livremente a nível individual? Existe uma diferença entre o anarco-comunismo definir que os indivíduos devem associar-se em comunas e simplesmente achar que assim deve ser. Se o anarco-comunismo propõe um sistema em que as pessoas são livres de decidir, então estaremos, provavelmente, a falar de anarco-capitalismo, onde não há restrição a definir a propriedade de forma individual ou associativa, contando que não se interfiram mutuamente de forma a respeitar os direitos dos seus membros (seja a vontade destes em manter uma associação com uma gestão colectiva ou de proteger a propriedade privada)."

Em primeiro lugar, é conveniente acertar definições (que, como o Dos Santos bem tem dito, são fundamentais para se poder discutir). Primeiro, vamos definir o que é "anarco-comunismo".

O anarquismo clássico divide-se em dois ramos: o anarquismo individualista, defensor de uma sociedade de pequenos proprietários; e o anarquismo social, que defende a propriedade comunitária combinada com usufruto individual ou colectivo. Um exemplo disso, em ponto pequeno, poderá ser dado por uma aldeia que possua colectivamento um terreno e estipule que cada habitante poderá utilizar meio hectare de terreno, havendo assim algumas pessoas a utilizar individualmente o "seu" meio hectare, grupos de 10 pessoas a utilizar colectivamente 5 hectares, grupos de 20 a utilizar 10 hectares, etc. (um exemplo real: a aldeia de Aivados, no Alentejo, possui colectivamente um herdade; essa herdade é explorada colectivamente, mas quem preferir pode explorar sozinho uma parcela do terreno, renunciando à sua parte nos proveitos da exploração colectiva).

Agora, "anarco-comunismo" é a sub-corrente do anarquismo social que defende que a melhor maneira de os individuos utilizarem a propriedade comunitária é trabalharem em conjunto, em comunidades de produtores-consumidores sem uso de dinheiro (ao contrários de outras facções, que propõem diferentes formas de organização) mas reconhecendo, sempre, o direito de trabalhar sozinho, para quem o preferir. Esta distinção é importante, porque, sobretudo nas críticas ao "anarco-comunismo", às vezes não se percebe muito bem se se está a falar do "anarco-comunismo" ou do "anarquismo social" em geral.

Quanto a "capitalismo", é sabido que, quando os anarquistas usam esta expressão, estão-se a referir à "definição 3", i.e., empresas usando trabalho assalariado e dirigidas pelo proprietário do capital (ou pelos seus representantes).

Portanto, se a questão for "como é que numa sociedade organizada segundo os principios do anarquismo social se impede o aparecimento de relações patrão-empregado?", a resposta é por que é que alguém haveria de querer trabalhar para um patrão se, à partida, tem tanto direito como ele a utilizar os bens da comunidade, nomeadamente os instrumentos de trabalho? Para que é que, numa sociedade anarco-socialista, alguêm precisa de trabalhar para um patrão?

Podemos fazer uma analogia com uma praia (sem áreas concessionadas). Em certos aspectos, até faz lembrar uma sociedade anarquista: a praia é publica, aberta a todos, usando-a uns individualmente, outros em familia, outros em grupo, etc. Poderia-se perguntar "o que é que impede alguêm de estabelecer direitos de propriedade sobre uma parte da praia e começar a cobrar renda ou portagem a quem lá ir?", mas a resposta é "o que é que impede alguém de ignorar essa proclamação e ir à praia recusando-se a pagar seja o que fôr ao suposto proprietário?".

Claro que é perfeitamente possível que num grupo de trabalho, possa surgir alguêm que, por carisma pessoal, competência técnica, etc. acabe por funcionar como "líder" do grupo, mas não acho que isso seja uma relação patrão-empregado.

A respeito da "coerção" que o Dos Santos fala, o que é que se entende por "coerção"? Se for "forçar/impedir alguêm a/de fazer alguma coisa atravez do uso da força (ou ameaça)", então uma sociedade sem coacção seria uma espécie de versão extrema do anarco-socialismo (que penso que ninguém defenda), em que qualquer bem que não estivesse na minha posse fisica mais directa poderia ser usado livremente por qualquer um, já que a ameaça do uso de força para impedir tal coisa seria "coacção".

