"As teorias anarco-socialistas andam às voltas para explicar que a propriedade é comunitária mas pode ser gerida individualmente. É importante referir que mesmo que isto fosse verdade, haveria uma entidade em representação da comunidade que estaria responsável por fazer a distribuição da propriedade. Isto é uma forma de governo. Não é uma anarquia. Sugerir que tudo pode ser resolvido em assembleia geral, para além de muito criativamente fértil e romântico, constitui uma forma de democracia e não uma anarquia."
(...)
"O Miguel diz que há "soluções propostas" para os casos de distribuição da propriedade mas acontece que numa sociedade anarquista não há "soluções" desse género, há processos descentralizados. As pessoas agem por si mesmas. Estar a querer inventar soluções para a distribuição de terrenos é o mesmo que ter uma agencia central (novamente, leiam os mais confusos qualquer palavra mais eufemística) a decidir quem tem direitos a explorar que terreno. Ao passo que num regime de propriedade privada há um reconhecimento mútuo feito pelas pessoas, nessa situação, essa agencia não tem legitimidade para fazer tal coisa a menos que seja reconhecida pelos envolvidos (o que é praticamente impossível)."Aqui já dei um exemplo de como a propriedade comunitária pode ser gerida sem um autoridade centralizada.
Essas "soluções" (como a que referi acima, que não implica nenhuma "agência central") podem ser implementadas com base no "reconhecimento mútuo feito pelas pessoas". Se, quando Dos Santos diz que tal é "praticamente impossível", se está referir a ser impossivel
todos os individuos envolvidos concordarem com isso, tem razão, mas o seu raciocionio pode ser virado ao contrário - também é praticamente impossível todos os individuos envolvidos concordarem com um dado sistema de propriedade privada.
P.ex., mesmo numa sociedade povoada exclusivamente por anarco-capitalistas, continua a haver questões como
"O usucapião acontece ao fim de 25 ou de 50 anos? Para sobrevoar um terreno a menos de 2 Kms de altura, um avião tem que pedir autorização ao dono do terreno, ou apenas se for a menos de 100 metros? Quantos décibeis de ruido eu posso fazer na minha propriedade sem se considerar que estou a invadir a propriedade do meu vizinho? A propriedade intelectual não deve existir, deve durar 15 anos após a morte do autor, ou 50 anos? Que penas para quem infringir as regras fixadas para as questões anteriores (ou melhor dito, que compensação têm direito as vítimas dessas infracções)?" (o ancap
David Friedman - filho do Milton - tem
um texto em que, entre outras coisas, aborda algumas questões que podem surgir numa sociedade anarco-capitalista) e isso implica normas gerais, que só por milagre serão aceites por todos os individuos envolvidos.
Além disso, se, como diz o Dos Santos, a propriedade existe graças ao "reconhecimento mútuo", então sistemas de propriedade mais igualitários terão mais possibilidade de sobreviverem do que sistemas mais desigualitários: quanto mais desigualmente estiver distribuida a riqueza, menor é a probabilidade do tal "reconhecimento mútuo" (estilo "eu respeito a tua propriedade, e tu respeitas a minha") funcionar. Aliás,
até anarco-capitalistas como Bruce Benson são da opinião que uma sociedade sem estado pode funcionar melhor se tiver alguns mecanismos de resdistribuição.
"O Miguel acha que o resultado final da "anarquia" é semelhante ao da democracia"Não sou só eu - o Dos Santos também acha que
"A sugestão de que numa sociedade sem Estado, o sistema de direitos de propriedade seria o reconhecido pela generalidade das pessoas nessa área é a correcta" (o que era a base da minha ideia de que a anarquia acabaria por ser parecida com uma democracia).
Mas vendo as coisas de outra maneira (e volto a lembrar que não sou anarquista) talvez possamos considerar que o anarco-socialismo é, na realidade, uma micro-democracia (decisões tomadas democraticamemente à menor escala possível), o
"nacional-anarquismo" (i.e., fascismo em versão "small is beutifall") será uma "microcracia" ("estados" geograficamente minúsculos, independentemente do seu regime interno), e o anarco-capitalismo uma forma de feudalismo (governo exercido pelos proprietários fundiários) - note-se que no anarco-capitalismo não pus nenhum "micro": nada impede uma propriedade "anarco-capitalista" de ser maior que um Estado actual.
"Quando disse, e digo, que as pessoas defendem naturalmente a propriedade privada não me refiro em termos políticos. O exemplo prático na política é sempre muito bonito de argumentar porque parece mostrar que as pessoas gostam de propriedade, mas bem regulada ou limitada, quando na realidade esta projecção idealizada se aplica quase exclusivamente sempre à propriedade alheia"
Irrelevante. Claro que a maior parte das pessoas preferiria ter poder absoluto sobre a sua propriedade e que a propriedade alheia fosse limitada. E depois? O facto de a maioria esmagadora das pessoas votarem em partidos marxistas, social-democratas, (ou mesmo democratas-cristãos), etc. indica que consideram que as vantagens de limitar a propriedade alheia são maiores que as desvantagens de ver a sua própria propriedade limitada, logo, se o Estado desaparecesse, continuaria a haver, pelo menos, um sistema de propriedade limitada (recorde-se que um dos poucos pontos em que houve acordo entre mim e Dos Santos foi que "o sistema de direitos de propriedade seria o reconhecido pela generalidade das pessoas numa determinada área").
