N'A Destreza das Dúvidas, José Carlos Alexandre levanta uma questão interessante - na ficção cientifica, pelos vistos ninguém se lembrou de inventar o telemóvel.
Bem, na verdade há quem diga que o telemóvel foi inspirado no "comunicador" que capitão Kirk do "Caminho das Estrelas" usa para falar para a tripulação da nave (sobretudo quando está numa missão num planeta); no entanto, pelo menos na série original, eu consideraria esse "comunicador" mais como um walkie-talkie de longo alcance do que como um telemóvel: penso que ele só consegue usar o dispositivo para contactar com a nave e/ou com os outros membros da tripulação - não me parece que seja um sistema em que o utilizador pode escolher (introduzindo um código?) com quem quer falar (ou, se o sistema tinha essa funcionalidade, não me parece que tenha sido mostrada em acção).
Assim, mantém-se a questão - porque é que ninguém se lembrou do telemóvel (enquanto se lembraram de coisas que não se verificaram, como bases lunares em 1999, viagens a Júpiter em 2001 e até mesmo os robots assassinos não funcionam exactamente como esperado)? Até porque não era difícil - eu lembro-me de, ao brincar com o walkie-talkie dos meus tios, no principio dos anos 80, pensar "isto poderia ter uns botões para escolhermos com quem falar"; de certeza que montes de outras pessoas devem ter pensado nisso. Porque é que não foi passado para a ficção?
Tenho uma teoria - mas, para começar, já repararam como o walkie-talkie (isto é, um comunicador móvel, mas sem se poder seleccionar destinatários) é muito mais usual na ficção cientifica do que o telefone? A única vez que me lembro de ver um telefone em acção num filme de FC foi em "A Ameaça de Andrómeda", na cena em que a chamada telefónica é cortada com a voz "esta chamada foi cortada por razões de segurança nacional" (mas "A Ameaça de Andrómeda" é passado no presente, pelo que não conta).
Portanto, a grande dúvida aqui não será "porque é que ninguém se lembrou do telefones sem fios?", mas sim "porque é que nunca ninguém se lembrou de um walkie-talkie sincronizável para milhares de possíveis destinatários?" (uma questão para alguém que perceba do assunto - penso que, tecnologicamente, o "telemóvel" é mais uma adaptação do walkie-talkie do que do telefone; estou certo?).
Agora é que vem a minha teoria - os personagens dos filmes e histórias de FC, em 99% dos casos, são personagens envolvidos numa missão (mesmo que pessoal), integrados numa equipa de trabalho (mesmo que seja um bando de rebeldes ou marginais), etc. NÃO são pessoas vivendo a sua vida do dia-a-dia, saindo do trabalho às 17.30, indo buscar os filhos à escola, combinando com o conjugue o que jantar, e esperando que a oficina conserte a porta da nave. Assim, porque é que precisariam que o walkie-talkie pudesse ligar para uma carrada de números? Eles praticamente não têm vida pessoal (é provavelmente pela mesma razão que o telefone não é muito frequente nessas histórias); só precisam de um dispositivo para contactar com os membros da equipe.
Isso levanta um ponto mais profundo - é que, para todos os efeitos práticos, a FC é uma subvariante dos géneros acção e/ou aventura; mesmo quando são comédias, normalmente são pastiches ao género acção/aventura (exemplo). Os livros e filmes de FC, por regra, retratam personagens vivendo aventuras; não é obrigatório que assim seja: podíamos ter uma obra de FC retratando a vida quotidiana de pessoas "normais", mas no contexto de um ambiente de alta tecnologia; mas tal não é frequente - o único caso parecido que me lembro é o de Zenon, a Rapariga do Século XXI, que, tendo uma componente de aventura, tem também muito de clássica comédia de adolescentes, apenas com a diferença de se passar numa estação espacial (bem, talvez o boneco animado The Jetsons - que nunca vi, nem sei se passou em Portugal - fosse um bom exemplo).
Talvez seja por isso que a FC pecou por excesso em coisas como naves espaciais super-rápidas e colónias lunares e por defeito em coisas como os telemóveis: as histórias foram escritas e/ou filmadas a pensar na epopeia, não em invenções para facilitar o dia-a-dia das pessoas comuns.
[Um caso à parte é a FC distópica, como Admirável Mundo Novo ou THX 1138; aí a história gira, em grande parte, à volta da vida quotidiana nessas sociedades; mas como o tema muitas vezes é uma sociedade totalitária assente na tecnologia, é natural que não apareçam tecnologias que dão poder ao individuo, como o telemóvel ou o computador pessoal]
Claro que há outra explicação, mais simples e que talvez seja a correcta - a que o Luís Aguiar-Conraria dá: "por definição a evolução do conhecimento humano é imprevisível. Daí decorre que o progresso técnico é também ele imprevisível".
Wednesday, November 30, 2011
Os telemóveis e a ficção cientifica
Publicada por Miguel Madeira em 02:03
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