Podemos, em vez disso, definir "coacção" como "uso (ou ameaça de uso) da força contra direitos legítimos", mas então aí o conceito de "coacção" torna-se completamente circular (voltar a chamar a atenção para o que Kevin Carson escreve a esse respeito): o uso de força necessário para fazer respeitar a propriedade "capitalista" seria "coacção" na prespectiva de um socialista, e o uso de força necessário para fazer respeitar a propriedade "anarco-socialista" seria "coacção" na prespectiva de um liberal.

Thursday, June 15, 2006

Haverá alguma ligação entre personalidade e ideias politicas?

Há uns tempos, num forum afecto aos "anarquistas de direita" (deixando de lado a questão se isso existe), alguêm (baseado, pelos vistos, em observações em fórums) apresentava a tese que os "anarquistas de direita" tenderiam a ter uma personalidade "INTJ" e os de esquerda a ter uma personalidade "INTP".

Para começar, é melhor explicar o que é isso - essa terminologia pertence a uma "teoria de personalidade", o Myerr-Briggs Type Indicator, que sustenta que a nossa personalidade pode ser descrita por quatro dimensões:

  • Se somos introvertidos (I) ou extrovertidos (E)
  • Se somos "intuitivos", i.e., imaginativos (N), ou "sensitivos", i.e., ligamos sobretudo aos factos concretos (S)
  • Se analisamos as situações através do raciocinio (T) ou dos sentimentos (F)
  • Se gostamos das coisas bem organizadas (J) ou se preferimos situações pouco estruturadas (P)
Agora, independentemente de o MBTI ter ou não lógica (eu tenho muitas dúvidas, diga-se de passagem), o facto é que, de acordo com este teste, eu sou um INTP e, efectivamente, até simpatizo com alguns aspectos do "anarquismo de esquerda", tal como o outro dizia no forum. Será que sempre pode haver realmente alguma ligação entre uma coisa e outra?

Por outo lado, fazer observações dessas com base em forums da internet e afins pode ser enganador - é provavel que as variantes de "INT" estejam fortemente sobre-representadas entre os utentes da internet.

[Para uma descrição ortodoxa do que é suposto ser um "INTP", ver aqui ou aqui; também há descrições mais ou totalmente heterodoxas].

Tuesday, June 13, 2006

Para falar a verdade...

Prefiro considerar-me "esquerda camarão-tigre grelhado" (não gosto muito de ovas de peixe).

O que quer dizer "capitalismo"?

Dos Santos, a respeito dos possíveis sentidos da palavra "capitalismo", escreve que "as demais são distorções intelectualmente desonestas do significado da palavra por motivos de oposição crítica e com mera intenção de denegrir a matéria para o efeito da qual se argumenta contrariamente", referindo-se, penso eu, às definições "2" e "3" de "capitalismo" (recorde-se que a "definição 2" é "um sistema em que o Estado apoia as grandes empresas" e a "3" é "um sistema em que os trabalhadores trabalham para um patrão proprietário dos meios de produção").

Se percebi efectivamente o que Dos Santos pretendia dizer, acho que é exactamente o contrário - a definição original de "capitalismo" (termo que, recorde-se, foi inventado pelos socialistas) era a "3", e a "1" ("mercado livre") só surgiu mais tarde, já por contraposição ao "socialismo de estado" (quanto à "2", penso que quase ninguém a utiliza - talvez apenas os "left-libertarians" norte-americanos).

Mas, será que esta questão ("o que quer dizer capitalismo") tem alguma importãncia? Eu primeiro pensei que não, mas pensei melhor no assunto e conclui que até é bastante importante: no fundo, todo o argumento de "como é que os anarquistas querem acabar com o mercado sem um estado?" (ou de que "o socialismo, para subsistir, tem que impedir actos capitalistas consentidos entre adultos") baseia-se nessa confusão.

Dia de St. António

Isto é estranho para um algarvio, mas foi em Lisboa, nos St. Antónios, que comecei a comer sardinhas à mão - mas, como se pode ver pelos meus comentários a este post do CMF, eu devo ser um algarvio um bocado degenerado.

Ainda no outro dia fui comer peixe assado com os meus colegas de trabalho, e ficaram todos escandalizados por eu comer sardinhas de faca e garfo. No entanto, por coincidência, os meus pais também foram a esse restaurante nesse dia e os meus colegas - ao verem que eles também usavam faca e garfo - disseram que eu estava desculpado.

Conclusão: eu sou, sem dúvida, "esquerda caviar" (já que tive uma educação claramente burguesa, em que até aprendi a comer sardinhas de faca e garfo).