"não sei porque foi dito na altura que «parece (...) implicito que há "sociedades sem estado" que "não reconhecem propriedade privada além dos bens de consumo imediatos", o que (...) corta pela raiz a tese que o anarco-socialismo é "impossivel" e "absurdo"» uma vez que nunca disse aqui que não poderiam existir bens geridos de forma voluntária colectivamente (comunidades, cooperativas, etc.)"A propriedade colectiva existente nessas sociedades não é "voluntária" (no sentido de ser uma associação entre proprietários privados). P. ex. uma forma quase universal de propriedade comunitária é uma aldeia, de tantos em tantos anos, dividir a sua terra pelas familias; ora, num sistema desses, alguêm que, na nova distribuição fique com um lote mais pequeno do que tinha antes, não pode "voluntariamente" recusar a redistribuição.
Já agora, diga-se que os
"voluntarly establish[ed] (...) mutual insurance arrangements" que Benson fala no texto que citei também são de "voluntariedade" muito duvidosa: afinal, se esses sistemas se mantêm atravês do ostracismo social dos não-contribuintes, e numa sociedade em que a segurança do individuo é garantida pelo apoio dos outros individuos, isso é quase a mesma coisa que ser obrigatório contribuir.
"Tanto os exemplos dados (de coisas completamente descabidas) como reclamar propriedade sobre um deserto ou sobre praias consideradas públicas dão-me a ideia de que o Miguel Madeira ou está muito confuso sobre o que é a propriedade privada ou simplesmente se lembra de uns exemplos bons e propagandísticos para confundir os seus leitores."Os exemplos têm a ver com a questão da aquisição original da propriedade (que é a questão que está por detrás de todos os debates sobre a propriedade) - claro que os exemplos teriam de ser de coisas fora do usual: a "aquisição original" é algo raro, que só acontece em casos muito especiais. E o exemplo da lagoa no deserto não é meu - limitei-me a roubar o exemplo dado pelo liberal Kirzner.
"Não sei onde é que o Miguel conclui que a propriedade natural é proudhoniana em vez de capitalista. Retirar exemplos de animais, crianças (ou mesma a situação extrema de um naufrágio -- ler esta entrada que se aplica) para extrapolar posteriormente que assim é entre humanos adultos é um raciocínio indutivo, não dedutivo."Em primeiro lugar, é curioso que, mais atrás, no 2ª parágrafo, Dos Santos tenha criticado o anarco-socialismo por estar destacado "do realismo e do empirismo" e depois criticar o meu raciocinio por ser "indutivo, não dedutivo" (creio que o empirismo pressupõe o raciocinio indutivo).
Os exemplos ideias são mesmo os de crianças e casos como naufrágios - a "propriedade natural" é aquela que emerge "naturalmente", ou seja, é aquela que os individuos estabelecem "instintivamente" quando colocados num estado pré-"sociedade organizada", em que ainda não há leis, propriedade atribuida, etc. Ora, os humanos adultos em situações "normais" vivem num mundo em que a propriedade já está atribuida, logo não podemos observá-los a estabelecerem direitos de propriedade. Quanto aos exemplos tirados dos animais, fazem todo o sentido - afinal, grande parte da nossa herança genética é pré-humana, logo, se queremos ver qual é o sistema de propriedade "instintivo", observar os animais é capaz de não ser má ideia.
Já agora, também não vejo aonde é que o Dos Santos foi buscar a ideia de que a propriedade natural é capitalista em vez de proudhoniana (bem, ele não disse isso, mas parece-me implicito): eu dei exemplos (talvez maus) da propriedade "proudhoniana" a estabelecer-se espontaneamente, mas ele não deu exemplos nenhuns da propriedade "clássica" a estabelecer-se espontaneamente.
"A propriedade proudhoniana refere um direito de ocupação proveniente do "uso regular", mas este uso regular está por definição dependente de um intervalo de tempo a ele associado que ninguém tem a legitimidade de definir arbitrariamente contra a vontade dos indivíduos que ocupam os locais em questão."Mas é isso que está em questão (criticar a propriedade "proudhoniana" com o argumento de que esta é ilegitima à luz das regras da propriedade "clássica", realmente é andar às voltas numa rotunda...).
"O Miguel está constantemente a referir que eu não uso argumentos sobre a eficácia/eficiência ou apetibilidade do sistema para avaliar negativamente as formas de anarco-socialismo. Como não estou, por princípio, interessado em maximizar o "bem-estar" do colectivo (impossível de definir) em detrimento do bem-estar individual de cada elemento do colectivo, não vejo qual a relevância do assunto"A razão porque eu estou constantemente a referir isso é porque a mim também não me apetece entrar nessa discussão (esta já dá pano para mangas, como se viu...), e portanto, era mesmo para centrar a discussão nos pontos que discutimos.