O anarco-comunismo é absurdo?


"[O] anarco-comunismo é uma forma de pseudo-anarquismo em que se advoga a abolição do Estado e, simultaneamente, do sistema de economia capitalista. Ora, isto é ingénuo (para não dizer completamente absurdo) dado que é impossível remover as estruturas estatais e, ao mesmo tempo, impedir que exista, na sua forma mais natural, o comércio livre."

Em primeiro lugar, informo os leitores que não sou anarquista (a minha posição entre o anarquismo e as versões "antiburocráticas" do marxismo é de agnosticismo, tendo ambos os lados pontos com que concordo).

Mas o ponto é que os anarco-comunistas não pretendem impedir o "comércio livre" per si - o anarquismo reconhece o direito de um individuo não pertencer a nenhuma comuna nem a nenhum "colectivo de trabalhadores" e ir trabalhar por conta própria, relacionando-se com os outros individuos (e comunas, sindicatos, etc.) de forma "mercantil". O anarco-comunismo acha que é melhor os indíviduos associarem-se em "comunas" em vez de trabalharem por conta própria, não que os individuos têm que pertencer a "comunas".

Então, se os anarquistas sociais (de que os anarco-comunistas são apenas uma facção) não querem abolir o "comércio livre", o que é que querem abolir? Resposta: a propriedade! Claro que os individuos continuarão a poder "ter" a "sua" casa, as "suas" ferramentas de trabalho, etc. Não poderão ter é bens que lhes permitam comandar o trabalho dos outros - p.ex., um individuo não poderá possuir uma fábrica (que, em principio, será propriedade da comunidade, tendo os trabalhadores como usufrutuários).

Mas, poder-se-á perguntar, para abolir a "propriedade" não é preciso um "Estado"? Como é que, sem "Estado", se vai impedir quem queira de possuir uma fábrica, uma grande fazenda, ou o que fôr? É que a abolição da propriedade não requer nenhum acto "positivo" - não é necessário que um "Estado" vá confiscar a fábrica ao seu proprietário; é apenas necessário um acto "negativo" - que não haja nenhum "Estado" para fazer respeitar a "propriedade" do "proprietário".

Sunday, June 11, 2006

Linux, Wikipedia, etc. - capitalistas, comunistas ou o quê?

No LewRockwell.com, há este texto, "Linux is Capitalist" (via My Guide to your Galaxy):

"In 2000, Microsoft's Steve Ballmer made a questionable remark: he referred to Linux (and the open source/free software community) and its development process as "communist." He said that "Linux is a tough competitor. There's no company called Linux, there's barely a Linux road map. Yet Linux sort of springs organically from the earth. And it had, you know, the characteristics of communism that people love so very, very much about it. That is, it's free." Ballmer's statements show his ignorance of economics and the nature of human action."

"Free market capitalism is not characterized specifically by the existence of companies, but by individuals who, thanks to private property, plan the most efficient way of attaining their ends. Companies are in many cases the most adequate unit of calculation for carrying out entrepreneurial action but this is not always the case. They are not the prerequisite of capitalism, but an organizational consequence of it."

"Just because a product is free of charge it does not mean that it is communist. Communism means complete state ownership of every resource within its reach and thus the impossibility of human action without the authorization of the Central Planning Board; it means the absolute lack of private property, including body ownership and labor. Thus, when Ballmer exclaimed that Linux had the characteristics of communism, he completely erred."

"Linux and free software programmers often do not receive any financial compensation whatsoever. Indeed, the "Free software community" is a group of people who voluntarily use their time and skills. But just because they donate time and labor it does not mean that this is communism. On the contrary, they freely direct their human action to the fulfillment of their ends, without any centralized imposition about what had to be done; people are exchanging their scarce resources (time and labor) to satisfy their ends. In the case of the Linux programmer, the end can range from fixing a software bug to adding a new feature or enhancing documentation. Where is the communism here? How is this socialist? Linux is a market phenomenon, just as charity is."

"And as we mentioned above, communism implies that the invested money, time and skills (any means of human action) must be state owned. If Mr. Ballmer were right, then the state must own Linux and direct the time and labor of the coerced "volunteers." As much as he would like to believe that, the development of free software is not communist"

Bem, isso depende tudo das definições utilizadas. Mas, em primeiro lugar, convém ser coerente no uso das definições: p.ex, no seu post sobre o assunto, Dos Santos escreve "a quantidade de vezes que é necessário apontar isto, incluindo a próprios participantes nos projectos de software livre que julgam estar a contribuir para a causa anarco-comunista". Ora, não se pode demonstrar que o Linux não é "anarco-comunista" a partir do texto citado: o texto claramente define "comunismo" como um sistema "em que tudo é propriedade do Estado e que qualquer acção humana precisa de autorização do Departamento de Planeamento Central", logo o "anarco-comunismo" não está incluido na definição.

Mas, será que o software livre/open source (ou, já agora, projectos como a Wikipedia) são "capitalistas"? Charles Johnson escreve que "capitalismo" pode significar 3 coisas:
  1. The free market: capitalism has been used, mostly (but not exclusively) by its defenders to just mean a free market, i.e., an economic order that emerges from voluntary exchanges of property and labor without government intervention (or any other form of systemic coercion).

  2. The corporate State: capitalism has also been used, sometimes by its opponents and sometimes by the beneficiaries of the system, to mean a corporate State—that is, active government support for big businesses through instruments such as subsidies, central banking, tax-funded infrastructure, development grants and loans, special tax exemptions, funding plants, acquiring land through eminent domain, government union-busting, and so on down the line. Since government intervention is always, by nature, either services funded by expropriated tax dollars or regulations enforced from the barrel of a gun, it’s worth noting that being capitalist in the sense of a free marketeer requires being anti-capitalist in the sense of opposing the corporate State, and vice versa. The fact that state socialists and the anti-communist Right have spent the past century systematically running these two distinct senses of capitalism together (in order to make it seem that you had to swallow the corporate State if you believed in the free market—which the Marxists used for a modus tollens and the Rightists used for a modus ponens) doesn’t make these two any less distinct, or any less antagonistic.

  3. Boss-directed labor: third, capitalism has been used (by for example, Marxians and socialists who are careful about their use of language) to refer to a specific form of labor market—that is, one where the dominant form of economic activity is the production of goods in workplaces that are strictly divided by class. Under capitalism in the third sense, most workers are working for a boss, in return for a wage; they are renting out their labor to someone else, in order to survive, and it is the boss and not the workers who holds the title to the business, the shop, and the tools and facilities that make the business run. (Or, as the Marxists would have it, the means of production.) It’s worth noting that capitalism in this third sense is a category independent of capitalism in either of the first two senses: there are lots of different ways that a free labor market could turn out (it could be organized in traditional employer-employee relationships, or into worker co-ops, or into community workers’ councils, or into a diffuse network of shopkeeps and independent contractors) and someone who is an unflinching free marketeer might plump for any of these, or might be completely indifferent as to which one wins out; whereas an interventionist statist might also favor traditional employer-employee relationships (as in Fascism) or any number of different arrangements (as in various forms of state socialism).

Adoptando estas 3 possíveis definições, creio que estes projectos são "capitalistas" no sentido "1" (se descontarmos o facto de se basearam na Internet, uma rede criada pelo Estado e cuja infra-estutura é mantida, muitas vezes, por empresas fortemente reguladas), mas já não serão no sentido "3". Claro que a novidade aqui é ter sido um "capitalista" (o Steve Ballmer) a, implicitamente, ter adoptado a "definição 3" (algo que, em público, só os socialistas costumam fazer).

Já agora, diga-se que a "linha oficial" dos "rockwellianos" costuma ser a de que "o socialismo não funciona porque, sem propriedade privada não há mercados, sem mercados não há preços, e sem preços não há cálculo económico racional". Esse raciocínio já foi refutado em vários sitios (até por outros anti-socialistas), mas, se seguirmos a sua lógica, tal significa que o software livre, a wikipedia, etc. serão "quase-socialistas", já que também não recorrem muito aos preços.

Adenda: como nota o Luis Pedro nos comentários, Bryan Caplan (o tal "outro anti-socialista"), não "refuta" a tese "austríaca" de que o cálculo racional é impossível em "socialismo". Caplan apenas afirma que não se pode, de um ponto de vista puramente teórico, concluir se (e a partir de que dimensão - 2, 100, 1.000 pessoas?) os problemas de cálculo serão suficentemente fortes para, só por si, tornarem o socialismo impossível de funcionar (e se este não terá problemas mais graves).